Manchetes Socioambientais
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O trabalho do ISA no monitoramento de "pressões e ameaças" parte do entendimento de que "pressão" é um processo de degradação ambiental (desmatamento, roubo de madeireira, garimpos, incêndios florestais etc) que ocorre no interior de uma área legalmente protegida, como Terra Indígena, Território Quilombola e Unidade de Conservação, como Parques e Florestas Nacionais, levando a perdas de ativos e serviços socioambientais. Ou seja, "pressão" é um processo que pode levar à desestabilização legal e ambiental de determinada área protegida. Já "ameaça", por sua vez, é a existência de risco iminente de ocorrer alguma degradação ambiental no interior de uma área protegida.
Tomadas cumulativamente, as pressões e ameaças podem gerar impactos socioambientais negativos de magnitude e alcance suficientes para desencadear o colapso no funcionamento dos ecossistemas e dos modos de vida das populações locais - e impactos negativos nas cidades. Os povos indígenas e populações tradicionais, como comunidades quilombolas e ribeirinhas, são diretamente atingidos pelas pressões e ameaças por terem seus territórios invadidos, suas florestas desmatadas e seus rios desviados e contaminados.
Aqui no ISA, o trabalho de monitoramento das pressões e ameaças é feito por pesquisadores especializados em antropologia, direito socioambiental, modelagem de uso da terra e avaliação de políticas públicas. A equipe diretamente responsável pelo monitoramento de áreas protegidas do ISA atua na conexão entre pesquisadores, formuladores de políticas públicas e tomadores de decisão. As áreas de atuação desse time abrangem o desenvolvimento de pesquisas científicas e aplicações em sistemas de informação geográfica e ferramentas de monitoramento da situação jurídica, demográfica e projetos governamentais que impactam as áreas protegidas.
O monitoramento de áreas protegidas do ISA possui conhecimento acumulado no monitoramento de pressões e ameaças desde a década de 1980 como um dos primeiros programas da sociedade civil no Brasil a construir uma plataforma organizada de sistemas de informação socioambiental, antes mesmo que setores governamentais. Esse trabalho iniciou-se no antigo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), em 1983, com o monitoramento de Terras Indígenas no Brasil. Em 1992, ainda no Cedi, foi iniciado o monitoramento das Unidades de Conservação na Amazônia e outras áreas públicas. Seu Sistema de Informação de Áreas Protegidas (SisArp) é um sistema Web com 15 módulos de dados por temas específicos, incluindo o módulo de pressões e ameaças. O SisArp alimenta sites institucionais que disponibilizam dados, mapas, imagens, vídeos, notícias, publicações e análises temáticas. Alguns sites estão listados abaixo, confira!
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Em formato de enciclopédia, é considerado a principal referência sobre o tema no país e no mundo |
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A mais completa fonte de informações sobre o tema no país |
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Versão especial da Enciclopédia PIB para a educação infantil; |
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o primeiro produto web de referência neste tema, lançado em junho de 2007 |
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painel de indicadores de consolidação territorial para as Terras Indígenas |
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painel de informações sobre o estado das florestas e alertas de pressões e ameaças que impactam as áreas protegidas. |
Com o fim da presunção de “boa-fé” na compra de ouro e mais controle sobre a cadeia produtiva, atividade garimpeira dá sinais de retração
* Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico
Há poucas semanas, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu extinguir de vez a famigerada “regra da boa-fé” na comercialização de ouro de garimpos, regramento que, na prática, isentava as empresas compradoras de ouro de qualquer responsabilidade sobre a origem do produto que estavam adquirindo. Isto é, manchado de sangue ou não, bastava a palavra do vendedor sobre a suposta localização da extração para, automaticamente, inserir o ouro no mercado formal.
Os efeitos da inconstitucionalidade da regra da boa-fé, porém, já vêm sendo sentidos desde agosto de 2023, quando passou a valer a decisão do ministro Gilmar Mendes que suspendeu a validade do parágrafo 4º do artigo 39 da Lei 12.844/2013. Um levantamento da colaboração internacional Opacidade Dourada indicou queda de 73%na produção declarada de ouro no Brasil, entre maio de 2023 e maio de 2024.
Além do fim da “presunção da boa-fé”, outros avanços regulatórios também foram fundamentais para impulsionar a queda. Entre elas, a adoção da nota fiscal eletrônica para registros de operações pelas Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM) e o aumento das exigências por parte do Banco Central em relação aos relatórios financeiros das mesmas.
Mas diante dos dados que indicam a redução da produção de ouro declarada, restava saber ainda se este recuo também poderia ser verificado em outros indicadores, como, por exemplo, no desmatamento associado ao garimpo. Pois uma das hipóteses consideradas era a de que a produção pudesse ter continuado a todo vapor (de mercúrio) e o que estivesse decrescendo fosse apenas a quantidade de ouro de garimpo circulando pelas vias legais.
Recentemente, a plataforma Amazon Mining Watch lançou novos dados sobre a situação do garimpo na Amazônia. O projeto utiliza aprendizado de máquina - quando um sistema “aprende” a reconhecer padrões a partir de exemplos - para identificar automaticamente as áreas impactadas e, por isso, consegue apresentar um quadro amplo do fenômeno, em escala regional, algo difícil de encontrar em outras iniciativas.
De acordo com o AMW, em 2024, a área total afetada pelo garimpo atingiu um acumulado de 2,02 milhões de hectares, o que inclui áreas novas e áreas identificadas nos anos anteriores, mas com algum grau de regeneração. O incremento anual de 2024, contudo, foi de 111.603 hectares, o que significa uma redução de 35% em relação ao ano anterior (2023) e de 45% em comparação com o ano recorde, em 2022.
Ainda de acordo com o AMW, essa redução foi bastante influenciada pela queda nas taxas brasileiras, que representam quase 50% do total impactado, mas não só. A desaceleração, por sua vez, foi ainda mais expressiva nos garimpos localizados em áreas protegidas. Nos três territórios indígenas mais impactados pelo garimpo - TI Kayapó, TI Yanomami e TI Munduruku - houve uma queda significativa no aumento de novas áreas para a exploração mineral. Em 2024, a Terra Indígena Yanomami registrou o menor nível de atividade desde 2018 (ano base da plataforma).
Num tema como este, em que as notícias costumam ser sempre desalentadoras, os dados do AMW parecem trazer algum ânimo e isso é algo que merece ser compartilhado com todos que de alguma maneira se preocupam com o futuro da Amazônia e de seus povos.
Sem dúvidas, a retomada da fiscalização ambiental no Brasil é um ponto que também merece destaque e os devidos créditos, além das reformas administrativas na cadeia do ouro. O esforço dos órgãos de comando e controle, como mostram os números, não têm sido em vão. Ademais, algumas inovações nas estruturas de combate ao crime, como a centralização das ações de fiscalização - visando o estrangulamento logístico do garimpo ilegal -, é algo que deve ser notado, pensando nas lições aprendidas que os últimos dois anos têm gerado no enfrentamento do problema.
O trabalho de articulação promovido pela casa de governo para enfrentar o garimpo na TI Yanomami, por exemplo, traz diversos elementos importantes para a reflexão sobre o combate de crimes ambientais na Amazônia. Boa parte das operações concentra-se no entorno do território, envolvendo as agências reguladoras na fiscalização de aeródromos clandestinos, postos de combustível e demais estruturas de apoio logístico. Ao mesmo tempo, a colaboração com as organizações indígenas para a produção de inteligência territorial no monitoramento da situação é fundamental para garantir uma resposta rápida diante de novos focos.
O garimpo ilegal, porém, é uma atividade bastante resiliente e possivelmente está buscando novas formas para seguir atuando. O momento, portanto, é de manter a pressão e não aliviar. Muitos outros ajustes ainda precisam ser feitos na legislação e nas normas infralegais para seguir aprimorando a transparência da cadeia do ouro, especialmente na Agência Nacional de Mineração (ANM), órgãos especialmente frágil e leniente no controle da exploração garimpeira.
É preciso seguir vigilante também para entender o que está de fato acontecendo no contexto regional, pois com o caos econômico gerado pela guerra de tarifas de Donald Trump, a tendência é de que o preço do ouro exploda nos próximos anos, e que isso promova uma nova onda de reterritorialização do garimpo, algo que só aparecerá nos dados dos satélites anos depois.
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À espera da demarcação, comunidade guarani mbya na TI Kuaray Haxa enfrenta oposição de ambientalistas a acordo de gestão com Reserva Biológica Bom Jesus
No litoral do Paraná, famílias indígenas do povo Guarani Mbya estão tendo seu território e modo de vida tradicional ameaçados por setores contrários à gestão compartilhada de áreas de sobreposição entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação.
Quem denuncia a situação são as lideranças da comunidade Terra Indígena Kuaray Haxa, uma terra em processo de demarcação pela Funai que é sobreposta pela Reserva Biológica Bom Jesus, uma área de quase 35 mil hectares entre os municípios de Antonina, Guaraqueçaba e Paranaguá (PR).
“A Rebio Bom Jesus foi criada em cima de nosso território tradicional sem que fôssemos consultados. Passamos então a ser perseguidos pelos gestores do parque, tratados como invasores em nossa própria terra. Tratados como ameaças à Mata Atlântica na qual nossos parentes sempre viveram e a qual temos como missão defender”, afirmam os Guarani em uma carta divulgada nesta quinta-feira (17/4).
