ISA lança livro sobre desmonte da gestão das Unidades de Conservação
Publicação será lançada em Brasília e São Paulo, simultaneamente, na próxima sexta (7), às 19h. São 23 artigos de pesquisadores e especialistas de organizações a sociedade civil
Entre pesquisadores, ambientalistas, sociedade civil e grande imprensa, é consenso que o governo Bolsonaro é o pior para o meio ambiente e para os povos tradicionais no Brasil desde a redemocratização.
O impacto nas Unidades de Conservação (UCs) é evidente. Entre 2018 e 2021, o desmatamento nas UCs da Amazônia subiu de 76 mil hectares para 140 mil hectares, um acréscimo de 45%, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Entre 2019 e 2021, período da atual administração com dados já consolidados, a taxa bateu três recordes sucessivos, todos acima de 100 mil hectares, acompanhando a alta das taxas gerais de destruição da floresta no mesmo período. Um hectare corresponde a mais ou menos um campo de futebol.
Na próxima sexta-feira (7), às 19h, o ISA lança o livro “Como proteger quando a regra é destruir”, que avalia a situação atual, perspectivas e desafios do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUCs), considerando o contexto de desmonte da política ambiental promovido pela gestão Bolsonaro.
A publicação é organizada por Nurit Bensusan e Antonio Oviedo, ambos assessores do ISA, e editada pela editora Mil Folhas, do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB). O lançamento será feito simultaneamente em São Paulo e Brasília, com debates com a participação de alguns dos autores dos artigos do livro (mais informações ao final do texto).
Em 23 artigos de pesquisadores e técnicos de organizações a sociedade civil, o livro analisa o papel das UCs na proteção da floresta; o panorama de ameaças a elas, como a grilagem de terras e o garimpo ilegal; estratégias de monitoramento; a situação das comunidades tradicionais e a importância de seus conhecimentos para a conservação e o equilíbrio climático; as áreas protegidas marinhas, entre outros.
“Enquanto insistirmos em transformar esse planeta convidativo em um mundo hostil para nós mesmos, não haverá futuro, nem país. É essencial recuperar estratégias e possibilidades de proteger a biodiversidade e os modos de vida de povos e comunidades que garantem a persistência dessa biodiversidade”, aponta Bensusan. “Mas não basta recuperar as políticas e instituições, temos que fazer mais, temos que reinventar a conservação para além da visão tecnocrática e colonial”, completa.
Esperança
“Nunca tivemos tantas invasões de áreas protegidas, tantas propostas de mudança nas normas e leis visando fragilizar o Sistema Nacional de Unidades de Conservação; nunca antes tantos tomadores de decisão se posicionaram de forma aviltosa contra a conservação da natureza; nunca se registraram tantos atentados contra bens públicos relacionados à conservação ambiental no Brasil”, denuncia a assessora do ISA Adriana Ramos na apresentação da obra.
“Ainda assim, é nas áreas protegidas que residem as maiores esperanças do país quanto à proteção do patrimônio natural e ao cumprimento de compromissos e acordos internacionais visando à conservação da biodiversidade e o
enfrentamento das mudanças climáticas”, continua.
Serviço
Como proteger quando a regra é destruir
Lançamento simultâneo em São Paulo e Brasília
Sexta, 07/10 - 19h
Locais
São Paulo
Floresta no Centro, Galeria Metrópole, 2º mezanino, Centro
Debate com Antonio Oviedo (ISA), Sueli Ângelo Furlan (USP), Cláudio Maretti (USP) e Mariana Napolitano (WWF-Brasil)
Brasília
Memorial Darcy Ribeiro , campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília (UnB), Asa Norte, Plano Piloto.
Debate com Nurit Bensusan (ISA), Mauricio Guetta (ISA) e Ana Paula Prates (Instituto Talanoa)
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Amazônia sem lei
O sócio fundador do ISA Márcio Santilli analisa as consequências da possível transição política para a Amazônia. Artigo publicado originalmente no site do Mídia Ninja em 9/9/2022
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
É cada vez menos verdade se dizer que é a lei da selva que prevalece na Amazônia. Foi assim em outros tempos. Na floresta tropical, a abundância de vida e a intensidade da luta pela sobrevivência tornam mais evidente a presença da violência. Essa violência, porém, não difere, em essência, daquela destinada por sociedades que se consideram “civilizadas” aos migrantes e outras populações de origens geográficas, culturais, políticas ou sociais diversas. Mesmo assim, associamos a palavra “selvagem” à prática deliberada da violência.
A arqueologia contemporânea ensina que a ação humana sempre foi protagonista na produção da biodiversidade, desde que os seres humanos vivem nela e dependem dela. A ciência tem demonstrado que a Amazônia é, também, produto dessa vivência, o que deixa evidente que a associação entre selva e violência – a noção de “selvageria” – é mais colonial do que propriamente humana. É mais fruto de uma estranheza, uma exterioridade.
Não há dúvida de que a floresta impôs e continua impondo forte resistência ao padrão ideal de ocupação colonial, fundado no seu consumo mercantil e, afinal, na sua supressão. Se considerarmos a persistência da violência colonial contra a floresta, intensificada pelo avanço tecnológico, é surpreendente que florestas ainda existam, embora cada vez menos. Nesse processo, o que fica mais evidente é que a selvageria, no sentido da violência, é o próprio desmatamento. E que a vida, em sentido amplo, depende do que resta das florestas.
“Selva!”
A página do Exército no Facebook ensina que a saudação “Selva!”, comumente usada entre os militares, teve origem na frequência com que os motoristas dos veículos militares repetiam esse brado para indicarem o seu destino, na portaria do Centro de Instrução de Guerra na Selva, em Manaus. Nunca houve uma guerra na selva nem em Manaus. A indicação dos motoristas era de que o seu destino estava além do enclave urbano. A saudação também vai além, expressando a disposição de enfrentar as agruras da selva.
O Exército vale-se do poder legal de convocação, muito mais efetivo do que o das demais instituições públicas, para garantir alguma presença do Estado na região amazônica. Presença de um Estado estruturado a partir de fora da selva, ou da Amazônia, que não foi constituído a partir das formas próprias de organização das populações originais. Embora o censo do IBGE considere como essencialmente rurais 85% dos municípios da região, o poder político nos estados se articula a partir de 20 cidades, onde vive a metade da população e a maioria dos eleitores. A maior parte do território e os que vivem nela estão à margem das estruturas e dos investimentos públicos.
