Manchetes Socioambientais
As notícias mais relevantes para você formar sua opinião sobre a pauta socioambiental
“O encontro entre índios e brancos só se pode fazer nos termos de uma necessária aliança entre parceiros igualmente diferentes, de modo a podermos, juntos, deslocar o desequilíbrio perpétuo do mundo um pouco mais para frente, adiando assim o seu fim.”
Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo, um dos fundadores do ISA
O tema "Povos Indígenas" está na origem da existência do Instituto Socioambiental. Lá se vão pelo menos quatro décadas de comprometimento e trabalho com o tema, produzindo informações para a sociedade brasileira conhecer melhor seus povos originários. Desde sua fundação, em 1994, o ISA dá continuidade ao trabalho do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), que havia sido iniciado em 1980 e que, por sua vez, remonta ao começo dos anos 1970, quando o então governo da ditadura militar lançava o Plano de Integração Nacional, com forte componente de obras de infraestrutura na Amazônia, região que era então descrita pelo discurso oficial como um "vazio demográfico".
Por meio dos relatos coletados, dados produzidos e pesquisas empreendidas por uma rede de colaboradores espalhada pelas diversas regiões do País, o Cedi ajudou a derrubar essa tese. Ao dar publicidade às informações levantadas por essa rede social do tempo do telex, o Cedi colocou, definitivamente, os povos indígenas e suas terras no mapa do Brasil. Seus integrantes ainda participaram ativamente no movimento de inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988 e, juntamente com integrantes do Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) e ativistas ambientais, fundaram o ISA em 1994.
De lá para cá, ampliando sua rede de colaboradores em todo o País, o ISA se consolidou como referência nacional e internacional na produção, análise e difusão de informações qualificadas sobre os povos indígenas no Brasil. O site "Povos Indígenas no Brasil", lançado em 1997, é a maior enciclopédia publicada sobre as etnias indígenas no Brasil, com suas línguas, modos de vida, expressões artísticas etc. O site é uma das principais referências sobre o tema para pesquisadores, jornalistas, estudantes e acadêmicos.
A atuação hoje é transversal aos territórios onde atuamos, especialmente na Bacia do Xingu, no Mato Grosso e Pará, e Bacia do Rio Negro, no Amazonas e Roraima, e também envolve povos indígenas de todo o Brasil, por meio da atualização permanente do site e de seus mais de 200 verbetes, inclusão de novos textos sobre etnias emergentes e indígenas recém-contatados, além do monitoramento e cobertura jornalística sobre situações de violência e perda de direitos contra estas populações. O tema "Povos Indígenas" ainda é tratado no site "PIB Mirim", voltado ao público infanto juvenil e de educadores.
O monitoramento de Terras Indígenas também é um eixo central do nosso trabalho com o tema, e remonta à sistematização de dados e divulgação de informações iniciada pelo Cedi em 1986, e se dá por meio da produção de livros impressos e mapas temáticos sobre pressões e ameaças, como desmatamento, mineração, garimpo, obras de infraestrutura, entre outras, além do site "Terras Indígenas no Brasil".
Confira os conteúdos produzidos sobre este tema:
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Em formato de enciclopédia, é considerado a principal referência sobre o tema no país e no mundo |
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A mais completa fonte de informações sobre o tema no país |
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Site especial voltado ao público infanto-juvenil e de educadores |
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Painel de indicadores de consolidação territorial para as Terras Indígenas |
Sócio fundador do ISA, Márcio Santilli denuncia a tentativa bolsonarista de tomar de assalto a Frente Parlamentar Indígena. Artigo publicado originalmente no site da Mídia Ninja
Coronel Chrisóstomo é deputado federal reeleito pelo PL em Rondônia. Às vezes, desfila pela Câmara com terno e quepe do Exército. Integra a Comissão de Segurança Pública e a chamada “Bancada da Bala”. Na reforma da Previdência, votou por regras mais flexíveis para a aposentadoria de policiais, mas rejeitou tratamento similar para os professores. Participou da base parlamentar do governo anterior e, agora, deve estar entre os opositores mais radicais ao presidente Lula no Congresso.
Chrisóstomo não tem nada de indígena, muito pelo contrário. Defende os invasores de Terras Indígenas no seu estado e nunca se importou com a trágica situação dos Yanomami e de outros povos engendrada no governo passado. Apesar disso, ele protocolou na mesa da Câmara um requerimento para reconstituir a Frente Parlamentar de Defesa dos Povos Indígenas, que esteve sob a coordenação da ex-deputada Joênia Wapichana (Rede-RR), agora presidente da Fundação dos Povos Indígenas (Funai).
Não se trata de uma conversão súbita ao indigenismo. O deputado bolsonarista representa o estado de Rondônia, mas subverte o espírito do Marechal Rondon. Ao contrário, o seu requerimento presta-se a tentar um golpe, para usurpar o protagonismo da bancada indígena na reconstrução da FPI na legislatura que se inicia. O objetivo é inverter a sua missão, fazendo dela um instrumento de boicote às políticas indígenas.
Frente e versus
Como diz o ditado, “ninguém chuta gato morto”. As frentes parlamentares são grandes guarda-chuvas políticos e a sua formação depende do apoio de cerca de 200 parlamentares. Em geral, atuam de forma intermitente. Mas a FPI esteve entre as mais atuantes na legislatura passada, sob a coordenação da deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), com apoio das organizações indígenas e agenda consistente. A FPI teve um papel fundamental na resistência ao retrocesso nas políticas do governo Bolsonaro, impedindo, por exemplo, a subordinação da Funai ao Ministério da Agricultura e aprovando a implantação de um programa específico de proteção à população indígena na pandemia.
Joenia fez um excelente mandato como primeira mulher indígena a chegar à Câmara. Nas eleições passadas, aumentou em 30% a sua votação pessoal, mas a sua federação partidária não atingiu, em Roraima, o quociente eleitoral necessário para conquistar uma cadeira. A convite do próprio presidente Lula, será a primeira presidente indígena da Funai.
Apesar da não reeleição de Joenia, duas mulheres diretamente ligadas ao movimento indígena elegeram-se deputadas federais nas últimas eleições: Sônia Guajajara, por São Paulo, e Célia Xakriabá, por Minas Gerais, ambas do PSol. Sônia foi nomeada por Lula para dirigir o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas e Célia permanecerá na Câmara como referência principal do movimento indígena.
