Edinho Batista, coordenador do Conselho Indígena de Roraima, alertou para os graves problemas gerados pela forte estiagem no Estado
Roraima, o Estado mais ao norte do Brasil, bateu recorde histórico de focos de calor em fevereiro, com 2057 registros. No mesmo mês, o Rio Branco, seu principal abastecedor de água potável, chegou ao nível negativo de -0,15m.
Enquanto os não indígenas seguem a rotina na capital Boa Vista - coberta por fumaça desde meados de fevereiro - os Yanomami, Macuxi, Wapichana e povos de outras etnias vêem suas casas e roças serem destruídas por incêndios e, em quatro municípios, comunidades indígenas têm à disposição para beber água que mais parece lama.
Para a Defesa Civil, a situação deve se estender por cerca de mais 60 dias, quando há a previsão do inverno começar no estado. Durante os próximos dois meses, a densidade de fumaça deve aumentar, assim como a quantidade de focos de calor e incêndios, que na avaliação do Corpo de Bombeiros são causados em 100% dos casos pela ação humana.
“A certeza que temos é que Roraima está queimando, Roraima está pegando fogo”, diz Edinho Batista, coordenador do Conselho Indígena de Roraima, sobre a situação do Estado que enfrenta uma severa estiagem intensificada pelo fenômeno El Niño, conforme relatório da Defesa Civil.
“Sabemos que 90% da população depende da água do Rio Branco e sabemos que essas pessoas precisam olhar para isso como uma consequência dos impactos da soja, do garimpo e grandes empreendimentos. Isso tem afetado a todos nós. Precisamos acordar, porque se continuar com falta de água, fumaça e incêndios, não é só o indígena que vai morrer, vai morrer todo mundo”, ponderou Batista.
Conforme monitoramento da Companhia de Águas e Esgotos de Roraima (CAER), o Rio Branco começou fevereiro com o nível de 0,20m e às 15h do dia 15 atingiu o nível negativo pela primeira vez no ano. Ao fim do mês, o nível estava em -0,15m.
Quando Edinho foi entrevistado, em 27 de fevereiro, relatou que cerca de 50 mil indígenas que vivem em comunidades estavam sem água potável porque 50 poços artesianos já haviam secado. No entanto, ele deixou o alerta de que até, a publicação desta reportagem, o número aumentaria. Para estas pessoas terem acesso a água é preciso caminhar 5km e até escolas indígenas ficaram desabastecidas.
“Não queremos revoltar as pessoas, mas sensibilizar sobre qualidade de vida que não se dá só no mundo material, mas também no espiritual. É preciso entender que a água, as plantas, os animais e as pessoas são importantes e a vida não pode ser colocada abaixo do mercado. O capitalismo influencia as pessoas a se contentarem com que recebem e não com o que têm e ficará para o futuro”, refletiu o coordenador do CIR.
Em quatro municípios, há comunidades indígenas bebendo água sem tratamento que pode ser comparada à lama, conforme o Diretor Executivo de Proteção e Defesa Civil, Coronel Cleudiomar Ferreira. Ele afirma que existe um esforço das prefeituras na distribuição de água, mas que não há garantia de que haja tratamento adequado, apenas que é menos prejudicial que a água suja de pequenos riachos.
“Nos municípios de Amajari, Pacaraima, Uiramutã e Normandia as comunidades indígenas estão bebendo lama, uma água de riacho sem tratamento e por não saberem da gravidade estão fazendo isso há muito tempo e durante a estiagem isso se agrava”, declarou Cleudiomar.
As queimadas e escassez de água atingem diversas regiões como Raposa Serra do Sol, Serra da Lua e São Marcos. Além de também ter chegado a Terra Indígena Yanomami, onde há relatos de crianças e idosos prejudicados pela fumaça, além de casas e roças destruídas por incêndios e falta de água potável.
Rotina na fumaça
A contadora Márcia Iully sai da casa para o trabalho, em uma rota de 9,6km, e diz que tem a impressão de que Boa Vista está sob uma neblina. Não fossem pelos sintomas de rápido cansaço e dificuldade para respirar, ela poderia ser enganada pela fumaça.
Como trabalha em uma sala fechada com ar-condicionado, Márcia quase chega a esquecer do intenso calor, da fumaça e da fuligem por algumas horas, mas basta cruzar a porta de saída do trabalho e é lembrada da real situação de Boa Vista.