A presença do Exército vem sendo reforçada e aporta recursos e benefícios em algumas regiões de fronteira. Também é crescente o recrutamento local de efetivos, inclusive de indígenas. Porém, a leniência dos governos diante da predação organizada dos recursos naturais e a sucessão de assassinatos na Amazônia escancaram a ineficácia da presença militar para conter o avanço da criminalidade, mesmo nas regiões de fronteira, e para garantir a paz e a segurança dos que vivem lá.
Nos últimos anos, valendo-se da impunidade, tomou proporções inéditas a organização da grilagem de terras públicas e da invasão de terras indígenas e de unidades de conservação, associadas à exploração predatória e intensiva dos recursos minerais e florestais. A violência é um dos seus resultados, assim como o aumento do desmatamento a cada ano.
Investigações recentes da Polícia Federal sobre garimpos predatórios nas terras Yanomami (AM-RR), Munduruku e Kaiapó (PA), assim como sobre os assassinatos recentes, no Vale do Javari (AM), do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Don Phillips, mostram o protagonismo do narcotráfico, que lava dinheiro e se vale da logística da produção predatória, controlando extensão crescente da Amazônia.
Também estão sendo apuradas as relações entre essas engrenagens do crime organizado com empresas formalmente constituídas, que legalizam a produção predatória nas respectivas cadeias produtivas, e com políticos e governantes. Essas redes de interesses criminosos permeiam as pressões, no Congresso Nacional, pela legalização da grilagem de terras e da predação mineral em terras indígenas. Assim como permeiam a agenda do presidente Bolsonaro, com visitas a garimpos e a presença dos envolvidos nas suas lives e em outros eventos oficiais.
Emergência
Se as eleições de outubro confirmarem a vitória do Lula, indicada nas pesquisas, será este o tamanho da bronca: desmontar as redes de formação de milícias da Amazônia. A situação requer, como emergência, o comando da inteligência policial e militar sobre as forças. Como estratégia, impõe priorizar investimentos em projetos das populações amazônicas marginalizadas, que ainda garantem o que há de floresta em pé.
Lula pretende indicar um civil para o Ministério da Defesa, criar um ministério para assuntos indígenas e uma secretaria especial para orientar o desenvolvimento científico e tecnológico da Amazônia. Ele tem reiterado que vai reprimir o garimpo predatório em terras indígenas e retomar a política de redução do desmatamento. Desarticular as quadrilhas da predação organizada será uma condição de viabilidade para o seu programa de governo.
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| André Villas-Bôas / ISA
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Copiô, Parente! Dispara violência contra os povos indígenas
Três indígenas foram assassinados em um intervalo de menos de 48 horas; dois deles eram adolescentes
A violência contra os povos indígenas voltou a explodir. No final de semana dos dias 3 e 4, no espaço de menos de 48 horas, três indígenas foram mortos. No município de Arame, no sudoeste do Maranhão, Jael Carlos Miranda Guajajara morreu após ser atropelado. Não muito longe dali, em Amarante, também no Maranhão, Janildo Oliveira Guajajara foi assassinado com tiros nas costas e um outro indígena, de apenas 14 anos, também foi ferido.
Em Prado, no sul da Bahia, Gustavo Silva da Conceição, jovem do povo Pataxó de apenas 14 anos, levou um tiro após a invasão por pistoleiros na terra indígena Comexatibá. Outro adolescente de 16 anos também foi baleado, mas está fora de perigo. A suspeita é que os três crimes tenham sido causados como retaliação à resistência contra invasões aos territórios indígenas.
O povo Pataxó aguarda pela demarcação da Terra Indígena Comexatibá há 17 anos. O relatório de identificação foi publicado pela Funai em 2015, porém, o processo não evoluiu além disso. No Maranhão, em Amarante, Janildo Guajajara era um dos guardiões da floresta, grupo que atua para prevenir, identificar e denunciar o roubo de madeira e outros crimes em terras indígenas do sudoeste do Maranhão.
Segundo nota da Associação dos Guardiões da Floresta da Terra Indígena Araribóia, seis guardiões já foram mortos sem que os assassinos tenham sido responsabilizados e punidos. De acordo com dados do último Relatório Violência contra os Povos Indígenas do Brasil, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 2021 foram registrados 176 assassinatos de indígenas no país, apenas seis a menos do que em 2020, quando foi observado o maior número de assassinatos desde pelo menos 2014.
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Produção: Ester Cezar Roteiro: Ester Cezar e Oswaldo Braga Apresentação: Cristian Wari’u e Carolina Fasolo Edição de áudio e artes para redes sociais: Cristian Wari’u Estagiário: Helder Rabelo
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Vota, parente! Como são eleitos os candidatos
Saiba como funcionam os modelos de eleição no Brasil e o que são os votos brancos e nulos. Mais um episódio da série especial do podcast Copiô, Parente
No Brasil, existem dois tipos de sistema que elegem candidatos aos cargos em disputa no Executivo e no Legislativo: majoritário e proporcional. O sistema majoritário, como o próprio nome diz, elege quem tem a maioria, quem ganha mais votos.
Já o proporcional surgiu para garantir a representação e a eleição de candidatos pertencentes a regiões e grupos que não eram representados de maneira justa. Ele é destinado aos cargos de deputados federais, estaduais, ou distritais, no caso do Distrito Federal, e vereadores. Como indica sua denominação, elege candidatos de acordo com a quantidade de eleitores de cada estado. Portanto, estados que têm uma população maior podem eleger mais candidatos do que os que têm uma população menor.
Além disso, nosso sistema permite que sejam dados votos brancos ou nulos, que simbolicamente representam o descontentamento dos eleitores com os candidatos aos cargos em disputa.
Confira neste episódio do podcast Copiô, Parente como os candidatos são eleitos em cada sistema e qual a importância de escolher alguém para votar.