Outros parlamentares eleitos também se auto-identificam como indígenas, como os senadores Hamilton Mourão (Republicanos-RS), ex-vice-presidente da República, e o atual ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias (PT-PI), além da deputada federal Silvia Waiãpi (PL-AP). Eles são descendentes de povos indígenas, mas não participam do movimento indígena e nem mantêm vínculos, ou são reconhecidos como tais, por suas comunidades de origem.
A deputada Juliana Cardoso (PT-SP) também se auto-identifica como indígena e promete atuar de forma contundente na defesa dos direitos dos povos originários.
Seria mais do que natural que, na legislatura que se inicia, Célia Xakriabá viesse a coordenar a FPI, sucedendo à Joênia. Mas é aí que entra na história o requerimento fake do Coronel Chrisóstomo: a ideia é puxar o tapete e derrubar Célia, convertendo a FPI numa frente anti-indígena, a ser comandada por Silvia Waiãpi, do seu partido.
Sílvia Waiãpi é tenente do Exército, foi eleita pelo PL e é bolsonarista “raiz”. Lideranças do povo Waiãpi já disseram que não compartilham das posições políticas da deputada e que ela não os representa. Por sua vez, a apoiadora de Bolsonaro não tem compromisso com a defesa de direitos indígenas, embora se identifique como indígena: opõe-se à demarcação de terras, defende o garimpo predatório nessas áreas e a aculturação forçada dos povos originários.
Em disputa
As frentes parlamentares são espaços suprapartidários, para tratar de agendas específicas. Não se confundem com as comissões permanentes, que aprovam pareceres sobre projetos de lei e outras proposições legislativas a serem votadas em plenário. A função das frentes é de articulação e mobilização, para unir diferentes forças em função de objetivos comuns.
Suas coordenações, quase sempre, são definidas de forma consensual, entre os parlamentares mais atuantes em cada tema. Só eventualmente há disputa por elas. Agora mesmo, há quatro pretendentes a coordenar a Frente Parlamentar Evangélica, mas essa é uma exceção e não a regra. O requerimento de Chrisóstomo, no entanto, é a primeira tentativa para inverter o objetivo político de uma frente, além de usurpar sua coordenação.
A disputa pela FPI ilustra bem o que podemos esperar de um Congresso altamente polarizado, como o que toma posse nesta semana. É bem verdade que, nunca antes na história do país, os povos indígenas tiveram tanta presença direta no Estado, o que também influenciará o novo Congresso. Mas toda a atenção é pouca: a história nos ensina que, em briga de branco, sempre sobra para os povos indígenas.
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Dados confirmam que tragédia é resultado direto do desmonte de serviços de saúde e do agravamento da invasão garimpeira promovidos pelo governo Bolsonaro
No dia 20/1, a agência Sumaúma noticiou que 570 crianças de até cinco anos morreram de doenças evitáveis, entre 2019 e 2022, na Terra Indígena (TI) Yanomami (AM-RR). As fotos de crianças e idosos esquálidos, desnutridos, divulgadas na imprensa e nas redes sociais causaram comoção dentro e fora do Brasil.
Acompanhado de vários ministros, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi a Roraima avaliar a crise. O governo decretou emergência de saúde na área e anunciou uma série de medidas, como o envio de equipes médicas à região e a instalação de um hospital de campanha em Boa Vista.
A repercussão do caso gerou indignação, dúvidas, surpresa, com a impressão de que o problema veio a público só agora, e, claro, fake news. Logo começaram a circular notícias falsas para desviar o foco da responsabilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro. Contra fatos e imagens, ele classificou a situação como uma “farsa da esquerda”.
O ISA resumiu abaixo, num texto de perguntas e respostas, as principais informações e dados científicos colhidos por pesquisadores, técnicos do governo, imprensa, sociedade civil e as próprias comunidades para você entender a tragédia humanitária que se abateu sobre os Yanomami e ajudar a combater a desinformação.
O que está acontecendo na Terra Indígena Yanomami pode ser considerado genocídio?
A Lei 2.889/1956 diz que o genocídio é caracterizado pela “intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, por meio de atos como: “matar membros do grupo; causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo”. A definição segue a legislação internacional.
Juristas ouvidos pela imprensa nos últimos dias dizem que há indícios de que a gestão Bolsonaro cometeu o crime na TI Yanomami, mas apenas um julgamento pela Justiça brasileira ou internacional poderá confirmá-lo.
Na segunda (30), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso determinou a abertura de inquérito contra autoridades federais para apurar essa possibilidade. Não se sabe exatamente quem é alvo do processo porque ele está sob sigilo.
Na semana passada, o ministro da Justiça, Flávio Dino, já tinha determinado que a Polícia Federal (PF) também investigasse os possíveis crimes de genocídio e omissão de socorro por parte do governo anterior no território indígena.
O assassinato de 16 Yanomami por garimpeiros, em 1993, conhecido como “Massacre de Haximu”, é o único caso do crime de genocídio confirmado pela Justiça brasileira.
Quais os motivos para a crise de saúde na Terra Indígena Yanomami?
Agravadas ao longo dos últimos cinco anos, as razões da crise são a desestruturação da assistência à saúde indígena e a invasão garimpeira, responsável por uma série de impactos sanitários, ambientais, socioculturais e econômicos sobre as comunidades.
Não é verdade que a origem da situação seja a suposta incapacidade produtiva dos indígenas. Ao contrário, com suas terras e seus recursos naturais preservados, eles conservam boas condições de vida.
A tragédia sanitária atinge populações e território brasileiros e não é provocada pela imigração de indígenas em situação de vulnerabilidade da Venezuela. Nenhum órgão oficial comunicou que existem refugiados desse país entre as pessoas desassistidas.
Também não é verdade que a crise Yanomami seja comum a outras populações indígenas neste momento. Há outras TIs com problemas parecidos, mas não na mesma escala e pelos mesmos motivos.
Qual a relação entre o garimpo ilegal, a disseminação de doenças e a desnutrição entre os Yanomami?
O garimpo é o responsável direto por uma série de problemas graves entre os povos originários. No caso Yanomami, há relação comprovada entre a explosão da atividade e o aumento de casos de doenças infectocontagiosas, como gripe e pneumonia.
É inequívoca ainda a associação entre a devastação provocada pela mineração ilegal e a propagação da malária, facilitada pela multiplicação de invasores e pelas crateras com água parada, fruto da atividade e propícias à proliferação de mosquitos transmissores da enfermidade.
