Medida inédita responde denúncia sobre descumprimento da consulta livre, prévia e informada para a instalação do Centro de Lançamentos de foguetes. Veja linha do tempo do caso
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) recomendou que o Brasil titule os territórios quilombolas do município de Alcântara, na costa maranhense, e siga em relação ao caso o que está previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a consulta livre, prévia e informada sobre projetos e medidas que afetem povos indígenas e comunidades tradicionais (saiba mais nos boxes logo abaixo).
É a primeira vez na história que a organização faz recomendações sobre comunidades quilombolas no Brasil. A medida é resultado da denúncia apresentada, em 2019, contra as violações dos direitos dessas populações e o descumprimento da Convenção 169 por parte do governo brasileiro na implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), na década de 1980. Naquele momento, mais de 300 famílias, de 32 comunidades, foram expulsas de suas casas.
Desde essa época, o governo tenta ampliar a base aeroespacial, o que pode afetar outras centenas de famílias. Ao longo de quatro décadas, uma série de planos foi apresentada com esse objetivo e o Estado brasileiro também cometeu outra série de violações dos direitos dos quilombolas (saiba mais na linha do tempo no quadro ao final da reportagem).
Um comitê tripartite, composto por representantes governamentais, de trabalhadores e empregadores, estabelecido conforme as regras da OIT, examinou a ação apresentada em 2019 e aprovou o informe do último dia 15/6, com uma lista de recomendações ao governo.
A denúncia foi apresentada pelo Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar de Alcântara, em nome das comunidades quilombolas, do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe) e da Associação do Território Quilombola de Alcântara (Atequila).
O que é a Convenção 169 da OIT?
A Convenção 169 da OIT foi ratificada pelo Brasil em 2002 e entrou em vigor em 2003. A norma é um importante instrumento para povos indígenas e comunidades tradicionais, por assegurar o direito à consulta livre, prévia e informada sobre qualquer medida que afete essas populações, levando em consideração seus modos de vida e cultura. Tendo ratificado a Convenção, o país tem de respeitar o tratado e as determinações de seus órgãos, mas, na prática, não é obrigado a cumpri-las porque não há mecanismos institucionalizados para isso.
“O Estado brasileiro possui um histórico de não cumprimento de decisões internacionais, quer seja no âmbito da ONU, como é o caso da OIT, quer seja no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O Estado não diz que não vai cumprir, mas, na prática, não cumpre. Ou, quando cumpre, cumpre pela metade. E nós vamos nos mobilizar para cobrar o cumprimento dessas recomendações”, promete o quilombola e cientista político Danilo Serejo.
“Espero que o governo faça a titulação, que nenhum empreendimento venha para dentro do território, sem que antes nos consulte. Feita a titulação, teremos segurança jurídica para discutir com qualquer empresa que venha se instalar aqui dentro”, diz a presidente da Atequila, Valdirene Ferreira.
“A recomendação é extremamente importante para fazer com o Estado o que a gente vem tentando fazer, que é construir um processo pedagógico para que ele entenda que é obrigado, que não é simplesmente [dizer] ‘ah, não vou fazer consulta’. É um dever tanto de fazer a consulta, quanto de titular os territórios quilombolas”, aponta a assessora jurídica da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Vercilene Dias.
Segundo o assessor jurídico do ISA Fernando Prioste, as recomendações da OIT são um precedente importante para as políticas de reconhecimento dos territórios de populações tradicionais como um todo. "Em função de seu ineditismo, o informe poderá auxiliar povos indígenas e comunidades tradicionais, em todo o país, a fazer com que o Estado respeite direitos como o de acesso ao território e de consulta livre, prévia e informada”, analisa.
As comunidades quilombolas de Alcântara elaboraram um Protocolo Comunitário sobre Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado (CCPLI) que deve ser seguido em casos como esse.