No último dia 20 de fevereiro, a comunidade guarani e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) comemorou a assinatura de um Termo de Compromisso que regulariza a presença tradicional de famílias indígenas na área sobreposta à Unidade de Conservação – após mais de 10 anos de disputas judiciais.
Reconhecidas como guardiãs da Mata Atlântica, as comunidades guarani investiram no diálogo com o corpo técnico do órgão ambiental para construir soluções de gestão compartilhada para a área, buscando compatibilizar os direitos territoriais e culturais de seu povo com a conservação da biodiversidade em um dos biomas mais ameaçados do mundo.
Após a assinatura do termo, no entanto, um setor de organizações ambientalistas da sociedade civil passou a questionar o acordo, sugerindo que o modo de vida guarani colocaria em risco a biodiversidade na Rebio Bom Jesus, por conta da caça de animais silvestres e que os indígenas não seriam historicamente originários desta região, tendo sido supostamente “alocados” na área.
As manifestações contra o acordo evocam a tese anti-indígena do “marco temporal”, ignorando a tradicionalidade da ocupação guarani nessa região de Mata Atlântica. Segundo uma nota técnica juntada ao processo pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), a comunidade de Kuaray Haxa habita tradicionalmente o local antes mesmo da criação da Rebio Bom Jesus, instituída em 2012.
Os opositores do acordo ignoram também os debates históricos sobre as formas mais adequadas de garantir a preservação ambiental entre comunidades indígenas e órgãos ambientais em áreas de sobreposição entre Unidades de Conservação e Terras Indígenas – além de estudos recentes que documentam as contribuições dos Guarani para a conservação da biodiversidade e para mitigar a caça ilegal na área, indicada em documentos do próprio ICMBio.
Vera Yapuá Rodrigo Mariano, assessor jurídico da CGY, organização representativa do povo Guarani, lembra que a legislação brasileira reconhece a compatibilidade entre a proteção do meio ambiente e os direitos dos povos indígenas a seus territórios, garantindo o exercício das atividades tradicionais. “Além das comprovações científicas de que os povos indígenas protegem as florestas, temos uma garantia que partiu do Supremo Tribunal Federal (STF), quando da definição das teses do tema 1031, caso de repercussão geral RE 1017365”, destaca o assessor, que atua na defesa da comunidade.
O posicionamento das organizações preservacionistas também é criticado pelo Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Guaraqueçaba (PR), que congrega comunidades caiçaras, quilombolas e indígenas da região. Em abril, o fórum lançou uma Carta em defesa da ocupação tradicional da TI Kuaray Haxa, que angariou apoio de diversas associações comunitárias e socioambientais, entre as quais Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Instituto Socioambiental (ISA) e Terra de Direitos.
Sobre o Termo de Compromisso
Nesse acordo entre a comunidade indígena e o órgão ambiental, duas zonas de uso foram estabelecidas para os Guarani:
- Zona de uso intensivo (19 hectares, dos 34.179,74 hectares totais da Reserva): destinada para construção de moradias e infraestrutura à comunidade, como roças e criação de animais domésticos.
- Zona de uso disperso (6.698 hectares, dos 34.179,74 hectares totais da Reserva): destinada para uso que respeite o modo de vida tradicional (nhandereko) em conformidade com as regras do Termo de Compromisso.
O ICMBio – que construiu o Termo de Compromisso com o envolvimento do Ministério Público Federal e da Funai – ressalta que desde a ocupação indígena não há indícios de impacto ambiental significativo na fauna e que as regras para a caça, assinadas no acordo, são respeitadas. Confira a íntegra do documento.
O Programa Nacional de Monitoramento da Biodiversidade – Programa Monitora, será um dos responsáveis por esse tipo de acompanhamento, ainda que o termo assinado conceda segurança jurídica para as partes, auxiliando na gestão da Unidade de Conservação e no monitoramento ambiental que estabelece limites ao uso dos recursos naturais.
Mais informações: comissao@yvyrupa.org.br
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Termo de Compromisso entre a comunidade na TI Kuaray Haxa e o ICMBio
Ojejapo Tekoarã – Etnomapeamento da tekoa Kuaray Haxa, litoral do Paraná
Reserva Biológica Bom Jesus: perguntas e respostas sobre Termo de Compromisso entre ICMBio e Comunidade indígena Guarani
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Narrado pelos próprios indígenas, filme mostra impactos da monocultura no território Wawi, do povo Kisêdjê, no estado do Mato Grosso
O filme Sukande Kasáká | Terra Doente, ganhou os prêmios de Melhor Documentário da Competição Brasileira Curtas-Metragens e também o Prêmio Mistika de Melhor Documentário da Competição Brasileira de Curtas-Metragens durante o Festival É Tudo Verdade, que ocorreu de 3 a 13 de abril em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Como próximos passos, ele entrará na lista de trabalhos que serão avaliados para indicação ao Oscar, tradicional premiação que recentemente reconheceu o longa-metragem Ainda estou aqui como Melhor Filme Internacional, e espera-se que ele tenha espaço para exibição durante a COP30, em Belém.
Assista ao vídeo:
A narrativa acompanha Kamikia e Lewayki Khisêtjê, o primeiro também diretor da obra, que testemunham a degradação de sua terra ancestral e as consequências silenciosas da pulverização de veneno que afetam a floresta e os rios, sustento de seu povo. Enquanto os sinais de contaminação tornam-se cada vez mais evidentes — desde mudanças no ecossistema até doenças misteriosas que afetam crianças e idosos —, a comunidade é forçada a tomar a decisão de abandonar sua maior aldeia, Ngojhwere, e buscar um novo lugar onde possam viver com segurança.
O veneno dos agrotóxicos dissolve fronteiras entre fazendas e a Terra Indígena, expondo uma interconexão brutal entre os Kisêdjê e um modelo de produção que avança sem olhar para trás, tornando a terra lentamente inabitável sem a necessidade de armas ou cercas - apenas pelo envenenamento progressivo de tudo o que dá vida. A pesquisa científica solicitada pelos próprios Khisêtjê comprova aquilo que já sentiam em seus corpos: 28 tipos de agrotóxicos foram detectados em suas águas, na caça, na pesca e até na chuva, elementos fundamentais para sua subsistência.
Ao longo da narrativa, a voz dos mais velhos se mistura à preocupação dos jovens, que questionam o futuro da água, dos alimentos e dos animais. Kamikia Khisêtjê, cineasta e documentarista indígena, utiliza as imagens para registrar a destruição ao redor e a luta do seu povo, expondo o avanço das plantações de soja sobre a floresta e a chegada constante dos aviões pulverizadores que despejam veneno nas bordas da floresta. A câmera também se torna uma ferramenta de resistência.
Composto por imagens captadas ao longo de 12 anos, o filme constrói um retrato íntimo da luta Khisêtjê, revelando as transformações do território e os impactos acumulados da contaminação ao longo do tempo. Sukande Kasáká | Terra Doente não é apenas um relato sobre contaminação ambiental, mas sobre a tentativa de apagamento de uma cultura e a resiliência de um povo que, apesar de tudo, se reorganiza e resiste.
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Documento elabora estratégia para barrar a destruição em Terras Indígenas pressionadas por madeireiros e grileiros
Lideranças indígenas Arara, da Terra Indígena Arara, situada na região de Altamira (PA) entre o Rio Iriri e a rodovia Transamazônica, lançaram nesta segunda-feira (07/04) no Acampamento Terra Livre (ATL) 2025, o Plano de Proteção Territorial da TI Arara.
O documento propõe o alinhamento das ações de proteção territorial entre os órgãos fiscalizadores e as realizadas pelo próprio povo indígena para reprimir e controlar, de fato, as atividades criminosas que ocorrem na região.
O Plano de Proteção Territorial foi elaborado em resposta às sucessivas invasões sofridas pela Terra Indígena nos últimos anos, sobretudo para a extração ilegal de madeira, além da pecuária e pesca ilegais. “Os madeireiros têm invadido o território Arara em busca de madeira de alto valor comercial, como o ipê, abrindo ramais por dentro da floresta nas zonas mais isoladas”, afirma o plano.
No ano passado, foi realizada a primeira assembleia na Aldeia Tagagem para a proteção territorial da TI Arara com representantes da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Socioambiental (ISA), Unyleya Socioambiental e o Plano de Proteção Territorial e Ambiental das Terras Indígenas do Médio Xingu (PPTMX) – condicionante estabelecida na licença prévia da Usina Hidrelétrica de Belo Monte - com o objetivo de elaborar um mapa detalhado com as ameaças que ocorrem na TI.
Baixe o Plano de Proteção Territorial
O resultado foi o detalhamento das estratégias de proteção territorial para enfrentar os desafios e as ameaças no território e as atividades que cada parceiro governamental e não governamental deverá executar. As atribuições estão especificadas no documento e as ações estão classificadas como Informação, Prevenção e Controle com as responsabilidades de cada parceiro apontadas.
Por exemplo, cabem aos órgãos públicos como a Funai e o Ibama, o papel de mediação de conflito e sensibilização, além da fiscalização na área de proteção da Terra Indígena.
“O território é muito impactado pela BR-230 (rodovia Transamazônica) e construímos este documento para fazermos a vigilância e proteção da nossa casa, mas precisamos de apoios para as expedições, pois não temos recursos para isto”, afirmou o Cacique Motijibi Arara, durante a Roda de Conversa "Mapeando a Resistência: Estratégias Indígenas de Monitoramento Territorial" no ATL.