Em virtude do contato razoavelmente recente e do isolamento relativo, os indígenas têm menos defesas imunológicas para moléstias comuns entre não indígenas.
A ocupação do território, a destruição da floresta, a contaminação dos corpos de água promovidas pelo garimpo dificultam a manutenção e abertura de roças, a caça, a pesca e a coleta de frutos, as principais fontes de alimentação das comunidades.
Uma parte delas também é aliciada. Especialmente vulneráveis a falsas promessas de prosperidade, jovens recebem armas e comida para trabalhar ou aliar-se aos invasores. Mulheres são abusadas e exploradas sexualmente. O recrudescimento da violência cria um clima de tensão permanente. Os moradores ficam sitiados em suas próprias aldeias.
Todo o quadro é agravado pelo desmonte da assistência aos indígenas. Além disso, os invasores têm se apossado de parte da infraestrutura de atendimento, como pistas de pouso e postos de saúde. A violência do garimpo dificulta a presença de equipes médicas, a distribuição de medicamentos e alimentos.
Sem comida e assistência médica, a condição dos enfermos piora. Como a economia indígena depende da mão de obra familiar, as atividades tradicionais de subsistência ficam inviáveis com as pessoas permanentemente adoecidas ou trabalhando no garimpo, num círculo vicioso de fome, debilidade física e escassez.
Qual a extensão da crise de saúde na Terra Yanomami?
Conforme dados do Ministério da Saúde obtidos pela agência Sumaúma, 570 crianças de até cinco anos morreram de doenças evitáveis na TI Yanomami, entre 2019 e 2022, um aumento de 29% em relação a 2015-2018. De acordo com o Ministério dos Povos Indígenas, 99 crianças de um a quatro anos teriam morrido, só em 2022, por causas como desnutrição, pneumonia e diarreia.
Cerca de 56% das crianças da área acompanhadas tinham um quadro de desnutrição aguda (baixo ou baixíssimo peso para a idade) em 2021, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) fornecidos à agência Pública. “O estado nutricional das crianças Yanomami é realmente muito ruim, só comparável aos dados de crianças da África Subsaariana”, afirmou o médico Paulo Basta, da Fiocruz à agência.
Apenas entre 2020 e 2021, a TI Yanomami registrou mais de 40 mil casos de malária, de acordo com o Sistema de Informações de Vigilância Epidemiológica (Sivep) do Ministério da Saúde. Isso tudo para uma população de cerca de 30 mil pessoas.
É importante observar que a TI Yanomami é a maior do país, com cerca de 96 mil km2 (superando a extensão de Portugal), e há diferenças entre as 370 comunidades. As regiões mais distantes das invasões têm uma condição sanitária mais favorável, embora a precarização do atendimento à saúde impacte todo o território.
O que aconteceu com os serviços de saúde Yanomami nos últimos anos?
A saúde indígena foi desestruturada pelo governo Bolsonaro, embora sempre tenha apresentado deficiências. A pandemia de Covid-19 agravou e escancarou a situação.
No caso Yanomami, a má gestão de recursos e o aparelhamento político, com a nomeação de pessoas sem conhecimento e experiência para cargos importantes, criaram um quadro de desorganização, escassez de equipamentos, mão de obra, medicamentos e outros insumos.
Indígenas e profissionais de saúde relataram o fechamento ou abandono de postos de saúde e a redução dos atendimentos nos que continuaram funcionando. O problema foi documentado pelo relatório Yanomami Sob Ataque, publicado pela Hutukara Associação Yanomami e a Associação Wanasseduume Ye’kwana.
Auditorias da própria administração federal confirmaram várias falhas no Distrito Especial de Saúde Indígena Yanomami (DSEI-Y): desatualização de indicadores de saúde; descumprimento de jornadas de trabalho e metas de atendimento; entrega de medicamentos com data de validade próxima do vencimento; transporte por aeronaves sem autorização de voo, entre outros. Os relatórios foram ignorados pelo governo.
Em 2022, o Ministério da Saúde deixou faltar cloroquina para atender os casos de malária entre indígenas da Amazônia. O governo Bolsonaro recomendou o medicamento para tratar da Covid-19 e chegou a distribui-lo para este fim entre os Yanomami, apesar de a Organização Mundial de Saúde (OMS) e cientistas rejeitarem esse uso.
O Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal apuram possíveis fraudes na compra de remédios para os Yanomami. Uma parte dos medicamentos teria ido parar nos garimpos dentro do próprio território indígena.
Na verdade, a crise sanitária é ainda pior por causa da subnotificação e do “apagão” de dados dos últimos anos. Por exemplo, 90% das crianças yanomami eram monitoradas pelo DSEI-Y em 2019, mas o número baixou para 75%, em 2022. Nas estatísticas oficiais, houve melhora nos registros de desnutrição, mas ocorreu o contrário, simplesmente porque o número de crianças acompanhadas caiu. No início do governo Bolsonaro, já se sabia que a situação era ruim e, mesmo assim, a vigilância foi reduzida.
Quando começou exatamente a crise de saúde na Terra Indígena Yanomami? Ela veio a público só agora?
Não há dúvida de que a situação agravou-se a partir de 2018 e 2019, com as eleições e o início do governo Bolsonaro, embora já houvesse problemas na assistência e invasores na área. O discurso antiambiental de Bolsonaro e seus aliados e o desmonte dos órgãos de fiscalização estimularam a ocupação ilegal de áreas protegidas e provocaram recordes sucessivos de desmatamento. O território yanomami foi um dos mais afetados.
Quando os indígenas começaram a monitorar os efeitos do garimpo em 2018, já havia 1,2 mil hectares desmatados. Entre 2019 e 2022, foram devastados mais 3,2 mil hectares, um acréscimo de 309% no período. Só no ano passado, a destruição da floresta saltou 54% em relação a 2021 (veja gráfico acima). Um hectare corresponde mais ou menos a um campo de futebol.
A propagação da malária vinha crescendo gradualmente desde a década passada, mas era considerada controlada, até dar um salto, há cinco anos, acompanhando a evolução da devastação. O volume de casos dobrou entre 2018 e 2021, passando de cerca 10 mil para mais de 20 mil por ano, patamar inédito (veja gráfico abaixo).
Não é verdade, portanto, que a situação seja a mesma em 30 anos, embora os Yanomami já tenham passado por crises graves, principalmente com a intensificação do contato com os não indígenas e a primeira grande onda garimpeira, nos anos 1970 e 1980. Profissionais de saúde e lideranças indígenas reafirmam que a situação nunca foi tão grave nesse período.