Na primeira noite em que percebeu o excesso de fumaça, em 20 de fevereiro, pensou que a casa dela havia queimado. “Eu cheguei do trabalho, desci do carro e pensei: ‘minha casa pegou fogo’. Eu saí correndo e dei voltas pelo terreno para tentar entender de onde o fogo vinha, até que percebi que não era minha casa. Depois soube que houve alguns incêndios e que há queimadas no estado”, relatou.
Veja os registros de @vistaboavistarr:
Todos os 51 bairros da capital de Roraima estão tomados por fumaça, fuligem e cheiro de queimado há mais de uma semana. Boa Vista também é o 9º município com mais focos de calor em todo o Brasil neste ano. Outras oito cidades do estado integram o top 10, conforme o monitoramento do Programa Queimadas do do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
Desde que 2024 começou, Roraima já registrou 2661 focos de calor, liderando o ranking nacional com quase o dobro de Mato Grosso do Sul, que ocupa a segunda posição com 1710 focos de calor. Do total de focos deste ano em Roraima, 2057 foram apenas em fevereiro, chegando a um recorde histórico desde que o monitoramento do Inpe começou em 1998. O maior número para o mês pertencia ao ano de 2007, quando houve 1.347 registros.
“A diferença do foco de calor para o incêndio é que o foco é o momento que o satélite passa e identifica a alta temperatura, pode ser só algo que tenha passado ou uma chama que tocou e apagou imediatamente, mas podemos dizer que 90% é fogo”, explica o Coronel Cleudiomar.
Ainda conforme Cleudiomar, todos os incêndios no Estado são resultados de ações humanas – seja com ou sem intenção. Ele exemplifica com caminhões que soltam faíscas pelo escapamento (involuntário) e limpezas de roças e terrenos (voluntários), sendo este último o que representa o maior número de casos.
“Não existe incêndio espontâneo, é muito difícil. A causa disso que estamos vivendo é 100% de ação humana. Também está em investigação os incêndios criminosos de pessoas que colocam fogo propositalmente e fogem do cenário, mas o mais comum são queimas de roças por agricultores e em nível menor em comunidades indígenas”, afirma.
Para lidar com a situação, o governo de Roraima decretou situação de emergência no dia 24 de fevereiro em nove dos 14 municípios do Estado após recomendação da Defesa Civil em um parecer técnico que afirma que Roraima enfrenta escassez de água, prejuízos à agricultura e pecuária, incêndios florestais e problemas de saúde como impactos negativos da estiagem. O que caracteriza uma situação de desastre nível II.
Apesar do alto número de focos de calor, Boa Vista não entrou na lista de emergência do governo estadual. Os municípios em situação de emergência decretada, que agora possuem dispensa de licitação para compras e contratações relacionadas a situação climática do estado, são:
- Amajari;
- Alto Alegre;
- Cantá;
- Caracaraí;
- Iracema;
- Mucajaí;
- Pacaraima;
- Normandia;
- Uiramutã.
Conforme a Defesa Civil, a estiagem está atrelada ao El Niño, fenômeno associado ao aquecimento das águas do Oceano Pacífico. Ainda conforme a Defesa, uma longa faixa de águas quentes pôde ser observada no Oceano Pacífico Equatorial a partir de junho de 2023.
A Defesa diz ainda que os efeitos foram intensificados a partir de setembro “culminado na configuração de uma forte estiagem, o qual tem desencadeado uma série de repercussões adversas tanto para as comunidades, quanto para os ecossistemas”.
Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o sul de Roraima pode ter chuvas de até 50mm acompanhadas de raios, rajadas de ventos e trovoadas de 26 de fevereiro até 04 de março. Com as chuvas no Amazonas, o Rio Uraricoera foi beneficiado e a Defesa Civil espera que parte desta água eleve o nível do Rio Branco.
Caminho da fumaça
É do Nordeste para o Sudoeste por onde os ventos sopram predominantemente em Roraima. Dessa forma, o que queima em Amajari e ao Norte de Alto Alegre, joga fumaça para dentro da Terra Indígena Yanomami.
Os incêndios em Mucajaí, cidade também coberta por fumaça segundo a Defesa Civil, sopram consequências para a calha do Rio Negro, incluindo a região do Demini, que é a casa do xamã e liderança Davi Kopenawa na Terra Indígena Yanomami.
Já Boa Vista está coberta principalmente por fumaça produzida na própria capital, mas também recebe dos municípios em seu entorno como Cantá, Bonfim e Normandia – sendo este último com uma influência muito fraca.