O território quilombola de Alcântara (MA)
O município de Alcântara está localizado na costa de São Luís (MA) e concentra a maior população quilombola do país. De acordo com o Censo 2022, são quase 10 mil pessoas e mais de 3 mil famílias moradoras da região. O território ainda não teve seu procedimento de reconhecimento formal concluído. Em 2008, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) expediu o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), uma das etapas iniciais do processo, indicando uma área de quase 80 mil hectares. Um hectare corresponde mais ou menos a um campo de futebol.
Promessa de solução de Lula
Em junho, dias depois da OIT publicar seu informe, o presidente Luís Inácio Lula da Silva disse que o governo comunicaria em breve uma solução para o conflito em Alcântara.
"Estamos perto de concluir um acordo que a gente vai resolver, de uma vez por todas, o quilombo aqui em Alcântara. Está tendo um acordo com a FAB [Força Aérea Brasileira], com a Advocacia-Geral da União, acho que vamos contemplar todo mundo e vai viver em paz aquela região, com as pessoas podendo pescar no mar sem atrapalhar os foguetes e sem o foguetes atrapalharem a gente", afirmou Lula à rádio Mirante News FM, de São Luís. Ele esteve na capital maranhense para participar do anúncio de investimentos federais no estado.
“Em Alcântara a gente tem um princípio que é não abrirmos mais mão de nenhum centímetro de terra do nosso território para a base espacial. Nós não negociamos mais isso. Isso pra gente é ponto pacífico. Então o estado brasileiro vai ter que titular Alcântara em algum momento. Espero que o presidente Lula tenha coragem para fazer isso agora”, aponta Serejo.
Em nota enviada à reportagem do ISA, a Advocacia-Geral da União (AGU) informou que analisa três propostas de conciliação que estão em “estágio avançado”. “A AGU está confiante de que um acordo será firmado nos próximos meses, para que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) possa, então, implementar o processo de titulação do território quilombola”, diz o texto.
O órgão coordena o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) criado, em abril de 2023, para resolver o problema. “Na condição de coordenadora do GTI, a AGU tem como missão a compatibilização dessas duas políticas públicas — a titulação de terras quilombolas e o funcionamento do Programa Espacial Brasileiro —, sem que uma inviabilize a outra” , continua o texto. Ainda de acordo com a nota, o relatório do GTI está sendo fechado neste momento.
Governo tenta retomar conversas
Em outra nota enviada ao ISA, o Ministério da Igualdade Racial (MIR) afirmou que irá retomar, no próximo dia 17, o diálogo com as organizações das comunidades quilombolas. A conversa contará com a presença do Secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos, Ronaldo dos Santos, e representantes da Controladoria-Geral da União (CGU).
A iniciativa acontece após as organizações quilombolas retirarem-se do GTI, em janeiro, por discordarem da condução dos trabalhos. O colegiado foi criado logo depois de um pedido de desculpas histórico feito pelo governo brasileiro às comunidades quilombolas na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no início de 2023. A manifestação reconheceu a responsabilidade do Estado pelas violações dos direitos dessas populações, inclusive a omissão na titulação de seus territórios.
De acordo com ex-integrantes quilombolas do GTI, o governo não definiu sua posição em relação ao tamanho da área destinada à expansão do CLA e não apresentou informações sobre os impactos socioambientais e econômicos que ela causaria às comunidades. De acordo com o plano mais recente, a expansão da base aeroespacial poderia alcançar 12 mil hectares e expulsar cerca de 800 famílias.
Os quilombolas também argumentam que falta paridade na composição do GTI. O grupo era formado por 13 representantes do governo e apenas 4 representantes das comunidades, que não conseguiam participar ativamente das reuniões por causa do difícil acesso à internet.
“Como o Estado brasileiro não apresentou estudos técnicos e econômicos que justificassem a necessidade de expansão do Centro de Lançamento, nós não tivemos dados nem coisas concretas e materiais para continuar a negociação. Por essa razão, nós nos retiramos do grupo”, conta Serejo, um dos representantes quilombolas no GTI. Ele explica que o encontro do dia 17 não tem caráter formal e ainda não é possível prever quais serão seus desdobramentos. “Não há diálogo formal instituído ou retomado com o governo”, reforça.