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Produção e roteiro: Ester Cezar Apresentação: Cristian Wari’u e Ester Cezar Edição de áudio e artes para redes sociais: Cristian Wari’u Estagiário: Helder Rabelo
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ONGs apresentam dados ao STF para derrubar lei que altera APPs urbanas
Legislação ameaça biodiversidade, aumenta o risco de desastres ambientais e agrava crises hídrica e climática, segundo estudos incluídos em manifestação
Organizações da sociedade civil, entre elas o ISA, protocolaram um pedido, na última sexta-feira (19), para entrar como amici curiae (“amigos da corte”) da ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que pede a declaração de inconstitucionalidade da lei que permite a redução e até a eliminação de Áreas de Preservação Permanente (APPs) nas margens de rios em cidades. O amici curiae é uma instituição ou pessoa que fornece informações e auxilia as partes em um processo judicial
A nova legislação é considerada por especialistas como o mais grave retrocesso ambiental no atual governo. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) foi protocolada, em abril, pelo PSB, PSOL, PT e Rede. Além de alegar que a norma viola a Constituição, a ADI pede medida cautelar para suspender imediatamente seus efeitos.
Votado pelo Congresso no ano passado, o Projeto de Lei (PL) que originou a Lei n.º 14.285/2021, conhecida como “Lei das APPs Urbanas”, tramitou em tempo recorde: foi aprovado sem audiências públicas, sem passar em comissões e em votações expressas nos plenários da Câmara e do Senado. A norma foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no apagar das luzes de 2021, em 29 de dezembro.
Com a lei, cada um dos 5.570 municípios brasileiros fica autorizado a reduzir ou mesmo eliminar as APPs hídricas dentro do perímetro urbano, possibilitando o desmatamento e a instalação de imóveis e empreendimentos de impacto nessas áreas sensíveis. A medida altera o Código Florestal, que determina uma faixa de 30 a 500 metros para as áreas de proteção que não foram desmatadas antes de 2008, dependendo da largura do curso d’água, em todo país.
Em fevereiro, a Câmara de Meio Ambiente do Ministério Público Federal manifestou-se contra as alterações. O colegiado entendeu como inconstitucional a permissão para que municípios reduzam a proteção estabelecida pela legislação federal.
De acordo com o Código Florestal, as APPs são áreas essenciais para a manutenção do equilíbrio ecológico, prestando serviços ambientais como a preservação dos recursos hídricos, da biodiversidade e a manutenção dos solos, garantindo a estabilidade do solo e prevenindo catástrofes com enxurradas e deslizamentos de terra, como a que atingiu a região serrana do Rio de Janeiro, em junho.
Na ação, o ISA, Observatório do Clima, SOS Mata Atlântica, WWF Brasil, Rede de Organizações Não Governamentais da Mata Atlântica e a Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi) afirmam que, entre os efeitos mais nocivos da lei, estão a autorização para novos desmatamentos e a instalação de novas ocupações e atividades poluentes de alto impacto ambiental nas margens de rios, sem qualquer estudo técnico.
Antes, apenas excepcionalmente atividades econômicas poderiam ser instaladas nessas áreas, sob justificativa de “utilidade pública, interesse social ou baixo impacto”. Agora, com a nova lei, qualquer empreendimento ou ocupação pode ser realizada nas margens de rios, desde loteamentos de casas até indústrias poluentes. A norma libera até mesmo atividades proibidas pelo próprio STF, como as de tratamento de lixo, que podem gerar contaminação dos rios.
Municípios já reduzem APPS
“Os rios e a biodiversidade não conhecem fronteiras municipais. Os desmatamentos e os consequentes danos cometidos por um município serão sentidos em outros municípios, estados e até países”, afirma Maurício Guetta, assessor jurídico do ISA. “Deixar que cada um dos 5.570 municípios desrespeite o piso mínimo federal e defina suas margens de proteção a rios, inclusive com a possibilidade de simplesmente eliminá-las, configura uma das mais graves ameaças ao equilíbrio ecológico”.
Vários municípios já começaram a reduzir ou eliminar APPs de cursos d’água. Menos de dois meses depois da edição da nova legislação federal e sem qualquer processo de avaliação técnica, Tiradentes do Sul (RS) aprovou uma lei municipal que prevê faixas marginais de 2,5 metros.
Trata-se de uma proteção insignificante para manter as funções dessa vegetação, como explica João de Deus Medeiros, coordenador-geral da Rede de ONGs da Mata Atlântica. "Ter uma faixa ripária de 2,5 metros ou nenhuma faria pouca diferença, já que as funções remetidas a essa faixa ripária, com uma extensão tão reduzida, teriam um comprometimento completo de sua eficácia”.
Para ele, essa é a razão maior para defender a manutenção de um parâmetro mínimo nacional, como estabelece o Código Florestal. “Sabemos que nos municípios há muita pressão e interesses para ocupação dessas áreas, notadamente em virtude da especulação imobiliária típica das áreas urbanas. Remeter aos municípios a competência plena nessa matéria poderá gerar prejuízos socioambientais sérios”, ressalta.
Na contramão do mundo e da comunidade científica, a Lei das APPs Urbanas também contribui para o agravamento da crise climática nas cidades. “Nesse momento em que os efeitos de eventos extremos decorrentes das mudanças climáticas globais se expressam em diversos municípios, deixando prejuízos de toda ordem para a coletividade, sejam pelas inundações e deslizamentos de encostas, seja pelas estiagens prolongadas que afetam a segurança hídrica de milhões de pessoas, a manutenção dessa lei reflete uma grande irresponsabilidade; configura um atentado à segurança e sustentabilidade das zonas urbanas”, explica Medeiros.
A petição das organizações da sociedade civil argumenta que o setor que mais emite gases causadores da emergência climática é o de “mudança do uso da terra”, com 46% do total, o que está diretamente ligado ao desmatamento. “Diante desse quadro, a abertura de faixas marginais de preservação permanente para novos desmatamentos atenta contra a necessidade de redução das emissões de gases causadores das mudanças do clima”, diz.
84% das APPs urbanas preservadas
A petição também analisa a questão hídrica no país. De acordo com estudo do MapBiomas, em pouco mais de três décadas o país perdeu mais de três milhões de hectares de superfície coberta por água, área maior do que o estado de Alagoas, ou seis vezes maior do que o Distrito Federal. O problema tem relação direta com o desmatamento das APPs.