Desintrusão da TI Cachoeira Seca é prioridade
Um grupo de indígenas Arara das Terras Indígenas Arara e Cachoeira Seca esteve na manhã desta segunda-feira (07/04) com representantes da Funai e do Ministério dos Povos Indígenas (MPI).
O povo Arara vive em duas TIs diferentes: os indígenas que vivem na TI Arara foram contatados entre 1981 e 1993, e os que vivem na Cachoeira Seca, situada entre os Rios Iriri e Xingu, foram contatados somente em 1987, por isto são conhecidos como povos de recente contato.
Na reunião, as lideranças distribuíram o Plano de Proteção Territorial da TI Arara e cobraram providências em relação à desintrusão da TI Cachoeira Seca, que vem sofrendo com o desmatamento acelerado nos últimos anos por causa de invasores não indígenas.
A diretora de Proteção Territorial (DPT) da Funai, Janete Carvalho, se reuniu com os indígenas e explicou que o processo deverá ocorrer ainda este ano.
“A TI foi homologada em 2016 e precisamos terminar o processo de regularização fundiária, que é a indenização dos ocupantes não indígenas de boa-fé por causa das benfeitorias realizadas”, explicou.
“Neste momento, estamos desenvolvendo o plano de ação conjunto para iniciarmos o procedimento fundiário ainda esse ano”, afirmou a diretora.
Uma liderança das mulheres da TI Cachoeira Seca que não quis se identificar afirmou que o processo de desintrusão precisa acontecer logo, pois os indígenas se sentem inseguros na própria casa.
“Nós precisamos agilizar este processo, pois precisamos do nosso território livre dos invasores. Não nos sentimos seguras com os nossos filhos no nosso território. Estamos cansadas de esperar”, desabafou.
No MPI, o grupo foi recebido por representantes da Secretaria de Direitos Ambientais e Territoriais Indígenas e do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Indígenas.
A pauta da reunião foi a mesma: solicitação de apoio para o monitoramento do Plano de Proteção Territorial da TI Arara e aceleração da desintrusão da TI Cachoeira Seca.
O Cacique Akito Arara, que falou na língua arara – da família linguística Karib – reforçou a urgência da desintrusão por causa do aumento no desmatamento.
Os Arara saíram da reunião com o comprometimento do MPI de cobrar da Norte Energia — concessionária da UHE Belo Monte — a entrega dos postos de fiscalização na TI; a solução no reassentamento dos povos tradicionais que ocupam a TI e ações que impeçam a continuidade de divulgação de fake news sobre a regularização fundiária na região.
Sobre a TI Cachoeira Seca
Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a TI Cachoeira Seca foi uma das mais desmatadas no Brasil nos últimos seis anos.
O Ministério Público Federal já recebeu dezenas de denúncias sobre invasões, roubo de madeira, pecuária e grilagem. Apesar da homologação e demarcação da Cachoeira Seca em 2016, que beneficiou o povo Arara com a posse permanente e usufruto exclusivo da região, o governo ainda não promoveu a retirada dos não indígenas do local.
Em outubro do ano passado, a Rede Xingu + fez uma denúncia aos seguintes órgãos: Ministério Público Federal, IBAMA, Polícia Federal, Funai, ICMBio e Ministério da Justiça sobre o avanço do desmatamento e exploração de madeira ilegal na Terra Indígena Cachoeira Seca, nos municípios de Altamira, Placas e Uruará, todos no estado do Pará.
A Rede Xingu + monitora o desmatamento e demais impactos ambientais em toda a Bacia do Xingu através do SIRAD X, que é o Sistema Remoto de Alerta de Desmatamento na Bacia do Xingu, e também através dos parceiros que realizam a vigilância territorial. Segundo o monitoramento do SIRAD X, os meses de agosto e setembro de 2024 indicaram um crescimento alarmante do desmatamento da TI Cachoeira Seca, que passou de 795 hectares registrados em 2023 para 1.149 ha em 2024, resultando num aumento de 28%.
Além do desmatamento, foram identificadas áreas de extração madeireira ilegal na TI. Os focos de exploração estão localizados ao longo de uma estrada ilegal na região noroeste, que se conecta com a BR-230, a rodovia Transamazônica, e essa conexão facilita o acesso às cidades de Rurópolis e Placas.
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Roda de conversa organizada pela Coiab fez balanço das ações de desintrusão e apontou caminhos para fortalecer a proteção dos territórios indígenas
Nesta terça-feira (08/04), na tenda da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), no Acampamento Terra Livre (ATL) 2025, lideranças indígenas se reuniram para discutir diagnósticos, denunciar problemas e propor estratégias conjuntas para a proteção de seus territórios. A presença do Cacique Raoni Metuktire, liderança histórica do povo Kayapó, marcou a roda de conversa.
Acompanhe a cobertura do ISA no ATL 2025
O encontro reuniu representantes da Aliança em Defesa dos Territórios — formada em dezembro de 2021 por lideranças Yanomami, Munduruku e Kayapó — e do povo Parakanã, além de especialistas de organizações parceiras, para discutir os desafios da desintrusão de garimpeiros e as medidas urgentes para a recuperação e proteção das Terras Indígenas afetadas pelo garimpo.
Ao longo da conversa, foram compartilhados diagnósticos, experiências e estratégias para enfrentar os impactos das invasões garimpeiras, avaliar as ações adotadas até o momento e fortalecer a luta contínua pela proteção dos territórios indígenas.
Julio Ye’kwana, presidente da Associação Wanasseduume Ye’kwana (SEDUUME), abriu a mesa destacando a persistente ameaça do garimpo em suas terras. Segundo ele, apesar dos avanços após o decreto de emergência na Terra Indígena Yanomami em janeiro de 2023, parte do garimpo continua ativo. "Não estamos no pós-desintrusão, estamos durante e com muita expectativa para que as operações dêem certo", afirmou Julio Ye’kwana.
Ele reconheceu avanços nas áreas de saúde e proteção territorial, mas ressaltou que os desafios ainda são grandes. Como exemplo, citou a persistência da malária, doença que continua fazendo vítimas no território.
“Hoje está melhor, mas a malária ficou — e tem o mercúrio no rio, que a gente não vê”, alertou. Descreveu ainda melhorias no dia a dia das comunidades após a decretação da emergência Yanomami: “Durante o garimpo, os jovens foram aliciados. Depois da emergência, eles começaram a voltar para a comunidade, a estudar e a trabalhar novamente.”
Julio sublinhou a importância de trabalhar em rede, exaltando a forma como a aliança criou estratégias para falar com governo e com ministérios, por meio de intercâmbios e diálogos que articularam soluções dessa luta comum.
Já o Cacique Raoni, uma das figuras mais emblemáticas da luta indígena no Brasil, falou com emoção sobre o compromisso do povo Kayapó com a preservação da natureza. “Os brancos só pensam em fazer coisas ruins que prejudicam nós, a natureza, a nossa vida", disse. Ele defendeu a união dos povos indígenas para combater as invasões e a destruição das florestas e fez um apelo para que as gerações mais novas continuem a luta.
Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY), reforçou a fala da liderança Ye’kwana, afirmando que a desintrusão da Terra Indígena Yanomami ainda não está concluída e que algumas ameaças persistem. Dário alertou sobre o envolvimento de facções criminosas com a exploração garimpeira e chamou a atenção para a dinâmica transacional desses grupos, o que dificulta a fiscalização.
Ademir Kaba, liderança do povo Munduruku, destacou que as pressões ao seu território persistem, embora a TI tenha sido alvo recente de uma operação de desintrusão, e que o enfrentamento ao garimpo ilegal exige continuidade e reforço nas ações. “Não podemos nos dar ao luxo de estar felizes. O garimpo causa um impacto irreversível”, afirmou, reforçando a importância de medidas consistentes para proteger os territórios indígenas e garantir a responsabilização dos invasores.
Análise dos dados
Estevão Benfica Senra, geógrafo do Instituto Socioambiental (ISA) que atua em defesa do povo Yanomami há mais de 10 anos, ressaltou que os dados de sensoriamento remoto indicam uma redução significativa na escala da atividade na Amazônia como um todo — resultado da atuação conjunta de lideranças indígenas, organizações da sociedade civil e órgãos de fiscalização.
Segundo o geógrafo, de acordo com a plataforma Amazon Mining Watch houve uma redução de 35% no incremento anual da área afetada pelo garimpo na Amazônia em relação ao ano de 2023, e que esta redução foi impulsionada pela desaceleração observada no território brasileiro .
“É uma luta árdua, mas está valendo a pena”, afirmou. Senra também enfatizou a importância de avançar na regulamentação e fiscalização da cadeia do ouro no Brasil, especialmente nos pontos de origem e comercialização, para impedir que o ouro ilegal continue entrando no mercado formal.
Ao final da atividade, Jorge Dantas, coordenador da frente de Povos Indígenas do Greenpeace Brasil, apresentou o relatório “Ouro Tóxico”, lançado durante o ATL e que reúne dados recentes sobre a devastação provocada pelo garimpo ilegal nas Terras Indígenas Yanomami, Kayapó, Munduruku e Sararé, entre 2023 e 2024.
O documento denuncia a falta de transparência no comércio internacional de ouro — diretamente ligado à destruição ambiental — e propõe medidas urgentes, como a proibição do uso de mercúrio na extração do minério e a destinação do ouro apreendido para financiar a recuperação das áreas degradadas.
O evento foi encerrado com um chamado à união entre lideranças indígenas, movimentos sociais e órgãos públicos, reforçando a necessidade de ações coordenadas e contínuas no combate ao garimpo ilegal e na defesa dos direitos dos povos indigenas e do meio ambiente.
