Diante de correlação desfavorável, votação pode ser considerada vitória surpreendente do governo, que deve usá-la como trunfo em negociações internacionais
*Com informações da Agência Câmara e do Observatório do Clima (OC)
O plenário da Câmara aprovou, no início da noite desta terça (19), e agora vai à sanção presidencial, o projeto de lei que cria um mercado formal de créditos de carbono no Brasil (PL 182/2024).
Até certo ponto, o resultado pode ser considerado uma vitória surpreendente do governo, em função da correlação de forças desfavorável no Congresso, em especial na agenda ambiental. Defendido pelo Planalto, o texto vindo do Senado foi integralmente aprovado (com exceção de um único ponto) por ampla maioria ‒ 336 votos contra 38. Ainda mais radical que a média do Legislativo, uma parte da extrema direita acabou ficando isolada na votação.
Apesar disso, até o fim da tarde de ontem, a informação era de que Centrão e oposição, ruralistas à frente, seguiam defendendo a redação original da Câmara, considerada pior também pela sociedade civil. Os oposicionistas já haviam conseguido adiar a votação do projeto por duas vezes no Senado, entre outras razões para impedir o governo de apresentar a nova lei como um trunfo na COP-29, a conferência internacional de mudanças climáticas da ONU que acontece neste momento em Baku, no Azerbaijão.
O receio era de que o relator, deputado Aliel Machado (PV-PR), cedesse às pressões e voltasse atrás no acordo feito entre governo e as cúpulas das duas casas legislativas para manter a proposta aprovada pelos senadores (saiba mais). Não foi o que aconteceu.
“[É] um golaço, que coloca o Brasil de vez no pódio no enfrentamento das mudanças climáticas e na atração de recursos para manter a floresta de pé, para a sustentabilidade”, comemorou o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, num post nas redes sociais. Ele disse que será feito um “ato muito forte” para a sanção da nova legislação pelo presidente Lula.
Machado afirmou que, com o estabelecimento de restrições ambientais a produtos importados, sobretudo pela União Europeia (UE), a nova lei vai evitar prejuízos aos exportadores brasileiros. “É muito mais barato precificar as emissões no Brasil do que esperar que isso aconteça nos países importadores”, disse.
O projeto cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), que será supervisionado pelo governo. A proposta prevê o estabelecimento de limites de emissão para os diferentes setores econômicos, para obrigar as empresas a pagarem pela poluição que ficar acima dos níveis permitidos, comprando créditos de carbono (leia mais abaixo e no quadro ao final da reportagem).
Se tudo der certo, a ideia é que a economia seja descarbonizada gradualmente, ou seja, que as empresas substituam tecnologias poluidoras, em especial que usam combustíveis fósseis, por outras mais limpas, que utilizam biocombustíveis, energia solar e eólica etc. O objetivo final é ajudar o país a cumprir sua meta de redução de emissões acordada no tratado internacional de mudanças climáticas.
O que são os créditos de carbono?
A comercialização de créditos de carbono permite que empresas ou pessoas compensem as emissões de gases de efeito estufa, resultantes de empreendimentos e atividades econômicas, pela aquisição de créditos gerados por projetos de redução dessas emissões ou da captura de carbono da atmosfera. Uma iniciativa para restringir os poluentes de uma indústria, o reflorestamento ou a conservação de uma área com vegetação nativa são exemplos desse tipo de projeto. Um crédito de carbono corresponde a uma tonelada métrica de gases de efeito estufa, como o CO2.
Há dois tipos de mercado de carbono: o voluntário e o regulado. O primeiro não depende de lei e comercializa créditos certificados para quem quer compensar emissões voluntariamente. Já o segundo funciona com base numa legislação nacional que estabelece limites de emissões para setores econômicos, permitindo a compra e venda de créditos entre quem polui e precisa compensar suas emissões e quem consegue capturar carbono, evitar ou reduzir emissões. O objetivo final do mercado regulado é apoiar um país a reduzir suas emissões.
A principal fonte de emissões do Brasil é o desmatamento, com 46% do total, enquanto as outras atividades agropecuárias respondem por 28%, de acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg) do Observatório do Clima (OC). Portanto, a produção rural representa cerca de 3/4 das emissões nacionais. Por outro lado, a grande extensão da floresta amazônica no país torna-o um grande candidato a iniciativas e políticas de geração de créditos por meio da conservação ambiental.
