Publicação construída coletivamente traz estratégias de cuidado e prevenção, promovendo diálogo e fortalecimento em um território de grande diversidade cultural

Mulheres indígenas do Rio Negro se reuniram na Casa do Saber da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) na noite do dia 11 de novembro para o lançamento do livreto Cuidados e prevenção no enfrentamento à violência contra mulheres no Rio Negro. Um material informativo construído a muitas mãos a partir de diálogos e reflexões sobre gênero e violências ocorridas entre as mulheres rionegrinas das diversas etnias da região.
A publicação está disponível no acervo do ISA para download gratuito e foi organizada pelo Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro (DMIRN) da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), em parceria com o Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA) e a Faculdade de Saúde Pública da USP.
A cerimônia de lançamento, realizada durante a programação do II Módulo de Formação de Promotoras Legais Populares Indígenas, foi marcada por uma apresentação de canto e dança tradicional das mulheres representantes da Coordenadoria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauaretê (Coidi), seguida de uma roda de conversa entre as participantes e representantes de instituições parceiras.


Promotoras Legais Populares Indígenas
Trata-se de um espaço de formação destinado às lideranças comunitárias indígenas e ensina conhecimentos teóricos e práticos sobre as leis e direitos das mulheres, a fim de promover diálogos que levem em consideração os contextos e especificidades locais, possibilitando que estas mulheres possam se tornar replicadoras desses conhecimentos em suas organizações e comunidades. O segundo módulo em São Gabriel da Cachoeira, promovido pelo DMIRN em parceria com o ISA e a Faculdade de Saúde Pública da USP, ocorreu de 11 a 13 de novembro.Em sua fala inicial, Cleocimara Reis Gomes, coordenadora do DMIRN, explicou que a elaboração da publicação e toda a sua escrita foi pensada para tornar acessível especialmente às mulheres de base que têm dificuldade com o português.
A região do Rio Negro abriga povos de 23 etnias e três língas cooficiais (baniwa, nheengatu e tukano). “A gente tentou facilitar também nas palavras para que a gente pudesse deixar que as pessoas entendam o que está dentro desse livro”, disse Cleocimara Gomes.

Dividido em três partes, o livreto faz um resgate das atividades colaborativas realizadas ao longo dos últimos cinco anos na região, trazendo uma caracterização das violências contra mulheres a nível local e um resumo das discussões e reflexões geradas a partir do I Módulo de Promotoras Legais Populares Indígenas, realizado no município em 2021.
Em um segundo momento, a publicação apresenta estratégias utilizadas pelas mulheres indígenas rionegrinas no enfrentamento às violências, em consonância com os aparelhos públicos disponíveis, em especial na sede do município de São Gabriel da Cachoeira, para denúncias dos casos e acolhimento às vítimas.
Elizângela da Silva Costa, Baré, liderança indígena com origem em Cué Cué Marabitanas, e doutoranda pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é uma das responsáveis pela escrita do livreto e reforçou, durante o lançamento, sobre a importância dos conhecimentos tradicionais no enfrentamento à violência doméstica, além do uso de uma linguagem acessível, trazendo as informações para o contexto vivenciado pelas mulheres e homens em suas comunidades.
“Esse livro foi escrito com um olhar do meu dia a dia. E, às vezes, a gente quer aprender mais leis, leis, leis, só que aquelas leis [ocidentais] não estão diariamente com a gente dentro do nosso território. O que está diariamente com a gente é as nossas plantas, é as nossas roças, é a margem dos nossos rios, eles que ajudam a gente a curar as nossas vivências do dia a dia”, refletiu Elizângela Baré. Segundo ela, os espaços de diálogos com as novas gerações precisam ser resgatados para que os ensinamentos sejam repassados e não se percam no tempo.
O uso das plantas para chás, banhos e outros feitios tradicionais com o intuito de “amansar o marido”, contra mau olhado e outras questões que afetam o bem-estar e as relações delas no âmbito da família e da comunidade, ressaltou, também precisam estar entre as estratégias de cuidado das mulheres indígenas no enfrentamento à violência, assim como sua sustentabilidade e autonomia por meio das artes, dos artesanatos e da agricultura como forma de geração de renda.