Muita gente teve a impressão de que a crise veio a público só agora porque as notícias sobre ela alcançaram uma audiência sem precedentes, resultado da repercussão da visita do recém-empossado presidente Lula e das medidas emergenciais tomadas por seu governo.
Quem são os responsáveis pela crise de saúde dos Yanomami?
Notoriamente anti-indígena, Bolsonaro foi o primeiro presidente da República desde a Redemocratização a não demarcar “nenhum centímetro” de TIs, como prometeu em campanha.
Durante todo o governo, ele estimulou o crime ambiental e sua regularização, em especial o garimpo ilegal nas TIs. Também promoveu um desmonte administrativo sem precedentes na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e no Ibama, responsáveis pela fiscalização dessas áreas.
Tudo isso resultou, a partir de 2019, numa onda de invasões a áreas protegidas e recordes sucessivos de desmatamento em cerca de 15 anos. A TI Yanomami foi uma das mais afetadas.
A saúde indígena também sofreu com a desestruturação de políticas públicas do governo Bolsonaro. As deficiências já existentes recrudesceram.
Forças militares e de segurança também reduziram a fiscalização e, muitas vezes, negaram apoio a operações para a retirada dos invasores e proteção das aldeias.
Toda a situação foi denunciada aos órgãos federais, ao Ministério Público, à imprensa e nas redes sociais pelo Conselho Distrital de Saúde Yanomami e Ye’kwana (Considisi-Y), a Hutukara Associação Yanomami, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o ISA. Os alertas foram desprezados, no entanto. Pelo menos 21 ofícios sobre o caso foram ignorados por diversas instituições oficiais em apenas dois anos, informou o The Intercept Brasil.
O governo Bolsonaro descumpriu a maioria das decisões tomadas pelo STF e pela Justiça Federal de Roraima, a partir de 2020, para garantir o atendimento aos indígenas na pandemia de Covid-19, como garantir a vacinação, a presença de profissionais de saúde, o envio de medicamentos, insumos e cestas básicas e a implantação de barreiras sanitárias.
A ordem de isolar e conter os garimpeiros na TI Yanomami também foi ignorada. O mesmo aconteceu com decisões do próprio STF e da Justiça Federal para que a União formulasse e executasse um plano para retirar os invasores. Também foi desconsiderada uma deliberação da Corte Interamericana de Direitos Humanos e pedidos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Se as determinações e alertas tivessem sido atendidos, a crise não teria ocorrido ou seria menor.
Portanto, têm responsabilidade sobre a tragédia, em diferentes graus e aspectos, o ex-presidente Jair Bolsonaro e o ex-vice-presidente Hamilton Mourão, então coordenador do Conselho Nacional da Amazônia, responsável por articular as ações de fiscalização ambiental na região durante o último governo. Também podem ser responsabilizados os respectivos dirigentes, no antigo governo, da Funai, do Ibama, da PF e dos ministérios da Saúde, da Justiça, da Defesa e do Meio Ambiente, entre outros que uma investigação adequada vier a apontar.
Quais as medidas tomadas pelo governo até agora para enfrentar a crise sanitária na TI Yanomami?
Ainda no dia 20, o governo federal decretou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional na TI Yanomami. Trata-se de uma situação que demanda o emprego urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, de danos e de agravos à saúde pública, em situações que podem ser epidemiológicas (surtos e epidemias), de desastres ou de desassistência à população. Esse último é o caso dos Yanomami.
A gestão federal também anunciou o envio de equipes médicas para prestar assistência emergencial e fazer um diagnóstico da situação, além da instalação de um hospital de campanha em Boa Vista e de um Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE), que fará a coordenação das ações contra a crise e deverá ser gerido pela Sesai.
Foi criado ainda um Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária das Populações em Território Yanomami, que vai discutir as medidas a serem adotadas, apoiar a articulação entre poderes e estados e apresentar um plano de ação em 45 dias. Fazem parte do colegiado os ministérios dos Povos Indígenas, da Saúde, da Defesa, da Justiça, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome e da Gestão e Inovação em Serviços Públicos.
No dia 23, uma equipe da Força Nacional do SUS também foi enviada à Roraima. Pelo menos mil doentes já foram retirados às pressas da área, após a decretação da situação de emergência.
O governo planeja uma grande operação de retirada dos garimpeiros. A ação ainda não tem data para acontecer, mas nesta segunda (30), em reunião com vários ministros, o presidente Lula pediu pressa no bloqueio do espaço aéreo e dos principais rios que cortam a área, com o objetivo de estrangular a logística do garimpo. Cerca de 56 toneladas de alimentos e medicamentos já teriam sido enviados à TI Yanomami, segundo a Força Aérea Brasileira (FAB).
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Ouça o que diz o movimento indígena e as informações da transição de governo sobre a nova pasta, promessa de campanha do presidente eleito. Episódio 257
Eleito no dia 30 de outubro o próximo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), teve o voto de mais de 60 milhões de brasileiros. As movimentações para formação da equipe de transição, que prepara o terreno para o próximo governo, remetem para a promessa feita ainda em pré-campanha: a criação do Ministério dos Povos Originários.
Lideranças da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) reuniram-se no começo do mês, para fazer uma avaliação do período pós-eleitoral e debater sua atuação no novo cenário político. Além disso, elaboraram um documento com subsídios para o novo governo em relação aos povos originários.
O texto levanta pontos essenciais, como direitos territoriais, criação de políticas públicas e sociais, saúde e educação e os projetos anti-indígenas, que atualmente tramitam no Congresso. O documento foi encaminhado ao líder da equipe de transição do governo, Geraldo Alckmin (PSB), na manhã do dia 8. Durante a tarde, foi oficializada a portaria da equipe de transição, com 31 eixos temáticos, e entre eles um sobre “povos originários”.
O movimento indígena vê com bons olhos o espaço de debate criado, mas também está atento a alguns pontos que levantam preocupação, como as atribuições e responsabilidades do novo ministério e qual orçamento para ele.
