Extremos de seca e calor foram sentidos e reportados pelos Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (AIMAs), com impactos nas práticas de manejo das comunidades
Em 2025, pesquisadores indígenas de comunidades do Rio Tiquié completarão 20 anos de estudo dos ciclos anuais. Eles são conhecidos regionalmente como Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (AIMAs) e sua pesquisa foca em processos e fenômenos cíclicos, que acontecem todos os anos ou em intervalos de tempo mais longos, mas regulares.
Observam peixes, anfíbios e formigas, que geralmente se reproduzem nos mesmos dias, depois de fortes chuvas que acontecem em algumas estações entre novembro e abril. Também, as plantas que estão dando flores e frutos que alimentam as pessoas e os animais e os esforços dos conhecedores para curar cada época e garantir que transcorram de forma sã, sem infortúnios ou doenças. Diariamente, além de observar esses e outros temas socioambientais, eles também tomam notas em seus cadernos.
O ano no Rio Tiquié começa quando cai a constelação da Jararaca (Aña poero na língua tukano, conhecida em outras regiões da Amazônia como Boiaçu) e tem início uma estação com chuvas mais regulares (em relação aos três meses anteriores) e alguns repiquetes do rio, nomeados conforme as partes do corpo da cobra que estão alcançando o horizonte ao poente.
Essa estação se estende por novembro e dezembro. Assim, em novembro são realizados encontros entre os AIMAs e a equipe do Instituto Socioambiental (ISA) para ler as anotações e organizá-las para produzir uma descrição conjunta daquele ano. Ao longo dos anos, a persistência em realizar esses encontros motiva os pesquisadores indígenas a manterem e aprofundarem suas observações e anotações.
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Neste ano, o encontro ocorreu entre os dias 15 e 23 de novembro, na comunidade Cunuri-Ponta (Wapunuhku), no médio curso do Tiquié. Estiveram presentes todos os atuais 22 AIMAs dessa região, representando 18 comunidades de seis etnias (Tukano, Desana, Tuyuka, Yebamasa, Tariana e Yuhupdeh).
Participaram ainda três conhecedores: Nazareno Marques (Tukano de Moopoea), Teodoro Barbosa (Yebamasa de Pinokope) e Januário Alves (Tuyuka de Ahkãrabua), além de moradores do local, uma equipe do ISA (Aloisio Cabalzar e Danilo Parra, com a cineasta Mariana Lacerda).
Além das anotações trazidas pelos AIMAs em seus diários, são levadas para esses encontros informações produzidas em outros contextos e escalas espaciais, que possam contribuir na interpretação do ciclo anual. A principal delas são as narrativas que explicam a estrutura e o funcionamento do território-cosmos tukano, comentadas pelos especialistas presentes.
Na oficina, no primeiro momento, os diários foram lidos e alguns de seus aspectos foram destacados: os pulsos do rio com os nomes das estações, as etapas do trabalho agrícola, as migrações e reproduções dos peixes, e as florações e frutificações das plantas.
Em seguida, foi elaborada uma linha do tempo horizontal, tendo como primeira referência o nível do rio, plotando os outros temas em níveis inferiores do papel. Finalizada essa parte, foram escritos três textos sobre o ano completo, um por sub-região – Alto Tiquié, Rio Castanha e Médio Tiquié – divididos em seções para cada uma das principais constelações que marcam as estações do ano. Ao mesmo tempo, foram elaboradas representações gráficas do calendário anual, também uma para cada sub-região. São desenhos grandes compostos coletivamente.
Um assunto que foi desenvolvido nesse encontro com os conhecedores foi a estrutura do universo em camadas e como elas estão interrelacionadas, como o manejo do mundo feito pelos especialistas requer manejar energias, água, ar e outras substâncias vitais entre elas. Essas camadas também estão estruturadas a partir de instrumentos de criação, assim como o corpo humano – banco, suporte-de-cuia, cuia, lança-chocalho, dentre outros.
A cura de doenças é concomitante à cura do mundo em seus devidos tempos. Foram identificadas 13 camadas, começando pela mais profunda, Wamudia, o Rio Umari, até a mais alta, Karãkoditapati, lago de sumo de frutos doces, situada acima da camada das estrelas e da qual se pode buscar alívio para os períodos de quentura extrema.