“Não tem o que fazer, só aguardar. A fumaça persiste até três ou quatro dias após o combate aos incêndios dos Bombeiros. A incidência de fumaça vai crescer até que o inverno comece”, disse o Coronel Cleudiomar acrescentando que o inverno deve começar em cerca de 60 dias.
Fogo destrói casas e roças na Terra Yanomami
Áreas de florestas vitais da Terra Indígena Yanomami têm sido atingidas por incêndios que estão destruindo casas comunitárias e roçados dos indígenas. O Sistema de Monitoramento da Hutukara Associação Yanomami (HAY) recebeu dois relatos das regiões Missão Catrimani e Apiaú em fevereiro.
Moradores de Apiaú relataram que o fogo começou em uma região externa da Terra Indígena Yanomami, em locais onde existem fazendas para criação de gado. Ao adentrar no território indígena, o fogo atingiu áreas de floresta vitais para a economia das comunidades.
Já na região da Missão Catrimani, os moradores relatam que a casa comunitária de Manopi e Bacabal foi destruída após uma queima de roças, iniciada em 19 de fevereiro, sair do controle. Redes e outros objetos pessoais também foram destruídos após as lideranças tentarem apagar o fogo sem sucesso. As lideranças relatam ainda que quase todas as 22 comunidades da região estão com seus roçados queimados.
Em ambas as regiões, houve queixa de problemas respiratórios causados pela fumaça, principalmente em crianças e idosos. A severa estiagem em Roraima também é percebida pelos Yanomami, que relatam falta de acesso à água potável após rebaixamento do nível do Rio de Apiaú.
Na região de Waikas, onde vive o povo Ye’kwana, uma roça de cacau, que seria usada na produção do chocolate yanomami deste ano, também foi atingida e destruída por um incêndio.
Para controlar a situação e apoiar as comunidades, a Hutukara pediu em ofício enviado à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que:
- - Sejam acionadas as brigadas de incêndio com urgência;
- - Que o Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana (DSEI-YY) recupere os sistemas de abastecimento de água das comunidades Serrinha, Hatyanai e Natureza em Apiaú;
- - Um planejamento de oficinas sobre boas práticas de manejo de fogo para as comunidades;
- - Que o DSEI-YY redobre as ações de vigilância nutricional e de prevenção e tratamento de doenças respiratórias.
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Ajude as comunidades indígenas de Roraima
Casas também foram destruídas por incêndios que atingiram a mata da Terra Indígena São Marcos, em Pacaraima. Em um vídeo gravado pelos moradores e divulgado pelo Conselho Indígena de Roraima, uma família deixa a residência enquanto é alertada para salvar apenas os próprios documentos.
“Hoje, em Normandia e Pacaraima, temos bastante comunidades que estão sendo afetadas pelo fogo. Deixamos uma orientação para a população em geral: antes de fazer algum tipo de queimada, seja de roçado ou lixo de residência, ou até se for jogar um cigarro em beira de estrada, para que tenha a consciência de que não fazer isso durante este período, pois sabemos que está bastante seco e você pode estar contribuindo para ter mais focos de incêndios”, orientou O coordenador de campo das Brigadas Comunitárias, Jabson Nagelo Macuxi.
Para apoiar as comunidades afetadas, o CIR mobiliza esforços e pede doações que serão direcionadas a ajudar as famílias prejudicadas pelos incêndios. Saiba como doar AQUI.
Através do projeto de Produção de sementes nativas e restauração ecológica em Roraima, o Instituto Socioambiental (ISA) apoia comunidades indígenas da Região Serra da Lua no combate a incêndios florestais e à seca com doações de alimentação, combustível e ferramentas (bombas costais, terçados, luvas, óculos de proteção, perneiras entre outros).
Com três brigadas comunitárias geridas pelo CIR, o Instituto apoia desde 2019 com materiais de consumo, equipamentos, apoios locais e fardamento. O trabalho envolve 36 brigadistas de 8 terras indígenas em Roraima. Eles são formados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovavéis (Ibama) em parceria com o CIR.
O ISA também apoia as organizações da Terra Indígena Yanomami com o monitoramento dos focos de calor e a qualificação de informações territoriais sobre os impactos dos incêndios nas comunidades, além de realizar doações de alimentos e materiais diversos (redes, roupas, panelas, ferramentas agrícolas, etc.) para as famílias afetadas nas regiões do Médio Catrimani e Apiaú.