Sócio fundador do ISA, Márcio Santilli denuncia a tentativa bolsonarista de tomar de assalto a Frente Parlamentar Indígena. Artigo publicado originalmente no site da Mídia Ninja
Coronel Chrisóstomo é deputado federal reeleito pelo PL em Rondônia. Às vezes, desfila pela Câmara com terno e quepe do Exército. Integra a Comissão de Segurança Pública e a chamada “Bancada da Bala”. Na reforma da Previdência, votou por regras mais flexíveis para a aposentadoria de policiais, mas rejeitou tratamento similar para os professores. Participou da base parlamentar do governo anterior e, agora, deve estar entre os opositores mais radicais ao presidente Lula no Congresso.
Chrisóstomo não tem nada de indígena, muito pelo contrário. Defende os invasores de Terras Indígenas no seu estado e nunca se importou com a trágica situação dos Yanomami e de outros povos engendrada no governo passado. Apesar disso, ele protocolou na mesa da Câmara um requerimento para reconstituir a Frente Parlamentar de Defesa dos Povos Indígenas, que esteve sob a coordenação da ex-deputada Joênia Wapichana (Rede-RR), agora presidente da Fundação dos Povos Indígenas (Funai).
Não se trata de uma conversão súbita ao indigenismo. O deputado bolsonarista representa o estado de Rondônia, mas subverte o espírito do Marechal Rondon. Ao contrário, o seu requerimento presta-se a tentar um golpe, para usurpar o protagonismo da bancada indígena na reconstrução da FPI na legislatura que se inicia. O objetivo é inverter a sua missão, fazendo dela um instrumento de boicote às políticas indígenas.
Frente e versus
Como diz o ditado, “ninguém chuta gato morto”. As frentes parlamentares são grandes guarda-chuvas políticos e a sua formação depende do apoio de cerca de 200 parlamentares. Em geral, atuam de forma intermitente. Mas a FPI esteve entre as mais atuantes na legislatura passada, sob a coordenação da deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), com apoio das organizações indígenas e agenda consistente. A FPI teve um papel fundamental na resistência ao retrocesso nas políticas do governo Bolsonaro, impedindo, por exemplo, a subordinação da Funai ao Ministério da Agricultura e aprovando a implantação de um programa específico de proteção à população indígena na pandemia.
Joenia fez um excelente mandato como primeira mulher indígena a chegar à Câmara. Nas eleições passadas, aumentou em 30% a sua votação pessoal, mas a sua federação partidária não atingiu, em Roraima, o quociente eleitoral necessário para conquistar uma cadeira. A convite do próprio presidente Lula, será a primeira presidente indígena da Funai.
Apesar da não reeleição de Joenia, duas mulheres diretamente ligadas ao movimento indígena elegeram-se deputadas federais nas últimas eleições: Sônia Guajajara, por São Paulo, e Célia Xakriabá, por Minas Gerais, ambas do PSol. Sônia foi nomeada por Lula para dirigir o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas e Célia permanecerá na Câmara como referência principal do movimento indígena.
Outros parlamentares eleitos também se auto-identificam como indígenas, como os senadores Hamilton Mourão (Republicanos-RS), ex-vice-presidente da República, e o atual ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias (PT-PI), além da deputada federal Silvia Waiãpi (PL-AP). Eles são descendentes de povos indígenas, mas não participam do movimento indígena e nem mantêm vínculos, ou são reconhecidos como tais, por suas comunidades de origem.
A deputada Juliana Cardoso (PT-SP) também se auto-identifica como indígena e promete atuar de forma contundente na defesa dos direitos dos povos originários.
Seria mais do que natural que, na legislatura que se inicia, Célia Xakriabá viesse a coordenar a FPI, sucedendo à Joênia. Mas é aí que entra na história o requerimento fake do Coronel Chrisóstomo: a ideia é puxar o tapete e derrubar Célia, convertendo a FPI numa frente anti-indígena, a ser comandada por Silvia Waiãpi, do seu partido.
Sílvia Waiãpi é tenente do Exército, foi eleita pelo PL e é bolsonarista “raiz”. Lideranças do povo Waiãpi já disseram que não compartilham das posições políticas da deputada e que ela não os representa. Por sua vez, a apoiadora de Bolsonaro não tem compromisso com a defesa de direitos indígenas, embora se identifique como indígena: opõe-se à demarcação de terras, defende o garimpo predatório nessas áreas e a aculturação forçada dos povos originários.
Em disputa
As frentes parlamentares são espaços suprapartidários, para tratar de agendas específicas. Não se confundem com as comissões permanentes, que aprovam pareceres sobre projetos de lei e outras proposições legislativas a serem votadas em plenário. A função das frentes é de articulação e mobilização, para unir diferentes forças em função de objetivos comuns.
Suas coordenações, quase sempre, são definidas de forma consensual, entre os parlamentares mais atuantes em cada tema. Só eventualmente há disputa por elas. Agora mesmo, há quatro pretendentes a coordenar a Frente Parlamentar Evangélica, mas essa é uma exceção e não a regra. O requerimento de Chrisóstomo, no entanto, é a primeira tentativa para inverter o objetivo político de uma frente, além de usurpar sua coordenação.
A disputa pela FPI ilustra bem o que podemos esperar de um Congresso altamente polarizado, como o que toma posse nesta semana. É bem verdade que, nunca antes na história do país, os povos indígenas tiveram tanta presença direta no Estado, o que também influenciará o novo Congresso. Mas toda a atenção é pouca: a história nos ensina que, em briga de branco, sempre sobra para os povos indígenas.