#ElasQueLutam contra o racismo, o machismo e a invisibilidade! Liderança do quilombo de Itancuã Miri (PA) transformou resistência em conquista e inspira novas gerações

Paraense raiz, da comunidade quilombola de Itancuã Miri, localizada no município de Acará, Érica Monteiro, de 42 anos, é apaixonada por açaí, sapatos e sandálias. Uma mulher “brava”, como ela mesmo se denomina, mas muito bem humorada, e bastante íntegra. “Eu gosto de acordos. A palavra da pessoa tem que valer”. Além disso, é, provavelmente, uma das maiores fãs da organização Malungu (Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará).
“Eu sou apaixonada pela Malungu. Tudo que eu posso fazer para fortalecer, melhorar, dar estrutura, agregar mais pessoas para que dê certo, eu faço. Uma coisa que eu gosto muito é desse meu trabalho no movimento”, diz.
Nascida e criada no berço de uma família católica, Érica relacionou-se com a atuação comunitária desde muito nova. “A minha família toda já tinha um trabalho e um envolvimento social, então, a gente sempre conviveu em grupos. Eu fui coordenadora do coletivo da juventude da minha comunidade por anos, também participei da pastoral da igreja que ajudava a celebrar os cultos”.
Além disso, ela fez parte da associação de sua comunidade e participou de uma pesquisa da Universidade Federal do Pará (UFPA) sobre a história das comunidades do Baixo Rio Acará, que teve como resultado um relatório oficial de identificação e delimitação de Itancuã Miri, um livro e um filme da comunidade.
Militância
Após se casar e sair da casa da tia, onde foi morar para terminar os estudos, Érica começou a trabalhar na Malungu como a primeira secretária da instituição e articuladora política. Em 2011, junto ao movimento quilombola do estado, ela conseguiu a implementação de reserva de vagas exclusivas para alunos quilombolas na UFPA. “No primeiro edital, apenas 57 quilombolas fizeram o processo e apenas 13 passaram. Hoje em dia, a gente tem mais de cinco mil inscritos a cada ano”, relembra.
Em 2012, ela ingressou na primeira turma contemplada pela política e formou-se em contabilidade. Desde então, atua na gestão da Malungu, com passagens pela secretaria administrativa e secretaria da coordenação executiva. Hoje, está na coordenação executiva da organização.
“Quando eu comecei a participar mais dessa articulação estadual, eu tive conhecimento de outras comunidades, outras lideranças, comecei a fazer intercâmbio, pressionar a política, articular as comunidades, ajudar a organizar eventos, foi quando eu entrei para a coordenação estadual da Malungu. Então, já estou todos esses anos nessa gestão, fazendo esse enfrentamento, essa luta, essa articulação em prol das comunidades quilombolas do Pará”, pontua.
Malungu
Malungu é uma palavra de origem africana e significa “companheiro de travessia”. No Pará, a Malungu é uma organização que representa as comunidades quilombolas no estado. Criada em 1999 e institucionalizada em 2008, contribui com outras comunidades para o resgate da identidade quilombola, luta pela regularização dos territórios e a implementação de políticas públicas dessas populações".
Educação como base
Filha de Antônia Lúcia e José Maria, e a mais velha de quatro irmãs, Érica conta que cresceu em um lar onde, apesar das dificuldades, teve a educação como norte e muitas conquistas. “A vida era muito difícil e meus pais decidiram que as filhas precisavam estudar”.
Desde cedo, ela e as irmãs precisaram abdicar de seu território para conseguirem estudar. A escola do quilombo só oferecia aulas até a 4ª série (5º ano atualmente); as escolas do município ficavam a dois dias de barco de distância, restando a opção de Belém, que ficava a 50 minutos de barco da comunidade. Então, aos 14 anos, Érica foi para a capital ajudar uma tia com tarefas domésticas em troca da finalização dos estudos.
Na mesma época, há cerca de 30 anos, enquanto o pai de Érica trabalhava na fabricação de carvão por um salário irrisório, sua mãe batalhava para realizar um sonho. “Ela queria ser professora local na comunidade”. Por meio de um projeto do município de Acará, que chegou até a comunidade de Itancuã Miri, Antônia pôde iniciar sua trajetória no universo da educação. “Naquele tempo, era muito difícil acessar graduação, vestibulares, então tinham os projetos. O projeto Gavião possibilitava às pessoas aprenderem alguma coisa para darem aulas nos territórios das comunidades”, relata.
Érica conta que a mãe precisava passar o mês em Acará, pois não havia como ir e voltar diariamente. O município fica a 60 quilômetros da comunidade, e o único meio de transporte disponível era o barco, cuja viagem durava cerca de dois dias. Enquanto isso, em casa, uma irmã cuidava da outra, e o pai dava, ainda que pouco, o suporte financeiro.
Tanto Érica, quanto as irmãs, conseguiram terminar os estudos. Hoje, todas possuem ensino superior. E, conforme o tempo passou e as condições melhoraram, a mãe também alcançou a tão sonhada graduação em pedagogia. Por 36 anos ela lecionou na escola da comunidade Itancuã Miri.