A última parte da publicação é dedicada a orientar a facilitação de rodas de conversa sobre as violências enfrentadas por mulheres indígenas do Rio Negro. Carla Dias, antropóloga do ISA e uma das escritoras e organizadoras da cartilha, destacou a relevância do trabalho coletivo registrado e promovido pelo livreto. Segundo ela, a iniciativa responde às demandas de lideranças femininas que reconhecem a importância de aprofundar o entendimento sobre as violências de gênero, mas enfrentam desafios para abordar o tema e dar início a ações como rodas de conversa voltadas para cuidados, direitos e enfrentamento à violência.
Segundo a antropóloga, o material também busca registrar e fortalecer estratégias de cuidado, prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres, além de incentivar o diálogo. O objetivo é assegurar que essas práticas sejam ampliadas e alcancem as comunidades de base, especialmente em um território tão extenso e diverso como o do Rio Negro.

“Que esse livro possa ser uma ferramenta de apoio para as lideranças rionegrinas, ampliando o alcance e a produção das estratégias de cuidados de vocês [mulheres]. De cuidados com vocês mesmas, de cuidados com as famílias. Estratégias que vocês têm ali à mão, para que combinadas às responsabilidades e políticas do Estado vocês possam viver bem”, salientou Carla Dias.
A importância do trabalho coletivo e dos diversos processos, parcerias e trabalhos realizados pelo Departamento de Mulheres também é salientado pela antropóloga Dulce Morais, do ISA, na elaboração do material.
“A condução de rodas de conversas, as pesquisas documentais realizadas em instituições do Estado, oficinas, formações e publicações foram fundamentais para a participação das mulheres indígenas, as trocas de conhecimentos e, finalmente, o desenvolvimento do livro”, disse ela, que também contribuiu com a escrita do livro.
Outro destaque da publicação são as ilustrações originais, criadas pela artista e graduanda do curso artes visuais na Unicamp Larissa Ye’padiho Mota Duarte, do povo Tukano.
Ela também ilustrou a cartilha Cuidados com o uso de bebidas alcoólicas na região do Rio Negro, lançada em fevereiro de 2024 e desenvolvida pelo ISA e Departamento de Adolescentes e Jovens Indígenas do Rio Negro (DAJIRN) da Foirn, em pareceira com o DMIRN.
Como liderança e ex-coordenadora do Departamento de Mulheres, ela conta que na época de elaboração dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) das Terras Indígenas do Rio Negro, percorreu o território e conheceu diversas mulheres e realidades. Os encontros com outras mulheres ao longo do caminho a inspiraram na hora de desenvolver o trabalho.
“Desenhar é também uma forma de escrever uma história, um sentimento, uma luta, uma resistência, um registro dos nossos conhecimentos tradicionais, artísticos e ancestrais. Eu tentei fazer todas vocês [mulheres] através do desenho”, afirmou Larissa Duarte.

Para Edneia Teles, do povo Arapaço, diretora da Secretaria Municipal de Juventude Esporte e Lazer (SEMJEL), a missão foi cumprida com sucesso. “Eu achei lindo, parecido com a gente. Fui logo buscar quem tinha feito. Pra mim, foi inédito isso, porque geralmente quem faz isso são os cariúas [não indígena/branco em nheengatu ]. Aí, quando a gente foi vendo, eu falei pra minha colega ‘isso aqui está lindo’”, relatou.
Ela ressaltou a linguagem acessível do livro e sua utilidade para o compartilhamento de informações. “Também vamos levar essa mensagem para outras mulheres que não têm esse conhecimento, compartilhar o que tem nesse livro através de fotos e das palavras colocadas nele”, finalizou.
O professor José Miguel Olivar da Faculdade de Saúde Pública, e Janete Alves Desana, vice-presidente da Foirn, completam o time de escrita e organização do material. O projeto gráfico e a diagramação são da designer e ilustradora Kath Xapi Puri.