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Enquanto o governo federal adia demarcações, comunidades indígenas resistem em territórios marcados por conflitos agrários, ameaças de morte e omissão do Estado
* Com colaboração de Luiza Barros, Mariana Soares e Tatiane Klein
* Edição de Tatiane Klein
No extremo sul da Bahia, o povo Pataxó resiste nas Terras Indígenas Barra Velha, Barra Velha do Monte Pascoal, Comexatiba e Águas Belas. Em meio à violência de fazendeiros, grileiros e forças policiais, lideranças pedem socorro — e justiça.
“Essa terra é nossa desde antes de 1500. Não estamos invadindo nada de ninguém. Cada canto desse território é sagrado. É onde nossos encantados vivem”, afirmou o cacique Suruí Pataxó ao Instituto Socioambiental (ISA), logo após seu povo ter sido alvo da Operação Pacificar, quando 150 policiais civis e militares da Bahia adentraram a TI Barra Velha do Monte Pascoal para cumprir 12 mandados de prisão e sete de busca e apreensão, no dia 20 de março.
Durante a operação, 11 indígenas foram presos. Porém, nesta terça (08/04), sete deles tiveram a liberdade concedida, após pedido da Defensoria Pública do Estado. Os quatro restantes ainda não tiveram o pedido de habeas corpus deferido.
Em nota, a Polícia Civil afirmou que a ação buscava desarticular grupos armados de “supostos indígenas” que, “a pretexto de estarem atuando em ‘retomadas’ de territórios de seus ancestrais, agem com violência e grave ameaça contra trabalhadores e proprietários rurais”.
Afirmação que Suruí contesta. “É muita perseguição. Tem vários dos nossos com mandados de prisão. Eles alegam que a gente é invasor, falsos índios, criminosos. Que tomamos a terra para roubar coisas dos ruralistas”, explica. “Mas a história é outra: nós não estamos invadindo nada de ninguém, como eles chamam. Apenas estamos ocupando o que é nosso, que é uma terra de ancestralidade da comunidade pataxó”, afirma o cacique.
A operação policial ocorreu dias após uma comitiva de lideranças do povo Pataxó viajar até Brasília para exigir do governo federal a assinatura da portaria declaratória da TI Barra Velha do Monte Pascoal e denunciar o cenário de violência, grilagem e omissão estatal que tem marcado a região. O que levou o Conselho de Caciques da TI Barra Velha a publicar uma carta, onde afirma que a operação foi “uma movimentação além de suspeita, estranha e com cara de retaliação”.
“Que seja apurado e responsabilizados os agentes públicos e políticos envolvidos nesta operação; inclusive a inobservância e respeito aos nossos direitos. Bem como as violações contra os direitos das crianças e das pessoas mais vulneráveis, vítimas da violência que estamos sofrendo”, diz trecho da carta, que também denuncia a violência policial.
Nesta semana, os Pataxó estão de volta a Brasília para participar do 21º Acampamento Terra Livre (ATL) e denunciar a violência que os aflige. “Vamos dançar Pataxó / Pelo parente que morreu / Agradecemos ao pai Tupã / Pela vista que nos deu”, eles cantaram ao ocupar a tenda principal do acampamento iniciado na segunda-feira (07/04).
Assista ao vídeo:
“A gente costuma vir ao Acampamento trazer algumas demandas, mas dessa vez a gente veio numa forma de luta – de luto, na verdade. Luto por tudo que está acontecendo no nosso território”, conta Apêtxiênã Pataxó, liderança da juventude pataxó, que revela que algumas das 150 pessoas da delegação presente no ATL tiveram de sair escoltadas de suas terras.
“Teve um massacre no ano de 1951, quando nosso povo foi praticamente exterminado, e com toda a luta dos nossos velhos a gente conseguiu reconstruir. E hoje esse massacre está retornando, só que de uma forma bem mais visível”, analisa o jovem, lembrando da repressão policial sofrida durante o “Fogo de 1951”. Apêtxiênã denuncia: “O nosso povo está morrendo lá na base, injustamente estão presos, então a gente vem pedir que as autoridades olhem pelo povo Pataxó”.
Indignação e frustração
O encontro com o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, no dia 12 de março, era aguardado com expectativa pela comitiva pataxó que foi a Brasília — mas terminou em frustração e revolta.
“Foram mais de 40 horas de estrada. A gente foi pedir proteção, pedir que o governo faça o que a Constituição manda. E saímos de lá com mais dor”, relata a liderança indígena Uruba Pataxó.
Segundo Uruba, a reunião com o ministro foi marcada por falta de escuta, pressa e desrespeito. A liderança conta que o ministro chegou atrasado, permaneceu pouco tempo e demonstrou mais preocupação com um outro compromisso, que teria após o encontro, do que com os assassinatos e conflitos relatados pelos Pataxó.
“Ele falou que só podia ficar 30 minutos porque tinha um compromisso, uma cerimônia que não podia perder. Nem deu boa noite. Foi direto dizendo que não dava para assinar a demarcação, que podia cair na Justiça”, disse Uruba.
Nesta terça-feira (08/04), a 6ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF) divulgou uma nota técnica recomendando que o ministério comandado por Lewandowski assine imediatamente as portarias declaratórias de três Terras Indígenas no Sul da Bahia, incluindo Barra Velha do Monte Pascoal e duas outras do povo Tupinambá.
A violência contra os Pataxó também foi pauta de uma reunião do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que, além de recomendar a declaração da área pelo MJSP, indicou o deslocamento da Força Nacional à região.
De acordo com o relato dos Pataxó, na reunião de março o ministro justificou a inércia do governo em avançar no processo de demarcação afirmando que os invasores das Terras Indígenas são pessoas muito influentes e com grande poder econômico, capazes de contratar os melhores advogados para reverter qualquer ato administrativo.
“Ele disse assim, com todas as letras: ‘Hoje, quem manda no Brasil é o dinheiro’”, lembra Uruba.
A liderança reagiu imediatamente:
“Falei pra ele que nossa terra tá banhada de sangue, que nosso povo tá morrendo, e que quem tem que mandar no Brasil é a Constituição, não o dinheiro. E se o governo não demarcar, a gente vai continuar fazendo as retomadas”.
Manobras jurídicas
A TI Barra Velha foi demarcada administrativamente em 1981 e homologada em 1991 com uma área de apenas 8.627 hectares — onde se concentram hoje oito aldeias, entre elas, a Aldeia Barra Velha, chamada pelos Pataxó de Aldeia Mãe. Desde então, os Pataxó afirmam que a área não corresponde à totalidade de seu território tradicional.
Segundo o antropólogo José Augusto Sampaio, essa primeira demarcação não respeitou os critérios legais nem levou em conta a história e a territorialidade dos Pataxó. Na época, o Brasil ainda vivia sob a ditadura militar, e o processo foi conduzido por dois órgãos ligados ao regime: a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), criada em 1967, e o extinto Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), antecessor do Ibama.
“Foi uma delimitação arbitrada pela Funai e o IBDF, sem nenhum estudo. Por isso, não atende aos requisitos constitucionais do que são as Terras Indígenas. A área foi definida por conveniência administrativa, não por critério técnico ou histórico. Foi uma decisão imposta, não dialogada”, explicou Sampaio, que é professor na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e presidente do conselho diretor da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí).
Firmado em 1980, esse acordo entre os órgãos federais envolvia a sobreposição de Barra Velha pelo Parque Nacional do Monte Pascoal — criado em 1961, quando a permanência dos Pataxó foi restringida a uma área de apenas 210 hectares. “Era a ditadura. Tudo foi feito sem respeitar o direito dos povos indígenas, como se estivessem lidando com posseiros comuns”, explica Sampaio.
Segundo um artigo da antropóloga Sheila Brasileiro publicado pelo ISA em 2004, a tentativa de regularização da TI Barra Velha, homologada em 1991, foi marcada por irregularidades, contrariando a legislação indigenista de então e fazendo com que metade do território de ocupação tradicional dos Pataxó – já identificado por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) –, fosse cedida ao Parna. Aos Pataxó, restaram uma terra de brejos arenosos do entorno do Monte Pascoal e um longo histórico de contendas com os órgãos ambientais.
Relembre: Os Pataxó e o Monte Pascoal
“Foram muitas formas de violências que os indígenas sofreram por parte dos servidores do IBDF, especialmente as mulheres. Essas violações marcaram gerações”, explica Milene Maia Oberlaender, coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA.
Ela, que atuou por oito anos como gestora do Parna Monte Pascoal, conta que as famílias eram impedidas de colherem suas próprias plantações, o que gerou fome em grande parte da população pataxó. “Eles eram obrigados a coletar alimentos durante a noite, para que não fossem ‘pegos’ pelos fiscais, se sentiam ladrões em sua própria casa. Essas agressões psicológicas marcam até hoje os Pataxó”, contextualiza.
Foi apenas após a promulgação da Constituição de 1988, que reconheceu de forma explícita os direitos originários dos povos indígenas sobre seus territórios tradicionais, é que os Pataxó puderam iniciar, com apoio do Ministério Público Federal (MPF) e da universidade, o processo de regularização de sua verdadeira terra.
No início dos anos 2000, com a retomada pelos Pataxó do Parna Monte Pascoal e por ações do MPF, a Funai finalmente deu início aos estudos técnicos necessários para reparar os feitos do passado e corrigir os limites da TI Barra Velha.