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Produção e roteiro: Ester Cezar
Apresentação: Ester Cezar e Helder Rabelo
Edição de áudio: Helder Rabelo
Artes para as redes sociais: Cristian Wariu
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Três indígenas foram assassinados em um intervalo de menos de 48 horas; dois deles eram adolescentes
A violência contra os povos indígenas voltou a explodir. No final de semana dos dias 3 e 4, no espaço de menos de 48 horas, três indígenas foram mortos. No município de Arame, no sudoeste do Maranhão, Jael Carlos Miranda Guajajara morreu após ser atropelado. Não muito longe dali, em Amarante, também no Maranhão, Janildo Oliveira Guajajara foi assassinado com tiros nas costas e um outro indígena, de apenas 14 anos, também foi ferido.
Em Prado, no sul da Bahia, Gustavo Silva da Conceição, jovem do povo Pataxó de apenas 14 anos, levou um tiro após a invasão por pistoleiros na terra indígena Comexatibá. Outro adolescente de 16 anos também foi baleado, mas está fora de perigo. A suspeita é que os três crimes tenham sido causados como retaliação à resistência contra invasões aos territórios indígenas.
O povo Pataxó aguarda pela demarcação da Terra Indígena Comexatibá há 17 anos. O relatório de identificação foi publicado pela Funai em 2015, porém, o processo não evoluiu além disso. No Maranhão, em Amarante, Janildo Guajajara era um dos guardiões da floresta, grupo que atua para prevenir, identificar e denunciar o roubo de madeira e outros crimes em terras indígenas do sudoeste do Maranhão.
Segundo nota da Associação dos Guardiões da Floresta da Terra Indígena Araribóia, seis guardiões já foram mortos sem que os assassinos tenham sido responsabilizados e punidos. De acordo com dados do último Relatório Violência contra os Povos Indígenas do Brasil, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 2021 foram registrados 176 assassinatos de indígenas no país, apenas seis a menos do que em 2020, quando foi observado o maior número de assassinatos desde pelo menos 2014.
#Violência #Indígenas #SangueIndígenaNenhumaGotaAMais
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Produção: Ester Cezar
Roteiro: Ester Cezar e Oswaldo Braga
Apresentação: Cristian Wari’u e Carolina Fasolo
Edição de áudio e artes para redes sociais: Cristian Wari’u
Estagiário: Helder Rabelo
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Saiba como funcionam os modelos de eleição no Brasil e o que são os votos brancos e nulos. Mais um episódio da série especial do podcast Copiô, Parente
No Brasil, existem dois tipos de sistema que elegem candidatos aos cargos em disputa no Executivo e no Legislativo: majoritário e proporcional. O sistema majoritário, como o próprio nome diz, elege quem tem a maioria, quem ganha mais votos.
Já o proporcional surgiu para garantir a representação e a eleição de candidatos pertencentes a regiões e grupos que não eram representados de maneira justa. Ele é destinado aos cargos de deputados federais, estaduais, ou distritais, no caso do Distrito Federal, e vereadores. Como indica sua denominação, elege candidatos de acordo com a quantidade de eleitores de cada estado. Portanto, estados que têm uma população maior podem eleger mais candidatos do que os que têm uma população menor.
Além disso, nosso sistema permite que sejam dados votos brancos ou nulos, que simbolicamente representam o descontentamento dos eleitores com os candidatos aos cargos em disputa.
Confira neste episódio do podcast Copiô, Parente como os candidatos são eleitos em cada sistema e qual a importância de escolher alguém para votar.
#Eleições2022 #VotaçãoMajoritária #VotaçãoProporcional #VotoBranco #VotaParente
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Produção e roteiro: Ester Cezar
Apresentação: Cristian Wari’u e Ester Cezar
Edição de áudio e artes para redes sociais: Cristian Wari’u
Estagiário: Helder Rabelo
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Conheça as principais regras que candidatos devem seguir durante a campanha para garantir uma disputa limpa, justa e honesta
Durante o período de campanha eleitoral, quando os candidatos e partidos fazem suas propagandas para tentar conquistar o voto dos eleitores, existem várias regras que precisam ser seguidas. Elas são determinadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e servem para garantir uma disputa limpa, justa e honesta entre os candidatos em disputa.
As determinações vão desde instruções de tamanho para o uso de adesivos em carros, até a proibição do disparo em massa de notícias falsas. O descumprimento das normas pode ser considerado crime eleitoral.
Essas condicionantes servem também para que o cidadão exerça sua cidadania, dando a ele o poder de denunciar as más condutas dos candidatos e as irregularidades presenciadas durante as campanhas.
O TSE desenvolveu um aplicativo gratuito chamado “Pardal”, onde é possível fazer a denúncia de crimes eleitorais. Mas fique atento! Não são somente os candidatos que podem ser denunciados. Qualquer pessoa que infrinja uma lei eleitoral está sujeita a penalidades.
Essas e outras informações estão no segundo episódio da série Vota, Parente!, do Copiô, Parente, o primeiro podcast feito para os povos indígenas e os povos da floresta do Brasil.
#Eleições2022 #CrimeEleitoral #BocaDeUrna #VotaParente
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.:Produção: Ester Cezar
.:Roteiro: Ester Cezar
.:Apresentação: Cristian Wari’u e Ester Cezar
.:Edição de áudio: Cristian Wari’u
.:Artes para as redes sociais: Cristian Wariu
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Podcast Copiô, Parente lança série especial sobre as eleições de 2022 e traz no 1º episódio informações sobre os cargos em disputa e suas funções
Está de volta a série Vota, parente!, do podcast Copiô, Parente.
Neste ano, trazemos alguns temas fundamentais para entendermos a importância das eleições e como elas funcionam.
Falamos do sistema eleitoral, das urnas eletrônicas, candidaturas coletivas e muito mais.
Neste primeiro episódio, explicamos noções básicas sobre as as eleições gerais e quais são os cargos em disputa.
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.:Produção: Ester Cezar
.:Roteiro: Ester Cezar
.:Apresentação: Cristian Wariu e Ester Cezar
.:Edição de áudio: Cristian Wariu
.:Artes para as redes sociais: Cristian Wariu
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Funcionários reivindicam responsabilização de mandantes das mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips e saída de presidente de órgão indigenista
Reportagem atualizada em 24/6/2022, às 22:30
Servidores e servidoras da Fundação Nacional do Índio (Funai) participaram, nesta quinta (23), de um ato nacional de greve promovido pela organização Indigenistas Associados (INA) e a Associação Nacional de Servidores da Funai (Ansef), entre outras, para denunciar o desmonte do órgão oficial, exigir providências de sua direção e das autoridades para garantir a integridade dos funcionários e pedir a saída imediata do atual presidente, Marcelo Augusto Xavier. Protestos foram registrados em 38 cidades.