“O estado de Mato Grosso do Sul, no Pantanal, perdeu 57% de suas águas no período. Na Amazônia, bioma qualificado como patrimônio nacional, o Rio Negro perdeu 22% de sua superfície de água. Já o Rio São Francisco, um dos mais relevantes do país, perdeu cerca de 50% de sua superfície de água nas últimas três décadas”, diz o pedido feito na ADI.
A análise inédita das áreas ainda preservadas num raio de até 30 metros das faixas marginais de rios em perímetros urbanos produzida pelo MapBiomas foi feita para contribuir com o julgamento da ADI e incorporada à manifestação das ONGs. Em 2020, essas áreas ainda intactas representavam 84% do total. “O que significa que grande parte das faixas marginais de rios em áreas urbanas está preservada, podendo ser destruída caso prevaleçam os efeitos da Lei”, argumenta a petição.
O estudo analisou ainda 17 municípios da Amazônia Legal e da Bacia do Paraná, regiões de alta relevância para o equilíbrio ecológico nacional. Nesses municípios, 82% das faixas ciliares de 30 metros estão cobertas por vegetação. “O atual cenário hídrico brasileiro, de rápida perda de capacidade hídrica e de seguidas e crescentes crises de abastecimento público, intensifica a necessidade de proteção efetiva das APPs para a garantia de água para as presentes e futuras gerações”, argumentam as organizações ambientalistas.
A escassez hídrica também traz impactos econômicos que vão além da crise de abastecimento para as residências. A redução de vazão nos rios afeta o transporte de commodities e o suprimento de alimentos. A agricultura irrigada sofre com altas nos custos e perdas de produção. No setor elétrico, o aumento de custos em 2021 foi generalizado não apenas na conta de energia, mas em todos os setores produtivos.
“De acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico, os reservatórios de hidrelétricas do Sudeste e do Centro-Oeste, que geram 70% da energia do país, operavam em 2021 com a mais baixa capacidade da história”, completa o texto do amici curiae.
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Deslizamento de terra em Petrópolis (RJ), abril de 2022 | Tomaz Silva | Agência Brasil
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Bancada da devastação
O sócio fundador do ISA Márcio Santilli analisa a lista de parlamentares com pior desempenho na agenda socioambiental elaborada pela organização Repórter Brasil. Artigo publicado originalmente no site da Mídia Ninja, em 18/8/2022
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
A equipe da agência Repórter Brasil divulgou, nesta semana, a 45 dias das eleições, um levantamento atualizado das posições assumidas pelos deputados federais nas votações de propostas legislativas relativas à pauta socioambiental durante a legislatura que se encerra.
O “Ruralômetro” sistematiza a atuação dos parlamentares em questões que envolvem o meio ambiente, os povos indígenas e os trabalhadores rurais. O desempenho dos deputados está consolidado em um ranking, que atribui uma temperatura à sua atuação: quanto mais alta, mais nefastos terão sido os seus efeitos para o país.
A divulgação do levantamento é oportuna e permite que os eleitores reflitam e tomem posição diante dos que se apresentam como candidatos nas próximas eleições (veja ranking completo). Ele revela o protagonismo predatório assumido pela bancada ruralista, autodenominada Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne cerca de 240 membros, quase metade da atual composição da Câmara dos Deputados, mas que tem um núcleo duro de articulação menor, de algumas poucas dezenas de parlamentares.
Segundo o levantamento, encabeçam o ranking da devastação os deputados Nelson Barbudo (PL-MT), Lúcio Mosquini (MDB-RO), Delegado Éder Mauro (PL-PA), Nicoletti (União Brasil-RR) e Vitor Hugo (PL-GO), todos com mais de 40 graus de temperatura. Quatro deles são da bancada amazônica mas apenas Éder Mauro é nascido na região. Todos integram a base governista.
Fronteira predatória
Embora também existam parlamentares sérios e responsáveis entre os que compõem a FPA, a sua diretoria é historicamente controlada por representantes do “ruralismo de fronteira”. A maioria dos integrantes da bancada é oriunda de regiões do Centro-Oeste e da Amazônia, onde ocorre a expansão da fronteira agropecuária, embora também haja deputados de outras regiões. Mas são os mais “predatórios” que definem a agenda da FPA, e não os setores mais dinâmicos do agronegócio, muito menos os ligados aos pequenos agricultores ou a outros atores do Brasil rural.
Existem, hoje, no Brasil, mais de seis milhões de propriedades rurais, mas metade da área rural pertence a apenas 1% dos proprietários e posseiros. Essa ínfima minoria é, em essência, patrimonialista, mais do que produtivista. É ela que mantém controle sobre significativos redutos eleitorais, e não os setores mais dinâmicos do agronegócio ligados à agroindústria e ao comércio internacional. Além disso, esse controle local favorece uma maior concentração de votos em candidatos do que ocorre nas regiões metropolitanas, onde há mais dispersão e abstenção.
A bancada ruralista foi muito fortalecida durante o governo Bolsonaro, seja através da destinação de recursos vultuosos às suas bases, com o chamado orçamento secreto, seja pelo controle assumido sobre vários órgãos públicos ‒ Incra, Ibama, ICMBio, Funai etc ‒ por meio da indicação de seus dirigentes nacionais e representantes regionais. Participa ativamente das iniciativas de desmonte das políticas e restrição de recursos destinados à área socioambiental. É responsável direta pelos sucessivos saltos nas taxas de desmatamento nos últimos anos, na Amazônia e nos demais biomas.
Contradições
O levantamento da Repórter Brasil fundamenta-se na compilação de votos e de posições assumidas pelos deputados em um grande número de questões, ao longo da atual legislatura. A agenda predatória da bancada ruralista é abusiva, vai além de assuntos ligados ao agro e inclui o armamentismo e o ataque aos direitos socioambientais em geral. Os seus projetos de lei mais recentes envolvem a grilagem de terras públicas, a legalização das invasões em terras indígenas, a destruição de florestas urbanas, a desregulamentação do uso e venda de agrotóxicos e o enfraquecimento do licenciamento ambiental.