O trabalho foi concluído em 2008, resultando na identificação da TI Barra Velha do Monte Pascoal, uma área de 52.748 hectares, distribuída pelos municípios de Itabela, Itamaraju, Prado e Porto Seguro. O relatório técnico confirmou que a área corresponde ao território de ocupação tradicional dos Pataxó, abrangendo e ampliando significativamente os limites da porção de terra demarcada em 1991.
Aprovado e publicado pela presidência da Funai, o relatório de identificação e delimitação foi enviado ao Ministério da Justiça para emissão da portaria declaratória — mas travou ali. Em parte, por conta de ações judiciais movidas por fazendeiros e, posteriormente, pela mudança de postura política nos governos Temer e Bolsonaro com relação às demarcações de TIs.
Com o novo governo, os Pataxó voltaram a pressionar. O processo chegou à mesa do Ministério da Justiça em novembro de 2023, após passar pelo crivo do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Desde então, aguarda assinatura.
Em 2024, uma decisão da Justiça Federal determinou que a Funai e o Governo Federal concluam os trâmites da revisão de limites e a demarcação da TI Barra Velha do Monte Pascoal em até dois anos, sob pena de multa de R$10 milhões. Ainda assim, nenhuma medida concreta foi tomada até o momento.
“Essa terra está na mesa do ministro há mais de um ano. E ele não assina. Nem devolve. Nem explica. Só enrola”, conclui Sampaio.
Enquanto o processo segue travado, as comunidades relatam situações de conflito, medo e resistência. “Nós já fizemos a nossa parte. A terra é nossa e já está ocupada por nós. Falta o Estado fazer o que a Constituição manda”, afirma o Cacique Suruí.
Autodemarcação e a resposta a tiros
O processo de autodemarcação começou em 1999. Desde então, os Pataxó vêm sendo reprimidos a cada novo avanço – até 2022, 11 aldeias foram reocupadas, segundo o Mapa da Autodemarcação Pataxó da TI Barra Velha do Monte Pascoal, que registra os avanços na autodemarcação até 2022 e foi produzido pelo Observatório Pataxó do Território. Hoje são cerca de 20 áreas reocupadas. Saiba mais.
“Tiraram os parentes à força da bala. E a gente voltou. Porque essa terra é nossa. Já que o governo não demarca, a gente faz a autodemarcação. E por isso somos perseguidos, presos, mortos”, afirma o Cacique Suruí.
A escalada da violência nas aldeias pataxó tem crescido ano após ano. Em março de 2025, o indígena Vitor Braz, de 53 anos, foi assassinado a tiros por pistoleiros em um ataque noturno à Aldeia Terra à Vista, na TI Barra Velha do Monte Pascoal. Em janeiro de 2023, dois jovens — Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e Nauí Brito de Jesus, de 16 — foram executados por homens armados. Ambos viviam em uma aldeia na Fazenda Condessa, propriedade rural localizada dentro dos limites da mesma TI, reocupada em 2023.
Na TI Comexatiba, território vizinho, no município de Prado, João Celestino Lima Filho, de 50 anos, morreu após ser baleado durante a reocupação da Fazenda Japara Grande, sobreposta à TI, realizada no último dia 4 de abril. A confirmação da morte do índigena foi dada pela Polícia Civil de Teixeira de Freitas, no domingo (06/04). Até agora ninguém foi preso. Em 2024, o adolescente Gustavo Silva da Conceição, de 14 anos, foi morto com um tiro na nuca durante um ataque no mesmo território.
A TI Comexatiba, também conhecida como Cahy-Pequi, é um território tradicionalmente ocupado pelos Pataxó que enfrenta a mesma lógica de exclusão e racismo: desmatamento, loteamento ilegal e omissão do Estado em finalizar a demarcação. Saiba mais.
São constantes as denúncias de cerco armado imposto por pistoleiros, que incluem queima de casas e intimidações contra mulheres. A terra também é sobreposta por uma Unidade de Conservação, o Parque Nacional do Descobrimento.
Esses assassinatos fazem parte de um número ainda maior. Um documento destinado a Lewandowski pela subprocuradora-geral da República Eliana Peres Torelly de Carvalho, obtido por Sumaúma, aponta que, nos últimos 11 anos, 74 pessoas pataxó foram assassinadas no extremo-sul baiano, a maioria na luta pela terra. “Nós pedimos socorro às autoridades! Que demarquem o nosso território. Só assim esses conflitos cessarão”, frisa Suruí.
Diante da omissão histórica do Estado brasileiro e da escalada de violências sofridas nos territórios, as lideranças Pataxó recorreram à esfera internacional. Em março de 2025, o Conselho de Caciques da Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal entregou à Organização das Nações Unidas (ONU) um dossiê completo denunciando assassinatos, perseguições, invasões, conivência de autoridades locais e a paralisação da demarcação da terra.
Segundo o documento, a repressão às autodemarcações pataxó não é obra do acaso, mas resultado de ações orquestradas por grupos com forte interesse econômico na manutenção da posse ilegal das terras, para a produção, entre outros, de cacau e café.
Entre os principais atores contrários à demarcação das terras pataxó estão fazendeiros, grileiros e milicianos que atuam em conluio para impedir o avanço das autodemarcações. De acordo com o dossiê, lideranças indígenas são constantemente ameaçadas por representantes do agronegócio local e por pistoleiros contratados para intimidar e atacar as comunidades.
O documento aponta que setores do Estado — incluindo servidores públicos, representantes do sistema judiciário e órgãos de proteção aos povos indígenas — têm se omitido ou mesmo atuado ativamente contra os indígenas, favorecendo interesses privados sob o disfarce de legalidade.
Além disso, ao lado dos grileiros, milícias armadas ligadas ao narcotráfico consolidaram uma estrutura de poder paralela nas áreas mais vulneráveis do território. Esses grupos impõem o medo por meio de agressões, torturas e assassinatos, e tentam controlar o cotidiano das aldeias, inclusive interferindo na vida cultural e espiritual dos Pataxó. “Jovens são cooptados, lideranças ameaçadas, e diversas famílias vivem em estado constante de alerta”, denuncia Uruba.
O documento exige a responsabilização do governo federal e pede apoio internacional para garantir a proteção das lideranças e a conclusão do processo demarcatório. “A gente cansou de pedir ajuda para o governo. A ONU foi o último caminho que encontramos para dizer: estão matando nosso povo. E a terra, que é nossa por direito, continua na mão dos fazendeiros”, desabafou Uruba Pataxó.
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Novo relatório da Rede Xingu+ registrou mais de 620 km de estradas abertas em Áreas Protegidas só em 2024
A exploração ilegal de madeira se consolidou como uma das principais ameaças à integridade socioambiental da Bacia do Xingu, especialmente nas Terras Indígenas e Unidades de Conservação que compõem o Corredor de Áreas Protegidas, revela relatório Desafios de Proteção na Bacia do Xingu – panorama 2025, da Rede Xingu+. Elaborado pelo Observatório De Olho no Xingu, o estudo analisa os dois primeiros anos do atual governo federal.
Somente em 2024, mais de 620 km de estradas clandestinas foram abertos para escoar toras de alto valor comercial como ipê, jatobá e cedro, facilitando também a entrada de outros crimes ambientais como o garimpo e a grilagem. O impacto é devastador: florestas empobrecidas, igarapés represados, peixes mortos e comunidades ameaçadas.
Os dados levantados têm como base o Sistema Remoto de Alerta de Desmatamento (Sirad X), da Rede Xingu+, o Sistema de Monitoramento da Exploração Madeireira (Simex), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e o projeto MapBiomas.
O documento detalha os efeitos do roubo de madeira nos territórios mais afetados — como o Território Indígena do Xingu (TIX), a Terra Indígena Baú e a Resex Riozinho do Anfrísio — e avalia as ações de combate e fiscalização nos dois primeiros anos do atual governo federal.
Segundo o relatório, as atividades criminosas têm causado impactos na prestação de serviços públicos essenciais de saúde e educação, prejudicando o combate ao fogo e contribuindo para a entrada de armamentos pesados nos territórios indígenas.
A Bacia do Rio Xingu possui cerca de 51 milhões de hectares, entre os estados do Pará e Mato Grosso, numa área composta por florestas densas, várzeas amazônicas e de Cerrado. Nela, está localizado o Corredor de Áreas Protegidas do Xingu, com 26,7 milhões de hectares, e que abriga 26 povos indígenas e centenas de comunidades ribeirinhas que desempenham um papel crucial na conservação da Amazônia e na regulação do clima global.
De acordo com a Rede Xingu+, articulação de 53 organizações, sendo 43 indígenas, 5 ribeirinhas e 5 da sociedade civil, o território vem sofrendo nos últimos anos com o desmatamento provocado por roubo de madeira, incêndios florestais, grilagem de terras e garimpo.
O documento também traz os avanços no combate a esses crimes nos últimos dois anos, graças à retomada de políticas como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e operações de fiscalização, que resultaram na queda de 30,6% no desmatamento na Amazônia Legal e, sobretudo, na Bacia do Xingu, com uma redução de 46% em relação ao período anterior — o menor índice registrado na última década.
Também houve avanços na queda do desmatamento ocasionado pela grilagem de terras, entre 2022 e 2024, por causa do processo de desintrusão das Terras Indígenas Apyterewa e Trincheira Bacajá, em 2023. Outro dado positivo foi a queda de 40% no desmatamento causado pelo garimpo nas Áreas Protegidas.
Onde acontece o roubo de madeira?