Uma mobilização nacional começou no dia 14 e, de lá para cá, foram sete dias de paralisação, cinco nesta semana. Entre segunda e quarta da semana que vem, está prevista mais uma vigília em frente à sede da Funai, em Brasília. Na quinta, está marcado mais um dia nacional de greve.
Os assassinatos do indigenista e servidor da Funai Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, desaparecidos no dia 5 e encontrados mortos no dia 15, em Atalaia do Norte, extremo oeste do Amazonas, foram o estopim do movimento. Eles sumiram na floresta após registrarem as atividades de invasores da Terra Indígena Vale do Javari, a segunda maior do país, com 8,5 milhões de hectares, na mesma região. Pereira foi cremado, na tarde desta quinta, em Recife. Phillips será cremado em Niterói (RJ), no próximo domingo.
Os dois foram achados após um dos suspeitos dos homicídios, Amarildo da Costa de Oliveira, levar as equipes de busca até o local do crime. Ele também implicou o irmão, Oseney da Costa de Oliveira. Há ainda mais dois suspeitos presos: Jeferson da Silva Lima, que teria atirado nas vítimas, e Gabriel Pereira Dantas. No total, a polícia investiga a participação de oito pessoas nos assassinatos.
As mortes acabaram expondo ainda mais o enfraquecimento do órgão indigenista promovido pelo governo Bolsonaro e a violência na Terra Indígena Vale do Javari.
Primeira greve em 10 anos
“Essa questão do Bruno levantou uma mobilização que há muitos anos não acontecia na Funai. Há 10 anos não se declarava greve na Funai. Então, a força do Bruno e do Dom levantou também uma série de questões que estavam dormentes, mas que também são mais que necessárias para que a gente fortaleça a política de povos isolados, a política [de povos] de recém-contato e a proteção das Terras Indígenas em geral”, diz Luiz Carlos Lages, servidor da Funai e membro da INA.
“É inevitável, nesse contexto, a gente não passar para a pauta que é o ‘Fora, Xavier!’, que é uma das nossas principais pautas aglutinadoras, justamente porque o Marcelo Xavier veio à Funai para cumprir a promessa feita pelo presidente Bolsonaro de dar uma foiçada no pescoço da Funai. Assim, na gestão dele, a proteção territorial das terras indígenas, não só do Javari, como do Brasil inteiro, sofreu bastante e tem sofrido uma série de ataques e revezes”, complementa.
Lages acrescenta que o movimento também condena a militarização do órgão indigenista, com a nomeação de integrantes das Forças Armadas e policiais sem qualificação ou experiência para cargos importantes.
Durante o ato em Brasília, a servidora e membra da INA Luana Almeida explicou que os funcionários foram ignorados por Xavier na tentativa de dialogar sobre as reivindicações. Depois disso, o movimento decidiu que não o considera mais um interlocutor válido. De acordo com a INA, o secretário-executivo adjunto do Ministério da Justiça, Washington Leonardo Guanaes Bonini, prometeu um encontro com o ministro Anderson Torres nos próximos dias.
“Hoje, o maior objetivo da greve é sermos recebidos pelo ministro da Justiça para poder apresentar as nossas reivindicações e para poder pactuar com pessoas que tenham de fato poder decisório, para tirar encaminhamentos relativos aos [nossos] oito pontos emergenciais, e também uma pauta estruturante para recomposição e reorientação da atuação da Funai em prol da sua missão institucional, que é proteger e defender os direitos dos povos indígenas”, afirmou.
Os oito itens mencionados por Almeida foram encaminhados a Torres, no dia 20, por meio de um ofício. Entre as demandas, estão o envio de forças de segurança para garantir a integridade física dos servidores em todas as bases de proteção do Vale do Javari; a continuidade das investigações dos assassinatos de Pereira e Phillips e a identificação dos mandantes; e a saída dos atuais membros da cúpula da Funai, incluindo os que ocupam cargos superiores (confira lista no quadro ao final da reportagem).
Omissão da Funai e do Estado
“O Vale do Javari diz que vai lutar até o último índio e afirmo: não sei quanto tempo estarei aqui, mas gostaria de ressaltar isso — nós estamos com vocês e vamos nos fortalecer porque certamente unidos nós vamos vencer e, mais ainda, vocês não estão sós. É por Dom e por Bruno!”, ressaltou o assessor jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Eliésio Marubo, no ato em Brasília.
“Eles dois perderam a vida pela omissão do Estado, pela omissão da Funai, que teima em criminalizar a conduta de vocês servidores, que teima em criminalizar a atuação das nossas organizações, das nossas lideranças”, concluiu.
Além dos servidores da Funai, a mobilização desta quinta contou com o apoio de representantes dos povos indígenas que reforçaram a crítica ao desmonte do órgão indigenista e as reivindicações por condições dignas de trabalho para os servidores. Os indígenas fizeram rezas e prestaram homenagens a Pereira e Phillips.
O que estão reivindicando os servidores da Funai?
1) Declaração pública do presidente da Funai, retratando-se de suas declarações difamando Bruno Pereira e Dom Phillips.
2) Envio imediato de forças de segurança para garantir a integridade física dos servidores da Funai em todas as bases de proteção da Terra Indígena do Vale do Javari e coordenações regionais (CRs) da Funai na região.
3) Envio imediato de força-tarefa para apoio aos servidores e às atividades das CRs Alto Solimões e Vale do Javari, bem como da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari.
4) Nenhuma retaliação aos servidores em greve, incluindo mudanças de lotação, exoneração de cargos e abertura de sindicâncias administrativas.
5) Pagamento dos dias parados aos grevistas sem compensação de horário.
6) Apuração até o fim das responsabilidades pelos assassinatos, ressaltando que a violência no Vale do Javari tem conexões com o crime organizado.
7) Que o Ministro da Justiça receba imediatamente uma comissão dos servidores para discutir as reivindicações.
8) Troca do comando da Funai, incluindo o presidente Marcelo Xavier e todos os membros anti-indigenistas da equipe de assessores e cargos de direção e assessoramento superior.