São os efeitos dessa agenda predatória que estão agravando o isolamento do Brasil em âmbito global. Apesar da conjuntura favorável aos preços das commodities agrícolas, a política antiambiental do governo, fomentada pelos ruralistas, tornou-se o principal obstáculo à adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e à concretização do acordo comercial entre o Mercosul e a União Européia. Ou seja: enquanto se locupletam de criminosas facilidades nas regiões de fronteira, os ruralistas impõem limites para a exportação e nosso crescimento econômico.
Mas a agenda predatória tem efeitos muito mais perversos, ao contribuir para o agravamento das condições do clima, não só em relação ao aquecimento global, mas também no país. Secas e enchentes catastróficas têm ocorrido com crescente frequência, impactando populações urbanas e ribeirinhas, além da produção agropecuária e da geração de energia. A redução no volume de chuvas, impulsionadas pela Amazônia para as demais regiões do país, já impacta e constitui outro limitante, muito mais objetivo, para a agropecuária brasileira.
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Reunião entre a bancada ruralista e o presidente Jair Bolsonaro. (D-E) Deputado Alceu Moreira (MDB-RS), ministra da Agricultura Tereza Cristina e Bolsonaro | Marcos Corrêa / PR
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LDO abre caminho para enfraquecer licenciamento ambiental de obras do ‘orçamento secreto’
Lei de Diretrizes Orçamentárias aprovada no Congresso permite reservar recursos para empreendimentos sem licença e projeto básico. Pressões para acelerar autorizações vão aumentar, segundo parlamentares, especialistas e ambientalistas
Senador Marcos do Val, relator da LDO, durante votação da lei no plenário da Câmara | Geraldo Magela / Agência Senado
Texto atualizado às 19:53 de 13/7/2022.
Um dispositivo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), aprovada no Congresso nesta terça (12), pode abrir caminho para impor a realização de obras financiadas pelo polêmico “orçamento secreto”, sem controles e salvaguardas ambientais adequados e requisitos técnicos elementares, contrariando a legislação e orientações do Tribunal de Contas da União (TCU).
O parágrafo 3 do Artigo 71 da lei permite o empenho de recursos federais para obras sem licenciamento ambiental e projeto de engenharia básico, a partir das emendas de relator da LDO, identificadas pelos caracteres RP 9, centro do escândalo do “orçamento secreto” (leia mais abaixo). Emendas de parlamentares, de bancadas estaduais e das diversas comissões do Congresso terão a mesma prerrogativa. O empenho é a fase da execução orçamentária na qual o dinheiro é reservado para um determinado fim.
Ainda conforme a redação final da lei, não seria possível avançar nas etapas seguintes, de liquidação e pagamento dos recursos, sem licença e projeto básico. Segundo integrantes da oposição, ambientalistas e especialistas, no entanto, a norma vai aumentar as pressões políticas, sobretudo de governos locais e parlamentares, para a liberação do dinheiro, independente da avaliação de impactos socioambientais e das condicionantes previstas no licenciamento. Hoje, os órgãos ambientais podem até negá-lo, dependendo dos eventuais danos ambientais de um empreendimento, mas isso seria colocado em xeque.
Em geral, as emendas parlamentares são usadas para direcionar verbas públicas às bases eleitorais ou estados de origem dos membros do Congresso. Ao retirar exigências para o empenho, o dispositivo incluído na LDO busca facilitar e viabilizar compras e obras do interesse dos aliados do governo beneficiados pelo "orçamento secreto".
A licença ambiental e o projeto de engenharia são “essenciais à efetiva implementação dos investimentos” públicos, diz o TCU no Parecer Prévio sobre as Contas do Presidente de 2021. Empreendimentos sem ambos os requisitos "não se encontram tecnicamente preparados para sua implementação”, aponta o documento.
“O governo não vai poder deixar de mandar o recurso para a obra porque ela não tem licença”, explica o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP). “O Ministério do Desenvolvimento Regional, por exemplo, não vai poder colocar como uma exigência, para mandar dinheiro para a prefeitura ou o governo do estado, ter a licença. Mandam o dinheiro e terão de ir atrás da licença [depois]. Se não tiver licença, terão de devolver o dinheiro”, continua.
A reportagem do ISA entrou em contato com a assessoria do senador Marcos do Val (Podemos-ES), relator da LDO neste ano, mas ela respondeu que ele não atenderia o pedido de entrevista.
‘Jabuti’ e ‘orçamento secreto’
O dispositivo inserido na lei é considerado pelos ambientalistas um “jabuti”, item incluído numa proposição legislativa que não tem relação com seu tema. Ele foi criado em 2019, junto com o "orçamento secreto", mas passou despercebido até agora por parlamentares e organizações da sociedade civil que acompanham o dia a dia do Legislativo. A questão não foi discutida na votação de terça, ofuscada justamente pela controvérsia sobre a obrigatoriedade da execução das verbas das emendas RP 9, afinal excluída do texto final da lei.
As antigas modalidades de emendas permitem identificar o autor da proposta, além do órgão do governo responsável pelo gasto e o favorecido. No caso da emenda de relator, entretanto, os parlamentares envolvidos não são identificados nem precisam justificar ou dar satisfação sobre o destino dos recursos, decidido em negociações sem nenhuma publicidade. Não se sabe quais os critérios usados para empenhar o dinheiro. Daí a expressão “orçamento secreto”.
O objetivo original do mecanismo era dar autonomia ao relator da LDO para fazer ajustes na alocação das verbas. A partir do início de 2021, com a eleição de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG) para as presidências da Câmara e do Senado, respectivamente, porém, tornou-se instrumento para favorecer o Centrão e outros aliados do Planalto, em troca de votos favoráveis ao governo e da formação de uma base parlamentar coesa. De acordo com a oposição, Lira e Pacheco controlam o expediente, revelado pelo jornal O Estado de São Paulo, em maio do ano passado.
Em 2021, o esquema garantiu gastos efetivos de mais de R$ 10 bilhões. Alguns parlamentares chegam a movimentar centenas de milhões de reais. A oposição levou o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao TCU (saiba mais).
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Votação da LDO no plenário da Câmara, na terça, 12/7 | Geraldo Magela / Agência Senado
Fato consumado
“O pior é criar um fato consumado de recursos empenhados para os empreendimentos, com prioridade para execução e que não têm a devida licença ambiental”, avalia Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC).