O TIX, formado por quatro Terras Indígenas e lar de 16 povos, é o epicentro do problema de roubo de madeira na Bacia do Xingu. As denúncias, formalizadas desde 2019 por associações indígenas e organizações socioambientais, alertam para a gravidade da situação. Entre 2023 e 2024, foram abertos 404 km de ramais ilegais — 68% do total dos últimos cinco anos.
Já a Resex Riozinho do Anfrísio, criada em 2004, enfrenta grave pressão do roubo de madeira, especialmente por grupos do Assentamento Areia, em Trairão (PA). Desde 2017, mais de 1.500 km de ramais ilegais foram abertos na área, afetando comunidades como Boi Morreu e Paulo Afonso. A atividade causa conflitos sociais, com intimidação e coação por parte dos criminosos.
A TI Baú do povo Kayapó, localizada no sudoeste do município de Altamira, é outro alvo prioritário dos criminosos em busca de madeira, que invadem o território, abrem estradas, derrubam árvores e promovem um cenário de destruição e conflito.
A estratégia dos madeireiros se repete com a abertura de ramais ilegais para o roubo e escoamento das madeiras. De acordo com o monitoramento da Rede Xingu +, em sete anos foram abertas 544 km de estradas ilegais para facilitar a exploração da madeira na TI Baú. Esse escoamento geralmente é feito pelo distrito de Castelo dos Sonhos, através de uma ponte sobre o rio Curuá, construída irregularmente.
O que pode ser feito?
De acordo com o documento, as ações coordenadas entre órgãos governamentais, a sociedade civil e as comunidades locais podem desarticular as redes que legalizam a madeira extraída ilegalmente. As fiscalizações precisam ser mais frequentes e urgentes, pois mesmo após operações do IBAMA, a extração de madeira persiste. Além disso, a instalação de bases de fiscalização no território e a continuidade dos inquéritos policiais são cruciais para identificar e responsabilizar os grupos criminosos que atuam na região.
Simultaneamente, o fomento às atividades extrativistas como a coleta de castanha, borracha e óleo de copaíba é uma medida importante para combater o aliciamento das populações locais e garantir a subsistência das comunidades tradicionais.
Garimpo ilegal
A exploração garimpeira ilegal também tem se intensificado nos últimos anos na Amazônia brasileira. De acordo com dados do MapBiomas, até 2023, a área de exploração garimpeira atingiu 283,8 mil hectares, com cerca de 90% dessa atividade no bioma amazônico. No ano passado, 1.643 hectares de floresta foram derrubadas para dar espaço à atividade garimpeira.
De acordo com o sistema de monitoramento Sirad X, entre 2018 e 2023, houve uma perda de mais de 9,9 mil hectares de floresta dentro das Áreas Protegidas da Bacia do Xingu devido ao garimpo ilegal. Desse montante, 85% somente na Terra Indígena Kayapó, o equivalente a 8,4 mil hectares, e que vem ocupando o primeiro lugar no ranking de área invadida por garimpo na região.
Incêndios florestais
Em tempos de mudanças climáticas, o fogo é outro grande desafio no Corredor do Xingu e que vem causando a destruição de florestas, a perda de biodiversidade, a emissão de gases de efeito estufa e a deterioração da qualidade do ar, segundo o monitoramento realizado entre 2010 e 2024.
Somente no ano passado, foram queimados 2.8 milhões de hectares, representando uma média mensal de 215.302 ha, conforme o registro do Mapbiomas Fire Monitor. Essa extensão corresponde a quase a mesma área queimada em 14 anos de monitoramento, de 2010 a 2023, que foi de 2,7 milhões de hectares.
O novo cenário surge como um desafio para as práticas ancestrais de muitas comunidades indígenas do Xingu, já que o fogo sempre foi considerado como um elemento cultural e utilizado para a limpeza de roças, caça e rituais. Com o clima mais seco, o fogo que antes era controlado pode escapar com facilidade e invadir grandes áreas de florestas. Uma das soluções apresentadas e que busca conciliar o conhecimento tradicional com as práticas ancestrais é o desenvolvimento de estratégias de manejo do fogo, por exemplo.
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Os “assopros de apaziguamento” dos indígenas do Rio Negro para proteger corpos e territórios
Eventos climáticos extremos, como dois anos consecutivos de secas recordes e de calor na Amazônia, deixam marcas. Não só nas paisagens, mas também nos corpos e subjetividades de quem vive nas florestas, cidades e comunidades que formam esse bioma.
Entender como se adaptar e como podemos reagir a este problema de escala planetária demanda habilidade de manejar a angústia e tentar impulsioná-la rumo às soluções. A impotência frente a um mundo manipulado pelo poder econômico das grandes corporações favorece o encasulamento e a desagregação, prejudicando as relações humanas e seus coletivos em tempos de inteligência artificial e solidão nas telas.
As comunidades indígenas na Amazônia, em especial os jovens, têm sofrido sérios impactos na saúde mental. Casos de depressão, suicídio, auto-mutilação e aumento do vício em drogas e álcool mostram um quadro que reflete consequências de violências históricas e atuais, acentuadas ainda mais pelo contexto da crise socioambiental.
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A taxa de suicídio entre indígenas no Brasil já supera em quase três vezes a da população não indígena. A proporção destas mortes é mais elevada nos estados do Amazonas e Mato Grosso do Sul, como apontou estudo publicado na Lancet Regional Health Americas, produzido pela Fiocruz e Universidade de Harvard. No município de São Gabriel da Cachoeira (AM), considerado o mais indígena do Brasil, a Prefeitura criou um Comitê Interinstitucional para lidar com a problemática da saúde mental junto aos 23 povos indígenas da região, e em 2024 elaborou um plano municipal de prevenção ao suicídio.
Arlindo Maia (Ye´pârã, nome indígena), guardião dos saberes do grupo Oyeá, do povo Tukano, da Terra Indígena Alto Rio Negro, no Amazonas, conta que a crise ambiental foi prevista pelo seu avô, Lino Maia, nascido no Rio Papuri, entre Brasil e Colômbia. Lino era conhecedor dos lugares sagrados dos Tukano e previu que chegaria um tempo de doenças e de destruição, no qual toda a humanidade sofreria, não só os indígenas, que já tinham passado pela degradação de seus mundos com a violência dos colonizadores.
O começo deste tempo narrado pelo Seu Lino se deu em 2020, na pandemia de Covid 19, revela Arlindo, em conversa gravada na biblioteca do Instituto Socioambiental (ISA), em São Gabriel da Cachoeira, em março deste ano, sobre os impactos da crise climática.
A entrevista com o guardião dos saberes registrou orientações para um ciclo de estudos interculturais voltado para lideranças indígenas do Rio Negro sobre clima, mercado de carbono, adaptação e mitigação às mudanças do clima, em parceria com o ISA e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).
“Nessa virada do tempo, como dizia meu avô, a humanidade vai diminuir. Teremos muitas mortes coletivas devido à vingança da natureza. Estamos vivendo já as consequências do que os antigos previam. Por um lado, me sinto privilegiado por presenciar e atestar o que eles falavam há anos atrás”, ressalta.
Para a humanidade viver bem na natureza, os pajés do tempo antigo sabiam negociar com os waimahsã, seres às vezes traiçoeiros, que têm um certo ciúme dos humanos, conta Arlindo. Para resolver problemas ambientais, como, por exemplo, falta de chuva ou escassez de peixe, os pajés sabiam fórmulas sagradas para apaziguar a situação e retomar a harmonia, curando o mundo. Em Tukano, esse conjunto de práticas é chamado de bahsese e constitui um amplo e complexo conhecimento sobre a saúde do corpo e do território.
“Em seus benzimentos, eles faziam assopro de conciliação buscando sempre harmonia com a natureza, onde coabitam muitos seres e donos dos lugares. Os não indígenas provocam a fúria e a guerra com estes seres (waimahsã) porque constroem onde não pode, exploram a terra com mineração, barragens e outros empreendimentos que dizem ser para o progresso. Não sou contra o progresso, mas ele não pode acontecer distanciado da cultura, visando o poder e o dinheiro. A palavra poder é que começa a causar o problema”, constata.
Embaralhamento
Na língua Tukano, um dos quatro idiomas indígenas co-oficiais em São Gabriel da Cachoeira, é difícil traduzir a expressão mudanças climáticas. No pensamento de Arlindo, o termo não transmite o que estamos vivendo com o colapso dos ecossistemas. Su´riásche, que em Tukano significa embaralhamento, é o que mais se aproxima do que observamos estar ocorrendo com a natureza, na vivência de Arlindo.
“Estamos sem ordem do clima, do tempo, das estações. Vivemos em um embaralhamento e não podemos mais prever os ciclos naturais”. Este distúrbio retira o encadeamento natural dos ciclos, o que acarreta males em nós seres humanos, explica o guardião.
Assim, ficamos também confusos e perturbados, sem orientação. “Temos que pensar no valor das palavras, porque elas têm muito poder em nós. Nós somos Pamurimasã, que significa gente do surgimento. Neste surgimento existe diversidade e muitas línguas são faladas. E precisamos entender esta diversidade para sobreviver”.
Para os Tukano, nos ensina Arlindo, o clima é observado nas constelações. No céu escuro estrelado está o caminho dos ciclos climáticos que regem a vida na Terra. “As constelações não mudaram e elas ainda nos apontam o caminho. Mas, nós, viventes, causamos este problema de embaralhamento do clima”.