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Uma menina de 14 anos foi encontrada distante do território, com sinais de abuso. Outra, de 12 anos, segue desaparecida. Confira no Fique Sabendo
No dia 29/5, lideranças Guarani Kaiowá denunciaram violências sexuais cometidas contra duas crianças indígenas, de 12 e 14 anos, no Mato Grosso do Sul. De acordo com a organização de mulheres Kaiowá e Guarani Kuñangue Aty Guasua, as crianças foram sequestradas, estupradas e ameaçadas de morte por fazendeiros em retaliação à retomada do território ancestral de Tujury Guapo’y, em Amambai (MS).
Conforme relatos dos Guarani, após o resgate da primeira criança, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), os órgãos públicos locais e a Fundação Nacional do Índio (Funai) não prestaram atendimento e nem tomaram providências quando a jovem de 14 anos foi encontrada distante do território, com sinais de tortura e abuso sexual. Segundo as lideranças, a criança de 12 anos segue desaparecida.
O povo Guarani Kaiowá vêm sofrendo ataques de fazendeiros locais de forma constante. Em maio, Alex Guarani Kaiowá, de 18 anos, foi assassinado a tiros em Coronel Sapucaia (MS), na fronteira dessa mesma região reivindicada pelos indígenas. Outro jovem foi atropelado por uma caminhonete. Por isso, o povo teme novos ataques e cobra a presença da Funai, do Ministério Público de Ponta Porã (MS) e dos demais órgãos públicos responsáveis.
E você com isso?
A situação dos Guarani Kaiowá, infelizmente, não é um fato isolado, mas faz parte do contexto de violência histórica e sistemática contras os povos indígenas. Nos últimos quatro anos, a violência contra essas populações cresceu vertiginosamente. Em 2020, segundo o relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, do Cimi, 182 indígenas foram assassinados – um número 61% maior do que o registrado em 2019, quando foram contabilizados 113 assassinatos.
A juventude indígena é alvo do conflito territorial. As jovens indígenas, em especial, têm tido seus corpos e vidas violadas. Infelizmente, há uma subnotificação dos casos.
O estudo Yanomami sob Ataque, da Hutukara Associação Yanomami, lança luz sobre acontecimentos similares ao do território Tujury Guapo’y. A Hutukara denunciou a violência dos garimpeiros ilegais na Terra Indígena Yanomami (AM-RR) contra as mulheres. Segundo os depoimentos coletados por pesquisadores indígenas, garimpeiros estariam as abusando sexualmente de jovens mulheres em situação de vulnerabilidade social após embriagá-las.
Extra
A ocupação territorial pode, sim, existir em harmonia com a conservação ambiental. É o que mostram os povos originários que ocupavam a Amazônia antes da chegada dos colonizadores.
Escavações arqueológicas revelaram que já havia vestígios de urbanismo na Amazônia boliviana antes da chegada dos espanhóis às Américas. Essas escavações foram feitas em dois "montes" perto da aldeia de Casarabe, na Bolívia, e os resultados foram publicados na revista Nature.
Os pesquisadores apontaram evidências de uma arquitetura cívico-cerimonial com plataformas escalonadas, estruturas em forma de "U', pirâmides cônicas com até 22 metros de altura, além de uma grande infraestrutura de gestão de água, composta por canais e reservatórios.
Tudo isso fez com que os cientistas concluíssem que a América pré-hispânica não era pouco povoada e que os habitantes desta região criaram uma nova paisagem pública e social. As descobertas também mostram que a conservação ambiental das Terras Indígenas é uma estratégia de ocupação estabelecida por seus moradores há séculos. Os povos originários ajudam a preservar e ampliar a diversidade da fauna e da flora local porque têm formas únicas de viver e ocupar um lugar.
Baú Socioambiental
As aldeias Jaguapiru e Bororó, em Dourados (MS), celebram 120 anos de criação neste mês. Atualmente, quase 20 mil indígenas das etnias Guarani, Kaiowá e Terena vivem nas duas aldeias, em uma área de 3,5 mil hectares.
A Casa de Reza faz parte da história cultural da área e tornou-se símbolo de luta e resistência das comunidades indígenas. A estrutura é a de uma oca típica Kaiowá e, por ser um local sagrado, tradicionalmente só indígenas podem entrar. Não se sabe quantas existem atualmente, mas, nos últimos anos, em decorrência da intolerância religiosa, 17 dessas casas foram queimadas em Mato Grosso do Sul, segundo levantamento da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Em outubro do ano passado, a casa de reza Oga Pysy, no tekoha Rancho Jacaré, município de Laguna Carapã (MS), foi alvo de mais um incêndio criminoso. Foi a sétima casa de reza incendiada só em 2021 no estado. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), os rezadores e rezadoras são ameaçados com frequência.
Socioambiental se escreve junto
Para tentar minimizar os estragos seculares da violência contra mulheres indígenas, a Articulação Nacional Das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (anmiga.org) lança a Jornada Das Mulheres Indígenas pelo Brasil, com o objetivo de fortalecer e acolher essas mulheres, para proteger a cultura e identidade milenar, sob a perspectiva feminina indígena.
Nomeada “Caravana das Originárias”, a Aarticulação irá percorrer todos os biomas do território nacional e promover ações de fortalecimento, protagonismo e acolhimento entre mulheres indígenas.
Durante a jornada serão realizados debates e ações sobre os seguintes eixos: Mudanças climáticas e reflorestamentos; Participação e representação das Mulheres Indígenas no espaços de poder; BioEconomia indígena; Violência baseada em gênero e violações de direitos contra as Mulheres Indígenas dos territórios e fora dos territórios; Articulação das Redes de apoio às mulheres vítimas de violência de gênero; Mobilização e fortalecimento de coletivos/associação de jovens e mulheres indígenas.
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#ElasQueLutam! Inspirada e motivada pelas lideranças tradicionais de seu povo, a jovem dá continuidade à resistência indígena e à defesa do seu território
“Uma linha do tempo”. É assim que Maial Paiakan Kaiapó enxerga a luta pelos territórios e direitos indígenas: como uma resistência contínua, que passa dos mais velhos para os mais jovens. Ela se transforma ao longo dos anos, ganha novas caras e formas, mas tem sempre um objetivo comum: fortalecer as tradições e culturas das comunidades e proteger a humanidade.
Mulher aguerrida e importante liderança da Terra Indígena Kayapó (PA), Maial nota que muito do que aprendeu sobre luta descobriu com os que vieram antes. E que seu trabalho hoje vem para dar seguimento ao que começou com eles. “[Estamos] construindo a nossa própria história, mas com um olhar muito grande em relação ao nosso passado,” reflete. “Se a gente está no movimento indígena, é porque a gente tem uma base forte, porque a gente vem da aldeia e conhece a nossa realidade”.