Ela ressalta que, muitas vezes, o planejamento inicial de um empreendimento muda ao longo do licenciamento, gerando custos adicionais. “[O texto aprovado da LDO] cria uma pressão para que a licença seja praticamente obrigatória. O órgão licenciador não terá espaço para dizer ‘não’ e nem para exigir condicionantes que mudem o projeto em si. Isso é típico do licenciamento”, complementa.
Araújo lembra que, em muitos casos, o processo de concessão da licença dura mais de um ano. Daí ainda mais pressões para restringir ou eliminar esses ajustes e acelerar a autorização da obra. Ela informa que cerca de 90% das licenças são concedidas por órgãos estaduais e municipais, ainda mais vulneráveis à interferência política do que o Ibama. “O licenciamento é incompatível com o ciclo orçamentário de um ano, mesmo no caso de obras pequenas”, diz.
A especialista concorda que o dispositivo incluído na LDO é um “jabuti” porque, a princípio, a norma não pode tratar do tema do licenciamento. “Falamos da Lei de Diretrizes Orçamentárias. Isso é diretriz orçamentária?”, questiona.
“É bem sintomático e preocupante que estejam colocando isso na LDO na tentativa de dar um respaldo legal, passando por cima de outras legislações”, comenta Alessandra Cardoso, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
“Por que emendas de relator ou de bancada têm de flexibilizar um requisito legal que é básico? Você não pode empenhar, especialmente no caso de recursos maiores, sem sequer ter um projeto básico aprovado ou sem ter a garantia de que a obra pode vir a ser licenciada”, argumenta.
Cardoso avalia que a medida faz parte da relação de “vale-tudo” estabelecida entre governo e o Centrão, com objetivo de liberar verbas para parlamentares “a qualquer custo”. E acrescenta que a grande quantidade de recursos das emendas RP 9 convertidos em “restos a pagar” acaba gerando pressão politica futura sobre eles.
“Pode ser que se esteja abrindo precedente para licenciar obras que, inclusive, interferem em territórios indígenas, em áreas protegidas. É o licenciamento quem tem de dizer se aquela obra, aquele processo tem algum impacto que fere a legislação [nesses casos]”, salienta.
Em 2021, o gasto total do orçamento ambiental federal ficou em cerca de R$ 2,5 bilhões, incluindo o ministério, Ibama e outros órgãos, como Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Jardim Botânico, segundo análise do Inesc. Cardoso chama a atenção para o fato de que esse montante corresponde a apenas um quarto do valor executado pelo “orçamento secreto” no mesmo ano.
Ela aponta que o "jabuti" inserido na LDO faz parte das ações articuladas por políticos e empresários para enfraquecer o licenciamento, a exemplo da aprovação da Lei de Liberdade Econômica, em 2019.
Pressões sobre o licenciamento
Desde a eleição de Lira na Câmara e da formação da base bolsonarista, aumentaram as pressões pela mudança na legislação do licenciamento, um dos principais instrumentos de proteção ambiental do país. Em maio do ano passado, a Câmara aprovou o projeto de Lei Geral do Licenciamento Ambiental, praticamente sem debate com parlamentares e a sociedade. Em seguida, ele seguiu para o Senado.
A proposta enfraquece ou, em alguns casos, até extingue instrumentos de avaliação, prevenção e controle de impactos socioambientais de obras e atividades econômicas. Trata-se do texto mais radical já elaborado no Congresso e que, na prática, torna exceção o licenciamento.
“Desprezar o licenciamento ambiental está atrapalhando o ingresso do país na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Comitê de Políticas Ambientais da instituição criticou as mudanças previstas no PL do licenciamento porque acabam com a obrigatoriedade do instrumento e cobrou das autoridades compromisso com as boas práticas da OCDE no Brasil”, alerta a assessora do ISA Adriana Ramos.
A relatora do Projeto de Lei Geral do Licenciamento, numerado como 2.159/2021 no Senado, na Comissão de Meio Ambiente da casa, Kátia Abreu (PP-TO), chegou a anunciar que o colocaria em votação, mas o texto foi um dos alvos da mobilização de artistas, ambientalistas e ex-ministros do Meio Ambiente, em março, contra a agenda antiambiental do Congresso.
Diante das pressões, Rodrigo Pacheco prometeu que a tramitação das propostas sobre temas ambientais não seria acelerada no Senado. Até hoje, o PL 2.159/2021 não foi analisado. Apesar disso, seguem as tentativas de aprovar outros projetos que vão na mesma direção.
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Comissão do Senado aprova projeto que ameaça abastecimento de água
Para sociedade civil e pesquisadores, proposta não resolve efeitos da estiagem e vai agravar crise hídrica e energética. PL vai direto para Câmara, sem passar no plenário, se não houver recurso em contrário
Senador Esperidião Amin, relator do PL 1.282, apresentou parecer remotamente | Pedro França / Agência Senado
Texto atualizado em 9/7/2022, às 9:00.
A Comissão de Agricultura do Senado (CRA) aprovou, na manhã desta quinta (7), um projeto que permite suprimir matas de beira de rio para facilitar a construção de barragens, reservatórios, infraestruturas para irrigação e abastecimento de rebanhos.
De autoria do senador ruralista Luis Carlos Heinze (PP-RS), o Projeto de Lei (PL) 1.282/2019 altera o Código Florestal para classificar essas obras como de “utilidade pública e interesse social”, o que reduzirá as restrições ao desmatamento das Áreas de Preservação Permanente (APPs) nas propriedades rurais (saiba mais no quadro ao final da notícia).
A perda de vegetação nas APPs e a construção indiscriminada de represas colocam em risco outros usos da água, como o abastecimento humano e a geração hidroelétrica. O desmatamento nessas áreas provoca erosão e o assoreamento dos rios, o que pode agravar enchentes e inundações. Para pesquisadores e organizações da sociedade civil, a conversão da proposta em lei vai acirrar a disputa por fontes de água e agravar as crises hídrica e energética que o país vem sofrendo.