Em duas rodas de conversa noturnas, esse tema foi exposto pelos conhecedores, assim como benzimentos relacionados. Na segunda sessão noturna, também foram colocadas questões específicas sobre aspectos que chamaram a atenção no ciclo anual que se encerrou.
Esse é o segundo ano de seca extrema em toda a Amazônia, com déficits significativos de chuvas e muitos rios atingindo seus níveis mais baixos já registrados. É o caso dos rios Solimões, Purus e Madeira, cujos leitos se transformaram em extensos bancos de areia, prejudicando o abastecimento de água, o transporte e a pesca.
No porto de Manaus, o Rio Negro atingiu o segundo recorde consecutivo de seca, algo inédito em mais de 120 anos de registros. Como esse local está próximo à confluência com o Solimões, essa medição reflete a influência de ambos, com o Solimões drenando as águas do Negro.
Os pontos de medição do Rio Negro acima também mostraram vazões acentuadas, mas não alcançaram níveis extremos, até porque o período de maior vazão acontece nos primeiros meses do ano nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos.
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Impactos na agricultura e na pesca
O Alto Rio Negro, mesmo sendo uma região significativamente mais chuvosa, teve o segundo ano consecutivo com períodos mais secos e quentes entre os meses de agosto e outubro, com impactos na agricultura familiar e na pesca, principais atividades da economia e soberania alimentar das comunidades indígenas.
Segundo os AIMAs, os tubérculos plantados nas roças não resistiram e tanto as mandiocas quanto frutíferas plantadas e silvestres, secaram com as altas temperaturas. Por outro lado, os verões com vários dias de sol e calor intenso propiciaram a queima de maior número de áreas abertas para novos roçados. Com a queima das roças, apareceram muitos besouros mereasipama nos ingazeiros, que são comestíveis.
Observaram também muitas florações na floresta no final do ciclo passado e nesse, como japurá da beira do rio, mas nem toda floração frutificou. As frutas que produziram muito foram patauá (wahkarika), uacu, umari, pupunha e ingá-de-metro; mas deu pouco buriti e ucuqui.
Aves como tucano, japus e japins apareceram mais nesse último ciclo e migrações dos animais também continuaram, como caititu, queixadas e macacos-barrigudos. Porco caititus e macacos atacaram mais as roças em todo o Rio Tiquié, comendo as frutas plantadas que são alimento. O mesmo aconteceu com periquitos e papagaios comendo muito os frutos das palmeiras ao redor das comunidades.
A pesca ficou mais difícil com a estiagem e a seca dos rios, muitos frutos dos quais os peixes se alimentam nos igapós caíram no solo seco da mata, assim os peixes ficaram magros e sem gordura. As grandes estiagens facilitaram também o emprego de práticas de pescaria mais predatórias, como mergulhos, arrasto com redes nas praias e tinguijamentos nos afluentes, levando os peixes a fugirem para outros lugares. Isso causou a escassez de peixes no Rio Tiquié.
No Alto Tiquié, não foram observadas piracemas de aracu-riscado (Leporinus agassizii) e araripirá (Chalceus macrolepidotus). Também não aconteceram migrações de sarana (Curimatella alburna), já que o rio secou muito.
Tanajuras (dusa) revoaram o ano todo, depois que chovia bastante, e não apenas nas esperadas épocas de reprodução – fenômeno atribuído às mudanças recentes nos ciclos.
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O que chamou mais a atenção foram os verões intensos nos últimos meses do ano indígena do Rio Tiquié. Como tem sido repetidamente reportado pelos AIMAs nos últimos anos, o calor forte dificulta a lida nas roças, reduzindo o horário de trabalho às horas de sol menos intenso, e também desregula vários ciclos de vida.
Em 2024, houve o agravante de chegar muita fumaça de longe, com a piora da qualidade do ar, provocando mais doenças, como doenças respiratórias, diarreia e malária. Por outro lado, houve redução do número de suicídios nas festas, com mais preocupação e realização de proteção pelos conhecedores dos rituais.
Os AIMAs seguem vivenciando seus espaços no rio, na floresta, nas roças e capoeiras onde fazem seu manejo cotidiano. Suas anotações, ao longo do tempo, ajudam a entender como essas paisagens vão se reproduzindo e as relações que as constituem se renovam.