Vida coletiva
Quando saiu do quilombo para morar na cidade, um dos maiores impactos que Érica sofreu foi perceber a diferença na forma das pessoas viverem. Enquanto na cidade o que fala mais alto é a lógica individual, no quilombo existe o cuidado coletivo, explica.
“No território, quando uma pessoa adoece, as pessoas levam remédios caseiros, fazem rituais e se unem para arrecadar alimentos porque você não pode trabalhar. Se você acordou e não tem pó de café, você vai no vizinho e ele vai te arrumar uma colher de pó de café. A bomba que puxa água para a comunidade quebrou? Junta todo mundo e vai resolver. É um problema coletivo, não é um problema da minha casa, não estou só eu sem água. Você também está sem água e a gente precisa resolver. O barco da comunidade quebrou? A associação vai resolver o problema do transporte do barco. Não tem transporte escolar para as crianças? Requerimento para prefeitura, para as secretarias de educação, para resolver o problema do coletivo. A gente não vê isso nas grandes capitais. Se você não tem esse círculo de apoio familiar, é muito difícil um vizinho atravessar a rua e perguntar se você está bem”, exemplifica.
Essa forma de pensar e de viver, muitas vezes, leva os quilombolas a assumirem a responsabilidade do Estado e os obriga a se organizarem para proteger e suprir seu território.
“Combater crime organizado é da responsabilidade do Estado, mas não combate; garantir a segurança de um ativista é de responsabilidade do Estado, mas não faz; garantir a educação, garantir a saúde é de responsabilidade do Estado e não faz. E sabe como a gente faz no território quilombola? A gente se organiza em associação. A associação se reúne todo mês para decidir e resolver os problemas da comunidade. Essa forma coletiva possibilitou que a gente corresse atrás de legalizar o nosso território através da titulação coletiva. E esse documento não é só meu, não é só do meu esposo, é de toda a comunidade, de todas as famílias. Todo mundo manda igual e todo mundo tem o mesmo direito”, define.
Inspirações e referências
Além da falta de coletividade fora do quilombo, Érica também deparou-se com a falta de referências. Dentro da comunidade, a mãe sempre foi sua maior inspiração, mas do lado de fora lhe faltava alguém para se espelhar, até o momento em que entrou para o movimento.
“Quando eu vim para o movimento quilombola conheci mulheres muito guerreiras, muito potentes. Páscoa Alves de Macedo, que hoje não é mais viva, foi uma das mulheres que ajudou a fundar o movimento quilombola do Pará. Deonata Bahia é uma grande liderança com conhecimento empírico gigantesco. Não teve oportunidade de estudar, mas lutou muito por esse movimento, é uma grande liderança que eu vejo que é referência. E quando eu me inseri no movimento, eu olhava Selma Dealdina. Eu dizia, ‘Um dia eu vou ser igual a essa mulher!’. Uma mulher forte, uma mulher determinada, uma mulher que resolve problemas do coletivo. E eu dizia que ia ser igual a ela”, conta.
E o sonho virou realidade. Hoje, Érica é uma das grandes referências em lideranças quilombolas do Pará e do Brasil. Além de sua atuação no estado, também compõe o coletivo de mulheres da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), maior representação de quilombolas brasileira. E sabe qual é a melhor parte? Ela sabe disso e acredita estar no “top10”.
“Hoje eu me vejo como uma mulher de referência para mim e para outras. Se categorizar como referência e ainda entre as dez? É muita audácia, não é? Mas vocês nem imaginam o que eu passei para hoje ter a coragem de dizer isso. Eu mostro para as minhas companheiras que não é apenas ser uma referência, ter um status. Tem um caminho a percorrer e esse caminho é muito difícil. Você se depara com o patriarcado, com o machismo, com o racismo – quando eu falo até me arrepio. Essas questões vêm querendo devastar o gênero feminino e se você não for forte, você é levada. Então você pode até não ser, mas você tem que se fazer de forte. Você pode até chorar, mas você não chora na frente deles. Você chora no chuveiro, você chora na cama, que é lugar quente, como dizia minha mãe”.
Os desafios são diários e são diversos. Doar-se para a luta não é tarefa fácil. Além do trabalho com o movimento, como grande parte das mulheres brasileiras, Érica precisa se dividir em várias para atender também Heloísa, sua filha de seis anos.
“Você ter que deixar a sua família por dias, meses, para se doar para a luta, onde, às vezes, os próprios membros do seu coletivo não reconhecem o seu esforço, não é fácil. Não são todas as mulheres que vêm com esse sentimento de coletividade. Mas, hoje, estou em uma ‘zona de conforto’, porque alguém fez uma trilha antes. Eu tenho que aproveitar isso para abrir essa estrada e deixar para os meus, minha filha, meus sobrinhos, meus vizinhos, os quilombolas", explica.
"Chegar a esse patamar de dizer ‘Eu sou uma liderança quilombola mulher!’, não é fácil. Muitas tombaram pelo meio do caminho, muitas morreram, muitas não aguentaram o racismo, muitas não aguentaram o machismo, e a muitas não foram dadas oportunidades, porque eu tenho certeza que elas brilhariam”, completa.