As recomendações da OIT
- - O Comitê confia que se tomem as medidas necessárias, incluindo o marco do Grupo de Trabalho Interministerial, para assegurar que, segundo o disposto no artigo 23 da Convenção, as comunidades quilombolas que sejam deslocadas durante as fases I e II da implantação do CLA, possam realizar suas atividades tradicionais e de subsistência, incluindo a pesca;
- - O Comitê pede ao governo que tome sem demora as medidas necessárias para levar a cabo, de acordo com a legislação nacional vigente, os estudos de impactos social, espiritual e cultural, e sobre o meio ambiente que a expansão do CLA teria sobre as comunidades quilombolas de Alcântara, em cooperação com as mesmas, em conformidade com o artigo 7, 3) da Convenção;
- - Embora observe que o governo tomou medidas para desenhar um processo de consulta para as comunidades quilombolas que seriam afetadas pela expansão do CLA, o Comitê solicita ao Governo que tome todas as medidas necessárias para realizar um processo de consulta, desenhado com a participação das instituições representativas das comunidades quilombolas para cumprimento do artigo 6º da Convenção. O Comitê sublinha a importância de dar às comunidades tempo suficiente para levarem a cabo os seus processos internos de tomada de decisão e de lhes fornecer todas as informações relevantes em tempo útil;
- - Consequentemente, o Comitê insta o governo a que, de acordo com o artigo 16 da Convenção, caso a transferência de comunidades quilombolas seja decidida excepcionalmente, esta só deverá ser realizada com consentimento, dado livremente e com pleno conhecimento dos fatos, das comunidades quilombolas afetadas. Caso não seja possível obter o seu consentimento, a transferência e realocação só deverão ocorrer após a conclusão dos procedimentos apropriados estabelecidos pela legislação nacional, nos quais as comunidades quilombolas tenham a possibilidade de serem efetivamente representadas. Neste caso, as referidas comunidades deverão receber em troca terras cuja qualidade e estatuto jurídico sejam pelo menos iguais às das terras que ocuparam anteriormente, e que lhes permitam satisfazer as suas necessidades e garantir o seu desenvolvimento futuro.
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Linha do tempo
1983 - Centro de Lançamento de Alcântara foi criado com o objetivo de executar e apoiar atividades espaciais, provas científicas e experimentos relacionados com a política nacional de desenvolvimento espacial. Na época, um acordo foi estabelecido entre o Ministério da Aeronáutica e as famílias quilombolas que seriam afetadas pela implementação do CLA, no qual o ministério se comprometeu a atender as reivindicações relacionadas ao reassentamento, o que, segundo os denunciantes, não foi cumprido.
“Quando o Centro de Lançamento foi pensado para Alcântara, uma das coisas que foram faladas é que aqui havia um vazio demográfico, sendo que no município tinham mais de 200 comunidades. Então se pra eles era um vazio demográfico, isso significa que as comunidades quilombolas tradicionais não existem. Aos olhos deles não existimos”, comenta a coordenadora do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE), Dorinete Serejo.
1986 a 1988 - 312 famílias de 32 comunidades são retiradas de suas terras e reassentadas em sete agrovilas. Além de não terem recebido assistência técnica agrícola, as comunidades sofreram alteração de seus costumes e práticas e, até hoje, estão privadas de condições adequadas de vida, com falta de saneamento básico e de políticas públicas de educação, transporte e saúde, de liberdade perante o território e de organização social.
“Uma vez que se tira alguém da sua comunidade, sem o seu consentimento, não tem nenhuma orientação, e colocam longe de tudo, inclusive de onde tiram seu meio de sobrevivência, que é o mar e igarapés, os seus direitos já estão sendo violados”, pontua a presidente da Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara (ATEQUILA), Valdirene Ferreira.