O projeto foi aprovado por 8 votos a 1. Apenas Eliziane Gama (Cidadania-MA) foi contra. Os dois requerimentos para realização de audiências públicas apresentados pela oposição, atendendo ao pedido de cientistas e ambientalistas para aprofundar a discussão do tema, foram rejeitados. Na véspera, em conversa com representantes de organizações não governamentais, o relator, Esperidião Amin (PP-SC), sinalizou que poderia aceitar a solicitação, mas não foi o que fez.
Votaram a favor da proposta Heinze, Amin, Kátia Abreu (PP-TO), Luiz Carlos do Carmo (PSC-GO), Roberto Rocha (PTB-MA), Wellington Fagundes (PL-MT) e Fábio Garcia (União Brasil-MT). Nenhum outro parlamentar participou da sessão, além do presidente da comissão, Acir Gurgacz (PDT-RO).
Agora, o PL 1.282 segue direto para a Câmara, a não ser que um recurso seja apresentado para que vá ao plenário do Senado. São necessárias as assinaturas de nove parlamentares para viabilizá-lo. Eliziane Gama deverá apresentar o pedido e, de acordo com sua assessoria, já há subscrições suficientes.
Efeitos da estiagem
Amin justificou que o projeto pretende atenuar os efeitos das estiagens para os produtores rurais e que não teria impacto na geração hidrelétrica, embora seus efeitos possam afetar a disponibilidade de água em geral no país.
“Reincidentemente, a estiagem provoca prejuízos, aflições e desequilíbrios sociais”, afirmou. “Este projeto conseguiu chegar ao razoável equilíbrio entre a preocupação ambiental, que eu tenho também, e a redução da insegurança hídrica em pequenas propriedades”, defendeu.
O senador reconheceu que os períodos de chuva estão cada vez mais irregulares em seu estado, mas não mencionou o alerta recorrente dos cientistas de que fenômenos semelhantes, consequência das mudanças climáticas, estão sendo causados justamente pelo desmatamento, entre outras causas.
No novo relatório apresentado hoje, Amin ainda incluiu a aquicultura como uma das atividades que serão facilitadas pelo projeto, o que poderá trazer mais impactos às APPs e aos mananciais de água.
“Uma lei desse porte, autorizando represamento indiscriminado de rios para irrigação de cultivos de grãos e abastecimento de rebanhos bovinos, seria como furar a caixa d'água do Brasil. Poderia gerar inúmeros conflitos judiciais entre entes da federação, ameaçar o pacto federativo e violar funções dos órgãos de controle", critica Kenzo Jucá, assessor legislativo do ISA.
“O agronegócio usa cerca de 80% do total da água consumida no país, segundo dados oficiais. Esse índice seria ampliado, caso o projeto vire lei. Os 20% restantes do consumo, em média, são para abastecimento urbano e indústria. Vai faltar água para alguém. É obvio”, completa.
No novo parecer apreentado nesta quinta, Amin acrescentou, como condições para autorizar a intervenção nas APPs, a inclusão do imóvel no Cadastro Ambiental Ruaral (CAR), a exigência de licenciamento estadual e da outorga de uso da água, além da conformidade a normas dos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente (Consemas) e planos de bacia. Jucá avalia, porém, que as salvaguardas não garantem a segurança hídrica para os barramentos.
O PL é mais uma das “boiadas” antiambientais que tiveram tramitação acelerada por decisão do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O termo “boiada” refere-se à expressão usada pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, numa reunião ministerial em maio de 2020, para orientar o governo a aproveitar que a atenção da mídia estava na pandemia para enfraquecer as normas ambientais no país.
Atendendo a um requerimento da oposição, Pacheco decidiu que o projeto passaria nas comissões de Meio Ambiente e Agricultura. Dias depois, mudou de ideia e remeteu-o apenas ao segundo colegiado, dominado pela bancada ruralista. É o presidente da casa que decide em que instâncias a proposta será apreciada.
A medida vai contra a promessa feita pelo senador a artistas e nove ex-ministros do Meio Ambiente, em março, depois da mobilização do Ato pela Terra, de que projetos com retrocessos ambientais seriam debatidos na “cadência devida” nas “comissões permanentes e temáticas”.
“A proposta, distribuída apenas para a CRA de forma terminativa, deveria necessariamente passar pelo crivo da Comissão de Meio Ambiente, pois pretende alterar o Código Florestal, notadamente com impactos sobre um de seus pilares, as APPs, resguardadas pela Constituição Federal”, argumenta Eliziane Gama.
A aprovação do PL 1.282 na CRA faz parte da corrida de ruralistas e governo para fazer avançar proposições que reduzem controles e restrições ambientais diante das eleições de outubro, do término da legislatura e do possível fim da gestão Bolsonaro. Em ano eleitoral, o tempo de trabalho legislativo é reduzido porque os parlamentares mergulham nas campanhas. O Congresso fica vazio, do recesso, que deve começar no fim da semana que vem, até o fim das eleições. Assim, há pressa para aprovar propostas que possam ser apresentadas como “trunfo” aos eleitores.
No final de 2021, governo e ruralistas já haviam conseguido aprovar a Lei 14.285, que transferiu aos municípios a competência para definir o tamanho das APPs às margens de cursos d’água nas zonas urbanas, permitindo dispensar as diretrizes do Código Florestal e até eliminar essa proteção.
O que é o Código Florestal?
A Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651/2012)
O antigo Código Florestal de 1965 foi reformado depois de mais de 10 anos de debates e pressões para sua alteração. Ele obrigava o reflorestamento integral das Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais (RLs) desmatadas ilegalmente (saiba mais abaixo). A nova lei isenta parte da recuperação dessas “áreas consolidadas” (desmatadas e em uso agropecuário) até 2008, enquanto as áreas conservadas até aí devem ser mantidas assim, conforme os parâmetros da antiga legislação. No caso das APPs, ela determinava metragens específicas que deveriam ser mantidas em todos os casos. A nova legislação prevê a manutenção ou recomposição de faixas significativamente reduzidas em relação às APPs desmatadas. Em relação à RL, o novo Código apresenta duas diferenças significativas: a primeira é que o cálculo dessa área deve incorporar as APPs; a segunda é que os imóveis menores que quatro módulos fiscais não terão obrigação de recompor os desmatamentos realizados até 2008.