Crisálida
O debate sobre o enfrentamento às mudanças climáticas deve passar pelo fortalecimento da educação indígena, da cultura, da saúde e dos saberes locais sobre o território. Arlindo brinca que a cultura do seu povo está em estágio de “crisalidez”. Esse neologismo expressa um estado de crisálida, quando o ser não se move porque está se transformando em algo novo. Assim ele vê sua cultura nos tempos atuais.
Por isso, Arlindo enfatiza a urgência de criar alternativas que garantam a permanência dos jovens no território, assegurando a continuidade das trocas geracionais e a transmissão dos conhecimentos. Nos últimos anos, a saída de jovens das Terras Indígenas do Rio Negro aumentou fortemente com o vestibular indígena e as cotas nas universidades, como UnB, Unicamp e UFSCAR.
Sem diminuir a importância e a conquista da política de cotas indígenas nas universidades, o que se observa é que é necessário também ter alternativas de formação para quem está no território e almeja estudar em contexto intercultural, fazendo articulações entre saberes indígenas e não indígenas.
Assim, a proposta do ICIPRN - Instituto de Conhecimentos Indígenas e Pesquisa do Rio Negro, que é registrada no Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA Wasu) do Rio Negro, principal documento que indica formulações de políticas e projetos para os territórios dos povos rionegrinos, deve ser priorizada como parte fundamental para o enfrentamento das mudanças climáticas. Além disso, iniciativas como o Fundo Indígena do Rio Negro, que fomenta a sociobioeconomia e atividades da cultura indígena, na visão de Arlindo, precisam ser fortalecidas para que a cultura e os saberes indígenas sobrevivam à virada dos tempos.
Rede de pesquisadores indígenas
Mauro Pedrosa, do povo Tukano, é agente indígena de manejo ambiental (AIMA) e integra uma rede que há 20 anos atua na Bacia do Rio Negro fazendo pesquisas e observações sobre o meio ambiente e a cultura. Os registros são feitos com tablets e diários, onde os AIMAs fazem anotações e descrevem observações relacionadas às suas comunidades, vivências cotidianas e relação com a floresta e o rio.
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Em sua rotina de trabalho, Mauro também lê os diários dos outros pesquisadores indígenas e apoia na organização e gestão do conhecimento gerado por essa rede. Tem lhe chamado a atenção as narrativas sobre escassez de peixe, dificuldades de trabalho na roça devido ao calor, perda de cultivos por conta do sol escaldante e de desequilíbrios na fauna, como ataques de caititus (porcos do mato) nas roças de mandioca, assim como apodrecimento de manivas.
“Acredito que as futuras gerações não terão peixe para comer no Rio Tiquié se continuar deste jeito. Os AIMAs contam que os homens estão mergulhando para pegar peixe porque não conseguem pescar. Pari-Cachoeira, por exemplo, não tem mais nada de peixe”, informa Mauro, referindo-se ao segundo maior distrito da TI Alto Rio Negro, no Alto Rio Tiquié, próximo à fronteira com a Colômbia.
Quando ele era criança, recorda, o tempo não era como agora, tão quente e instável. Mauro, que tem 38 anos, lembra que antigamente era possível fazer previsões sobre os ciclos anuais, assim como os períodos de seca e cheia do rio. Ele conta que os AIMAs também têm relatado aumento de temporais, com muitos trovões e raios, mas com menos chuva do que antes.
“Fico preocupado, porque os nossos conhecedores estão morrendo e com eles morrem os conhecimentos. Sem eles, vamos ter mais doenças nas comunidades porque vamos ficar desprotegidos. Por isso é muito importante essas oficinas dos AIMAs com repasse dos conhecimentos dos antigos para os mais jovens. Isso é que precisamos, pois quando o conhecedor está forte na comunidade, ele protege e cuida da comunidade”, conclui.
OMS recomenda prioridade à saúde mental
A Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou uma análise de políticas públicas durante a Cúpula Ambiental Estocolmo+50 indicando que o apoio à saúde mental seja incluído nas respostas nacionais às mudanças climáticas. O próprio Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) reconheceu que o aumento acelerado das mudanças climáticas constitui grave ameaça à saúde mental e ao bem estar psicossocial, sobretudo, das populações mais vulneráveis, como os indígenas.
A médica espanhola Maria Neira, diretora do Departamento de Meio Ambiente, Mudanças Climáticas e Saúde da OMS, enfatizou que "os impactos das mudanças climáticas fazem cada vez mais parte do nosso cotidiano, e há muito pouco apoio dedicado à saúde mental disponível para as pessoas e comunidades que lidam com perigos relacionados ao clima e riscos de longo prazo".
A OMS destacou que alguns países vêm construindo um caminho a ser seguido, dando o exemplo das Filipinas, que reconstruíram e melhoraram os serviços de saúde mental após o tufão Haiyan em 2013, um dos mais potentes ciclones tropicais já registrados na história.
*Agradecimentos a Aloisio Cabalzar, Arlindo Maia Tukano, Danilo Bruxellas Parra e Renato Martelli pela revisão e comentários feitos para a publicação desta notícia.
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No mês que marca a luta das mulheres, o primeiro episódio da segunda temporada do boletim de áudio produzido pelo ISA ouve ativistas da sociedade civil e lideranças indígenas, quilombolas e extrativistas
Na esteira das celebrações do 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, o Instituto Socioambiental (ISA) lança nesta sexta-feira (28/03) a segunda temporada do “Vozes do Clima”, boletim de áudio que propõe levar informações a povos e comunidades tradicionais sobre os temas relacionados à pauta climática. O primeiro episódio de 2025 fecha as ações deste mês, trazendo o olhar de lideranças mulheres sobre a COP30 (Conferência das Nações sobre Mudanças do Clima), que será realizada em novembro, em Belém (PA).
Guardiãs da cidade, do campo, das florestas e das águas, elas estão na linha de frente de ações concretas de enfrentamento aos efeitos das mudanças climáticas e, por isso, têm muito a dizer sobre o que esperam da COP30. Além disso, podem apontar quais alternativas o Brasil deve adotar para garantir o respeito aos modos de vida de povos e comunidades tradicionais e das populações mais vulneráveis das periferias e favelas das cidades.
Neste episódio, o “Vozes do Clima” ouviu Letícia Moraes, vice-presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS); Cristiane Julião, indígena do povo Pankararu e uma das fundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga); Fran Paula, quilombola que integra o Grupo de Trabalho de Meio Ambiente e Agricultura da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq); Amanda Costa, ativista climática e fundadora do Instituto Perifa Sustentável; Suely Araujo, Coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima; e Adriana Ramos, secretária-executiva do ISA. Todas trouxeram em suas falas a necessidade de a COP30 reconhecer as demandas de povos e comunidades tradicionais e, assim, apontar ações efetivas que apoiem as populações mais afetadas, sobretudo as mulheres.
Escute aqui!
“Nosso endereço é a luta”
“Espaços como as COPs são espaços que ainda não têm tanta inserção, ou é mínima a participação efetiva dos povos e comunidades tradicionais que possam levar as demandas, apresentar as soluções que nós já vivenciamos em nossos territórios. E falando especificamente da demanda das mulheres extrativistas para a COP 30, com certeza nós levaremos, com muita ênfase, a necessidade que é defender e fortalecer os nossos territórios como uma estratégia essencial para a proteção da vida no planeta”, destaca Letícia Moraes, vice-presidente do CNS.
A liderança extrativista, que vem da comunidade Nossa Senhora da Boa Esperança, localizada em Curralinho, na região do Marajó, no Pará, trouxe para o episódio uma poesia de sua autoria, destacando quem está na luta cotidiana pela proteção territorial e do clima.
“Quem somos? Somos homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e anciões. Nós somos os filhos e as filhas da mata. Mãe seringueira, mãe castanheira, somos sangue amazônico, açaí. Bacaba, patao e miridi. Somos corpo de mandioca, farinha de tapioca, de crueira, fruto da terra, das mãos que planta, cultiva e rega. Nós somos o território.
Por muito tempo fomos os outros e a luta nos garantiu espaço na Constituição. Por isso, também somos milhões e milhares. Reservas extrativistas, projetos de assentamento extrativistas, projetos de desenvolvimento sustentável. Flonas, frotas. Nós somos o território extrativista. Semente da resistência, netos da ancestralidade cabocla. Nós somos as vozes que ecoam. Nós somos os e as extrativistas.
Somos milhões de milhares que o nosso endereço é a luta”.
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A crise tem cor, gênero e endereço
Embora estejam diretamente ligadas às ações de enfrentamento à crise climática, são as mulheres as mais afetadas por ela.
Segundo o relatório Justiça Climática Feminista: um Quadro para Ação, elaborado pela ONU Mulheres em 2023, caso o cenário de aumento de três graus na temperatura do planeta se concretize, mais de 158 milhões de mulheres e meninas serão levadas à pobreza até 2050 – 16 milhões a mais do que o número esperado para homens e meninos no mesmo cenário. Além disso, 236 milhões de mulheres e meninas poderão sofrer com a insegurança alimentar – 131 milhões a mais do que o número esperado entre homens e meninos.
A quilombola Fran Paula espera que a COP30 também considere essa interseccionalidade e avance na promoção da justiça racial.“São protagonistas dos processos de soberania dos territórios. Seja na defesa desses territórios, na sua gestão ambiental, dos seus bens naturais, das águas, das florestas, mas também como no manejo. Somos nós mulheres que manejamos a terra, as florestas. Fazemos da agricultura um espaço também ancestral de guardião de práticas tradicionais e ecológicas, que conservam o solo, que conserva o meio ambiente, que promove a saúde e a vida”.