A “base” a qual ela se refere é composta de muita gente, mas a principal inspiração é seu pai, Paulinho Paiakan. Decisivo para a conquista do Capítulo dos Índios na Constituição e na luta contra Kararaô, a atual hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira (PA), Paiakan sempre acreditou no potencial das filhas para a mobilização e investiu nessa formação.
“[Nós] sempre participamos de atos, reuniões; em momentos importantes da luta dos indígenas, a gente estava”, conta.
Foi com o pai, por exemplo, que Maial percebeu a importância da união entre os vários povos indígenas e movimentos sociais por um bem comum - sonho que ela ajuda a realizar hoje em dia, como porta-voz da Aliança em Defesa dos Territórios. A aliança junta os povos Kayapó, Munduruku e Yanomami para enfrentar a invasão garimpeira em suas terras.
“Iniciou [nos anos 1980] com o Davi Yanomami lutando pelo território. Meu pai foi visitá-lo na Terra Indígena Yanomami; e hoje é o filho dele, Dário, e também eu e a minha irmã, O-é Kaiapó, [estamos atuando] na mesma pauta, na mesma luta”, comenta. Como o pai fez décadas atrás, Maial visitou recentemente a Terra Yanomami (RR-AM), durante as celebrações dos 30 anos de homologação do território, para fortalecer a união entre os três povos e trocar experiências sobre o garimpo ilegal. “A gente quer proteger nosso território, não queremos garimpo”, explica. “Deixamos nossas diferenças de lado e é todo mundo lutando junto”.
Formação para a coletividade
Para Maial, o pai é uma referência também por ter sido o maior incentivador para que as filhas estudassem. Aos sete anos, Maial mudou-se para a cidade de Redenção (PA) para frequentar a escola não indígena, conhecer a cultura dos "brancos" e, no futuro, aplicar essa sabedoria nas lutas dos Kayapó. “Não é uma decisão individual, ela é pelo coletivo, é em defesa do território”, explica.
A escolha de ir para a cidade culminou com uma conquista inédita: Maial foi a primeira pessoa do seu povo a concluir uma graduação, formando-se em Direito em 2015.
“É um projeto que foi elaborado pelo meu pai e que deu muito certo. Se não fosse essa iniciativa, talvez hoje tivéssemos poucos estudantes indígenas ainda”, comenta. “A graduação foi importante para o meu povo no sentido de incentivar outros jovens de que estudar é possível”.
Tanto o curso quanto a trajetória após a graduação foram decididos também com o coletivo em mente. “Eu precisava entender melhor sobre os direitos que a gente tem e o que a gente está lutando”, lembra. Depois de formada, Maial atuou com temas de proteção territorial na sede da Fundação Nacional do Índio (Funai) e, na sequência, na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), em Brasília.
“A saúde indígena me deu um olhar completamente diferente de tudo”, aponta. “De que a nossa ligação com o território não é de posse, mas de saúde, cultura, espiritualidade”.
Mas, nesta trajetória, um dos momentos que ela se recorda com mais carinho é quando começou a trabalhar com a deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR) e pôde entrar pela primeira vez na Câmara dos Deputados sem ser barrada. “Quando estamos com o movimento, a gente chega ali e a recepção é horrível. Então, foi emocionante entrar lá para trabalhar e, principalmente, com uma mulher indígena eleita”, conta.
Foi lá também que ela percebeu a importância de os povos indígenas se empoderarem de conhecimentos sobre a política partidária e o funcionamento de leis e se organizarem para ocupar estes espaços. “Tudo o que a gente faz, e tem, e luta, é política. Então, como a gente não vai falar de políticas públicas, de conquistas?”, questiona.
Mulheres indígenas
Hoje, Maial desponta como um exemplo do momento de transformação pelo qual passa o movimento indígena. Como ela mesmo avalia, o rosto da resistência está cada vez mais jovem e feminino. “É nós por nós!”, avisa. “As mulheres lutando pelo território, enfrentando garimpeiros, retirando invasores. Eu acho magnífico”.
Mas esse protagonismo feminino sempre fez parte da vida de Maial. Ela cresceu observando e se inspirando em mulheres como a mãe, Irekran Kaiapó, e a tia, Tuíra Kayapó, conhecida pela icônica cena em que colocou um facão contra o rosto do então diretor da Eletronorte, no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em 1989, em Altamira. E hoje, tudo o que ela faz tem essas mulheres como ponto de partida.
“Tudo o que eu aprendi em relação a ser forte, foi com as mulheres indígenas”, conta. Elas, explica Maial, carregam ao mesmo tempo um olhar muito firme na luta, mas que é também de muito carinho, cuidado e coletividade. “[É sobre] estar juntas, ali, de mãos dadas. Eu estou um pouco longe de casa, mas aonde quer que eu vá, eu tenho a presença delas comigo”.
Nada, é claro, vem sem seus desafios. “É racismo, desentendimento das pessoas sobre os povos indígenas e nossa cultura”, salienta. “Como mulher, aumenta a responsabilidade, porque a gente tem que lutar para provar que pode construir [junto], que a gente pode estar nesse campo [de liderança]”. Mesmo assim, Maial reafirma a importância de mulheres, indígenas e não indígenas, assumirem a linha de frente e se unirem pela proteção da terra. “Vamos estar afastando a violência, o estupro, uma série de coisas que afetam principalmente a vida das mulheres indígenas”, diz.
Em uma das últimas conversas que teve com o pai – Paulinho Paiakan foi uma das grandes lideranças indígenas que faleceram na pandemia de Covid-19 –, Maial escutou que já estava preparada para caminhar sozinha. “Foi a primeira vez que ele falou isso. Ele sempre nos tratou no sentido de que a gente ainda tinha o que aprender,” diz. Foi um momento muito importante, que consolidou o entendimento de que ela vinha adquirindo conhecimento desde jovem e estava, sim, pronta para lutar pelo seu povo. “Se a gente não acredita na nossa luta, quem é que vai fazer isso?”, reflete.
“O território significa muito: o nosso corpo, os nossos valores, a nossa cultura. E a morte do território é a morte dos povos indígenas,” finaliza. “O que me move é olhar para o passado e observar que, se a gente tem território hoje, foi porque meu pai, meus avós, lutaram. Então agora está nas minhas mãos garantir isso”.
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