1991 - Governo decide ampliar para 62 mil hectares a área expropriada destinada ao CLA. A decisão, novamente, não considerou as famílias afetadas para fins de compensação.
2001 - Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara (MABE), Justiça Global, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Maranhão (FETAEMA), Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e a Defensoria Pública da União denunciam a situação para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
2004 - Governo estabelece Grupo Executivo Interministerial para o desenvolvimento sustentável de Alcântara, envolvendo educação, trabalho, saúde, moradia, infraestrutura e participação em benefícios das comunidades quilombolas. As propostas se consolidaram em um plano de ação, que, segundo organizações denunciantes, não foi cumprido.
2006 - Procuradoria-Geral da República e governo federal firmaram acordo estabelecendo que o Incra deveria, em 180 dias, dar continuidade à titulação definitiva das terras ocupadas pelas comunidades de Alcântara. O processo foi iniciado em novembro de 2006 e deveria ser concluído em 31 de outubro de 2007. Porém, somente um ano depois, em novembro de 2008, o Incra publicou o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), uma das fases iniciais do procedimento de titulação. O RTID identificou 78,1 mil hectares pertencentes às comunidades quilombolas. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação solicitou a instalação de uma câmara de conciliação e arbitragem para analisar a sobreposição da expansão do CLA ao território o quilombola. Após quatro anos sem resolução, o caso foi arquivado.
2007 - Governo contratou empresas privadas que iniciaram trabalhos de prospecção e demarcação do perímetro da área de expansão da base aeroespacial dentro das terras das comunidades Mamuna e Baracatatiua. As comunidades não foram consultadas e as ações não foram autorizadas pelo IBAMA.
2008 - Lideranças de Alcântara denunciaram o Estado à OIT, por meio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, devido a mais um descumprimento da Convenção 169. A denúncia veio após uma ação arbitrária no território decorrente do Projeto Alcântara Cyclone Space, resultado de um Acordo de Cooperação Tecnológica entre Brasil e Ucrânia. As empresas contratadas invadiram e depredaram roças das comunidades de Mamuna e Baracatatiua na tentativa de implantar outros três sítios de lançamento de aluguel.
2010 - Ministério da Defesa elaborou um plano de implantação de novos sítios de lançamento na zona de expansão do CLA. O plano incluía um cronograma de expansão entre 2015 e 2020 e propunha a instalação de sítios de lançamento ao longo de toda a costa de Alcântara. Também previa o deslocamento de 226 famílias durante a fase III e de 337 durante a fase IV. De acordo com os denunciantes, a expansão impactaria as áreas de uso coletivo para agricultura, pesca e utilização de recursos naturais.
2019 - Governo Bolsonaro firmou Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com os Estados Unidos, com finalidades comerciais. O acordo ignorou recomendação da CIDH, feita na segunda audiência sobre o caso (2019), para realizar estudo e consulta prévia com as comunidades quilombolas.
2020 - Em meio à pandemia de Covid-19, o governo determinou novas remoções, que afetariam pelo menos 800 famílias, para a realização do projeto. Os despejos foram suspensos pela justiça e após o Senado dos Estados Unidos vetar o uso de dinheiro do país para remoção das comunidades quilombolas. Brasil revogou a resolução.
2021 - Governo expediu títulos individuais de propriedade a 67 residentes quilombolas das agrovilas. A emissão de títulos individuais descumpre o que está previsto no Decreto 4.887 de 2003, que estabelece o procedimento de titulação coletiva de terras ocupadas por quilombolas.
2023 - Governo brasileiro pediu desculpas às comunidades quilombolas de Alcântara e estabeleceu Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para resolução do caso.
2024 - Lula afirma que o governo está prestes a concluir um acordo para resolver de vez a situação entre a Força Aérea Brasileira (FAB) e as comunidades quilombolas de Alcântara.