Cristiane Julião também espera que as mulheres indígenas sejam efetivamente ouvidas, nesse momento em que o Brasil e o mundo param para debater os diversos problemas ambientais, econômicos e sociais em decorrência da crise climática.
“Eu acredito muito que nós, mulheres, devemos chegar nessa Conferência, para quem for e para quem fica também, com a força e a coragem da mulher indígena, sobre a forma como nós mantemos os nossos territórios, mantemos as nossas articulações, mantemos a nossa força de vontade e como nós acreditamos o que seja bem viver. Bem viver para todos, na manutenção da sociobiodiversidade, no compartilhar de ecossistemas, porque quem tá de fora sempre acha que sabe o que é melhor para nós sem nos ouvir”, enfatiza.
Valorizar conhecimentos ancestral e antirracista dos territórios
Na avaliação das lideranças ouvidas pelo “Vozes do Clima”, fortalecer os territórios envolve lutar por políticas públicas que garantam a autonomia dos grupos que neles vivem, acesso a serviços essenciais e segurança fundiária. Essas medidas são fundamentais para que povos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais e populações que vivem nas periferias e favelas das cidades desenvolvam ações de enfrentamento aos impactos da emergência climática e que possibilitem seguir com seus modos de vida que geram conservação.
Pensando nesses desafios, Amanda Costa, ativista climática e fundadora do Instituto Perifa Sustentável, afirma que a COP 30 precisa fazer a conexão entre o debate internacional, global e o que acontece nos territórios.
“É importantíssimo valorizar o conhecimento tradicional, ancestral, antirracista e decolonial, trazendo soluções para esses territórios, mas também fortalecendo as comunidades que muito tempo vêm resistindo e vêm desenvolvendo suas próprias soluções, seus próprios caminhos, suas próprias próprias possibilidades, mas que muitas vezes não conseguem recursos, não conseguem conexões, não conseguem oportunidades para aumentar o impacto das suas ações e ampliar o projeto de transformação política que já está sendo desenvolvido nos seus territórios”.
O que é o “Vozes do Clima”?
O boletim de áudio “Vozes do Clima” é uma realização do ISA, com produção da produtora de podcasts Bamm Mídia e apoio da Environmental Defense Fund (EDF). A identidade visual foi concebida pelas designers e ilustradoras indígenas Kath Matos e Wanessa Ribeiro. Além de ser distribuído via Whatsapp e Telegram, o programa também poderá ser ouvido nas plataformas de áudio Spotify, iHeartRadio, Amazon Music, Podcast Addict, Castbox e Deezer.
O primeiro episódio de 2025 abre a segunda temporada do “Vozes do Clima”, que contará com um total de 12 edições e abordará os diversos debates sobre clima e socioambientalismo.
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Relatório do Instituto Socioambiental (ISA) aponta erros metodológicos, custos subestimados e ausência de análise de riscos na avaliação do projeto ferroviário
Um estudo realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) aponta falhas metodológicas e conceituais na Análise Socioeconômica de Custo e Benefício (ACB) da Ferrogrão, comprometendo os resultados positivos esperados para o projeto. Segundo o relatório, erros nos cálculos de custos e benefícios, omissão de externalidades relevantes, definição inadequada do escopo da análise e ausência de uma avaliação de riscos tornam os resultados apresentados pouco confiáveis.
“As falhas comprometem a validade dos resultados apresentados pela ACB Ferrogrão como instrumento de apoio à tomada de decisão”, destaca o estudo. A falta de rigor metodológico pode levar a decisões equivocadas, com impactos negativos para a sociedade e o meio ambiente. O relatório alerta que a análise pode mascarar custos para grupos vulneráveis, como comunidades tradicionais e trabalhadores informais, enquanto beneficia setores como produtores rurais e usuários da infraestrutura, incluindo tradings.
Custos subestimados e riscos ignorados
O estudo também sugere que os custos de construção e operação da ferrovia podem estar subestimados. De acordo com o ISA, a análise desconsidera despesas com compensações ambientais e sociais, adaptação ao risco climático e utiliza parâmetros de custo irrealistas, baseados no custo de construção da Ferrovia de Integração Centro-Oeste (FICO 1) pela Vale.
Mariel Nakane, assessora técnica do ISA, ressalta que ainda há discussões fundamentais a serem realizadas antes de submeter o projeto à concessão. “As externalidades socioambientais negativas recaem sobre terceiros, como comunidades tradicionais. O projeto só se torna viável com uma redistribuição de benefícios, em forma de compensações. As comunidades entendem o que vão perder e estão de acordo em serem compensadas? Isso deve ser discutido antes de o projeto ser submetido à concessão. Caso contrário, o concessionário herdará um legado de conflitos distributivos e futuras judicializações. Quem quer ser o concessionário de uma nova Belo Monte?”, questiona.
Problemas na metodologia da ACB Ferrogrão
A Análise Socioeconômica de Custo e Benefício da Ferrogrão foi realizada pelo Ministério dos Transportes em parceria com as empresas Tetra+ e EDLP. Esse estudo complementa o "Caderno Socioambiental" do projeto, que integra os Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), a serem protocolados no Tribunal de Contas da União (TCU) no primeiro semestre de 2025.
A ACB concluiu que “condicionado aos impactos diretos e indiretos estudados, a implementação do projeto EF-170 traz à sociedade ganhos que suplantam as possíveis perdas, sugerindo ser interessante o prosseguimento do projeto sob esta ótica”. No entanto, o estudo do ISA afirma que a análise não seguiu as diretrizes metodológicas do Guia Geral de Análise Socioeconômica de Custo-Benefício de Projetos de Investimento em Infraestrutura, lançado pelo governo federal em 2022.
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Povos indígenas do Xingu apresentam condicionantes socioambientais para nova fase da Ferrogrão
Principais críticas ao estudo de viabilidade
Unidade de análise incorreta
A análise original não considera a hidrovia do Tapajós como parte essencial do projeto, ignorando custos e externalidades, especialmente os impactos socioambientais do complexo de Estações de Transbordo de Carga (ETCs) e da hidrovia sobre povos e comunidades tradicionais.
“A Ferrogrão pretende aumentar em cinco vezes a movimentação na hidrovia do Tapajós, mas não a considera na análise de viabilidade. Seria como atestar a viabilidade de uma usina hidrelétrica na Amazônia sem considerar os custos de sua linha de transmissão! É exatamente isso que aconteceu com o desastre de Belo Monte e que esperamos que nunca venha a acontecer com o Tapajós”, alerta Daniel Thá, economista da Kralingen Consultoria.
Externalidades socioambientais ignoradas
A ACB desconsidera adequadamente as externalidades do desmatamento induzido e da ampliação do sistema de transporte, que afetam povos e comunidades tradicionais. O estudo presume que não haverá indução de desmatamento, justificando-se na disponibilidade de áreas de pastagem para conversão agrícola na região.
Ausência de análise de risco
Outro ponto crítico é a ausência de uma avaliação de riscos e de sensibilidade, elementos fundamentais para a ACB. Não há consideração sobre riscos climáticos, tanto em relação à resiliência da infraestrutura quanto à perda de produtividade agrícola.
“O próprio Ministério dos Transportes desenvolveu o AdaptaVias, projeto que traz o estado da arte na avaliação de riscos climáticos para ferrovias e rodovias, mas não o aplicou no caso da Ferrogrão. A análise do risco climático deveria se tornar de praxe, informando, inclusive, a matriz de riscos de uma eventual concessão”, afirma Thá.
O risco de sobrecustos da construção também é destacado como um problema grave. O estudo aponta que, ao atravessar a floresta amazônica, os custos poderiam ser consideravelmente mais altos. Enquanto o projeto da Ferrogrão prevê um custo de R$ 11 milhões por quilômetro, o valor considerado para a FICO 1, executada pela Vale, foi de R$ 28 milhões por quilômetro.
Conclusão
O estudo do ISA alerta que as falhas metodológicas na análise distributiva e na avaliação de alternativas de implementação da Ferrogrão podem gerar impactos significativos sobre grupos prejudicados e comprometer a estruturação do investimento. Além disso, o relatório sugere que o projeto não deve ser financiado pelo governo, seja por implementação direta ou subsídios, pois não geraria externalidades positivas suficientes para justificar o aporte público.
“O principal critério para o governo decidir sobre subsidiar um projeto deve ser a geração de benefícios sociais líquidos, especialmente quando o projeto não é viável sob a ótica privada. Um exemplo no setor de transportes é a oferta de transporte público coletivo, que, apesar de ser geralmente deficitário em termos operacionais devido à baixa capacidade de pagamento dos usuários, gera significativas externalidades positivas e precisa, portanto, ser subsidiado. Evidentemente, esse não é o caso da Ferrogrão”, conclui o estudo.
O que é a ACB?
A Análise Socioeconômica de Custo-Benefício (ACB) é um método utilizado para avaliar projetos de investimento com base nos efeitos ao longo de seu ciclo de vida, comparando-os a um cenário sem o projeto. Esse modelo considera custos e benefícios, incluindo intangíveis e externalidades, expressos em métrica monetária.
“A Análise Socioeconômica de Custo-Benefício é uma ferramenta essencial para darmos racionalidade aos investimentos de interesse público no Brasil, sejam diretos ou na forma de subsídios, e não podemos desperdiçar a oportunidade de usá-la no caso da Ferrogrão”, afirma Daniel Thá.
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