À espera da demarcação, comunidade guarani mbya na TI Kuaray Haxa enfrenta oposição de ambientalistas a acordo de gestão com Reserva Biológica Bom Jesus

No litoral do Paraná, famílias indígenas do povo Guarani Mbya estão tendo seu território e modo de vida tradicional ameaçados por setores contrários à gestão compartilhada de áreas de sobreposição entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação.
Quem denuncia a situação são as lideranças da comunidade Terra Indígena Kuaray Haxa, uma terra em processo de demarcação pela Funai que é sobreposta pela Reserva Biológica Bom Jesus, uma área de quase 35 mil hectares entre os municípios de Antonina, Guaraqueçaba e Paranaguá (PR).
“A Rebio Bom Jesus foi criada em cima de nosso território tradicional sem que fôssemos consultados. Passamos então a ser perseguidos pelos gestores do parque, tratados como invasores em nossa própria terra. Tratados como ameaças à Mata Atlântica na qual nossos parentes sempre viveram e a qual temos como missão defender”, afirmam os Guarani em uma carta divulgada nesta quinta-feira (17/4).
No último dia 20 de fevereiro, a comunidade guarani e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) comemorou a assinatura de um Termo de Compromisso que regulariza a presença tradicional de famílias indígenas na área sobreposta à Unidade de Conservação – após mais de 10 anos de disputas judiciais.
Reconhecidas como guardiãs da Mata Atlântica, as comunidades guarani investiram no diálogo com o corpo técnico do órgão ambiental para construir soluções de gestão compartilhada para a área, buscando compatibilizar os direitos territoriais e culturais de seu povo com a conservação da biodiversidade em um dos biomas mais ameaçados do mundo.
Após a assinatura do termo, no entanto, um setor de organizações ambientalistas da sociedade civil passou a questionar o acordo, sugerindo que o modo de vida guarani colocaria em risco a biodiversidade na Rebio Bom Jesus, por conta da caça de animais silvestres e que os indígenas não seriam historicamente originários desta região, tendo sido supostamente “alocados” na área.
As manifestações contra o acordo evocam a tese anti-indígena do “marco temporal”, ignorando a tradicionalidade da ocupação guarani nessa região de Mata Atlântica. Segundo uma nota técnica juntada ao processo pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), a comunidade de Kuaray Haxa habita tradicionalmente o local antes mesmo da criação da Rebio Bom Jesus, instituída em 2012.
Os opositores do acordo ignoram também os debates históricos sobre as formas mais adequadas de garantir a preservação ambiental entre comunidades indígenas e órgãos ambientais em áreas de sobreposição entre Unidades de Conservação e Terras Indígenas – além de estudos recentes que documentam as contribuições dos Guarani para a conservação da biodiversidade e para mitigar a caça ilegal na área, indicada em documentos do próprio ICMBio.
Vera Yapuá Rodrigo Mariano, assessor jurídico da CGY, organização representativa do povo Guarani, lembra que a legislação brasileira reconhece a compatibilidade entre a proteção do meio ambiente e os direitos dos povos indígenas a seus territórios, garantindo o exercício das atividades tradicionais. “Além das comprovações científicas de que os povos indígenas protegem as florestas, temos uma garantia que partiu do Supremo Tribunal Federal (STF), quando da definição das teses do tema 1031, caso de repercussão geral RE 1017365”, destaca o assessor, que atua na defesa da comunidade.
O posicionamento das organizações preservacionistas também é criticado pelo Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Guaraqueçaba (PR), que congrega comunidades caiçaras, quilombolas e indígenas da região. Em abril, o fórum lançou uma Carta em defesa da ocupação tradicional da TI Kuaray Haxa, que angariou apoio de diversas associações comunitárias e socioambientais, entre as quais Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Instituto Socioambiental (ISA) e Terra de Direitos.
Sobre o Termo de Compromisso
Nesse acordo entre a comunidade indígena e o órgão ambiental, duas zonas de uso foram estabelecidas para os Guarani:
- Zona de uso intensivo (19 hectares, dos 34.179,74 hectares totais da Reserva): destinada para construção de moradias e infraestrutura à comunidade, como roças e criação de animais domésticos.
- Zona de uso disperso (6.698 hectares, dos 34.179,74 hectares totais da Reserva): destinada para uso que respeite o modo de vida tradicional (nhandereko) em conformidade com as regras do Termo de Compromisso.
O ICMBio – que construiu o Termo de Compromisso com o envolvimento do Ministério Público Federal e da Funai – ressalta que desde a ocupação indígena não há indícios de impacto ambiental significativo na fauna e que as regras para a caça, assinadas no acordo, são respeitadas. Confira a íntegra do documento.
O Programa Nacional de Monitoramento da Biodiversidade – Programa Monitora, será um dos responsáveis por esse tipo de acompanhamento, ainda que o termo assinado conceda segurança jurídica para as partes, auxiliando na gestão da Unidade de Conservação e no monitoramento ambiental que estabelece limites ao uso dos recursos naturais.
Mais informações: comissao@yvyrupa.org.br
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