Área de Preservação Permanente (APP)
De acordo com a lei, é a área cuja vegetação nativa deve ser protegida às margens de nascentes e outros corpos de água, em topos de morros, encostas e outras áreas sensíveis. Elas têm a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade e riqueza do solo, garantir a diversidade de fauna e flora e assegurar o bem-estar das populações humanas. São fundamentais para a manutenção e a qualidade dos mananciais de água, prevenir e atenuar a erosão, o assoreamento, inundações, enxurradas e deslizamentos de terra.
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Represa e reservatórios construídos em APP em propriedade rural de Mato Grosso | Tom Koene
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Remanescentes desumanos
O sócio fundador do ISA Márcio Santilli analisa o quadro de violência na Amazônia à luz do desgoverno do desgoverno de Bolsonaro e de seu discurso vazio sobre a região. Artigo publicado originalmente no portal da Mídia Ninja, em 23/06/2022
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
A última semana foi fortemente marcada pela catártica dor causada pela confirmação do assassinato de Bruno Pereira e de Dom Phillips, nas proximidades da Terra Indígena Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas. Três dos autores do crime estão presos, um deles confessou e outro se entregou à polícia. Fala-se de mandantes ligados ao narcotráfico e há responsabilidades políticas a serem cobradas. A Polícia Federal vacila em aprofundar as investigações, que o presidente Bolsonaro, em plena campanha reeleitoral, quer encerrar.
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| Marcello Casal / Agência Brasil
Entre abjetas aberrações proferidas por Bolsonaro, tentando responsabilizar as vítimas pelo próprio assassinato, coube ao ministro da Justiça, Anderson Torres, informar, oficialmente, sobre a localização dos corpos, chamados por ele de “remanescentes humanos”. O malabarismo verbal ministerial deveu-se à circunstância de que Bruno e Dom, depois de mortos, tiveram os seus corpos esquartejados. A extrema brutalidade do crime inspirou a licença poética do ministro.
O que remanesce dessa história cheira muito mal para Torres, Bolsonaro e ideólogos das Forças Armadas, que recorrem à defesa retórica da soberania nacional para atacar os críticos às políticas do governo para a Amazônia, os povos indígenas, os direitos humanos, as mudanças climáticas, etc. O mundo inteiro assistiu um filme de horror em tempo real, num território sem lei, num país desgovernado, com enredo determinado pelo crime organizado.
Defesa de quem?
Durante o período democrático recente, o Brasil fez investimentos consideráveis para aumentar o controle militar sobre as fronteiras. Várias unidades do Exército foram transferidas de outras regiões para a Amazônia e um colar de batalhões foi instalado ao longo da fronteira norte. O Projeto Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), com a instalação de potentes radares em pontos estratégicos, deveria permitir o controle do espaço aéreo regional. A Marinha também teve a sua estrutura reforçada em algumas áreas, inclusive no Alto Solimões.
O artigo 17-A da Lei Complementar nº 97/1999 assim dispõe sobre o exercício o poder de polícia na da faixa de 150 km ao longo das fronteiras nacionais: “Cabe ao Exército Brasileiro, além de outras ações pertinentes, […]: IV – atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, […]”. São atribuições afetas a vários dos casos recentes de violência ocorridos em Rondônia, Roraima e, também, no Vale do Javari.
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Coletiva de imprensa com órgãos que trabalham nas investigações sobre as mortes de Dom Phillips e Bruno Pereira. Ao centro, o superintendente da PF no Amazonas, Eduardo Alexandre Fontes | Reprodução Youtube
Por isso causou espanto a nota emitida pelo Comando Militar da Amazônia, logo após o desaparecimento do Bruno e do Dom, dizendo que ainda aguardava “ordens superiores” para reagir ao fato. Pareceu uma forma de dizer que havia alguma ordem para não agir. É a Polícia Federal quem lidera as investigações. Não há inteligência militar suficiente para isso.
A postura do Ministério da Defesa tem gerado críticas e suspeitas de desvio de função. Enquanto se deixa usar em movimentos estranhos que questionam o sistema eleitoral, vai dando sucessivas demonstrações de leniência diante da atuação do narcotráfico, do garimpo predatório e de outras empresas criminosas na Amazônia. O Alto Comando parece não perceber, ou não se importar, com o desgaste que essa situação gera junto aos melhor informados.
Resistência à mudança
O remanescente mais desumano é o próprio Bolsonaro. Ele consegue desumanizar quase um terço da população. Mas, para isso, cristaliza a sua rejeição pelos outros dois terços. Da sua boçalidade, o povo brasileiro poderá se livrar nas eleições de outubro. Esse passo será fundamental para impedir que o país se afunde de vez, multiplicando remanescentes humanos.
Este será apenas o primeiro passo. A violência é resiliente. O crime organizado vai remanescer e tentar manter a soberania conquistada sobre grande parte da Amazônia durante o governo Bolsonaro. O crime está armado e capitalizado. Para reverter essa situação, será preciso estratégia, inteligência e perseverança para cortar as suas conexões internas e internacionais. Enquanto isso, a violência poderá se intensificar ainda mais no curto prazo.
Sob novo governo, com comandos militares renovados, haverá oportunidade para rever a atual estrutura de defesa, que tem sido lenta e pouco efetiva em evitar, ou reagir, aos ilícitos amazônicos. Mas a experiência dos anos recentes demonstra que remanesce, nas Forças Armadas, uma cultura política corporativa completamente desatada dos desafios civilizatórios deste século.
Não é a existência da floresta e a presença dos povos indígenas que abalam a soberania brasileira sobre a Amazônia. Não é crível que governos de países vizinhos ou outros se atrevam a ameaçar nossas fronteiras. O abalo vem da demonstração da incapacidade do país em gerir a região de forma racional, do avanço descontrolado do desmatamento e da mineração predatória, da grilagem de terras públicas e da ação do crime organizado. Além de lesar o país, a predação da Amazônia afeta objetivamente o mundo todo.
O resgate da soberania nacional na Amazônia não precisa de retórica vazia, mas depende da demonstração da capacidade efetiva do país de combater os ilícitos e de privilegiar o desenvolvimento sustentável em detrimento da predação dos recursos naturais. Depende do protagonismo dos povos da floresta, ameaçados e encurralados no atual ciclo de violência. E se completa com o justo reconhecimento internacional.
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