Comunidades indígenas e ruralistas
Especialistas e organizações da sociedade civil que acompanham o assunto avaliam que o PL foi aperfeiçoado ao longo da tramitação, embora o texto final esteja muito longe do ideal. De acordo com eles, os dispositivos sobre os direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais estão entre os que foram aprimorados (saiba mais no quadro ao final da reportagem).
“É melhor termos uma lei sobre o assunto do que não termos. Ela é um ganho político”, afirma o sócio fundador e presidente do Instituto Socioambiental (ISA). “Apesar de todos os problemas que a norma possa ter, a sua aprovação significa um reconhecimento da crise climática, ainda que por um viés economicista, e uma derrota do negacionismo no Congresso, onde ele é muito forte”, continua.
Santilli receia, no entanto, que a nova legislação não consiga evitar as pressões indevidas de empresas sobre as populações indígenas e tradicionais e os órgãos oficiais responsáveis por sua proteção. Daí a necessidade dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil mobilizarem-se para informar e apoiar essas comunidades na defesa de seus direitos. Muitas dessas populações tem sido vítimas de projetos duvidosos ou fraudulentos de créditos de carbono florestal.
A despeito da vitória do governo, a bancada ruralista mostrou sua força na agenda ambiental mais uma vez: a agropecuária ficará de fora da regulação, conforme o texto original da Câmara, mas poderá ser beneficiada por meio de projetos voluntários de créditos de carbono, inclusive pela recomposição ou manutenção nas propriedades da Reserva Legal e das Áreas de Preservação Permanente (APPs). O problema é que essas áreas já que devem ser obrigatoriamente conservadas pela legislação atual. Portanto, os produtores rurais poderão gerar renda para cumprir a lei. As propostas causaram polêmica porque o setor, incluindo o desmatamento, é responsável por cerca de 3/4 das emissões nacionais de gases de efeito estufa causadores da emergência climática no país.
No Senado, foram feitas mais modificações no projeto que ainda garantem aos proprietários rurais participação na verba gerada por iniciativas desenvolvidas nos mercados jurisdicionais (estaduais ou federal). A mudança desagradou até a governadores da Amazônia, que tentaram revertê-la sem sucesso.
Outro lobby poderoso que se fez presente na última hora foi o das seguradoras e do mercado financeiro. Segundo a única alteração feita no texto do Senado, com a retomada da redação da Câmara, seguradoras e algumas empresas de previdência e capitalização poderão comprar um mínimo de 1% ao ano de “ativos ambientais” comercializados no mercado financeiro para compor suas reservas técnicas e de provisões.
COP-29
A aprovação da nova legislação acontece dias depois dos delegados presentes à COP-29 aprovarem algumas normas para viabilizar um mercado de carbono internacional gerido pela ONU, após anos de impasse. As regras, porém, dizem respeito apenas a princípios e critérios básicos da metodologia de contabilização da remoção de carbono entre os países. Em função das muitas divergências ainda existentes, uma série de temas foram deixados para ser deliberados nas próximas conferências. A viabilização e o início do funcionamento do mercado, portanto, ainda vão demorar. O mercado internacional foi previsto no Acordo de Paris, tratado internacional sobre as mudanças climáticas assinado em 2015.
A realização da votação do tema logo no primeiro dia do evento, com pouco tempo para discussão, provocou críticas de parte dos países e das organizações da sociedade civil que acompanham a conferência. Na verdade, alguns deles não acreditam que o comércio de carbono seja uma alternativa para reduzir as emissões mundiais. Essa não é a posição brasileira.
“Um dos pontos prioritários para a delegação brasileira era justamente o avanço das negociações sobre o artigo da convenção internacional sobre mudanças climáticas que trata do mercado carbono”, informa o analista de políticas climáticas do ISA Ciro Brito. Ele esteve em Baku. Brito explica que Brasil defende o avanço das tratativas sobre o assunto porque o futuro mercado internacional poderá destinar investimentos tanto para o mercado nacional quanto para alguns fundos internacionais de conservação florestal, que poderão financiar projetos no país, mas cujo funcionamento também ainda está em discussão na convenção da ONU.
Como ficam os direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais?
Anuência e consulta
O desenvolvimento de projetos dependerá da anuência e da consulta livre, prévia e informada às comunidades, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), nos termos, quando houver, de protocolo ou plano de consulta. Os custos desses processos serão arcados pela empresa interessada, garantidas a participação e a supervisão do órgão oficial responsável pela proteção da área, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério Público Federal (MPF). O projeto de lei não prevê, no entanto, quem vai realizar a consulta e esse tema poderá vir a ser regulamentado pelo governo.
Titularidade dos créditos
A titularidade sobre os créditos de carbono será de quem tem o usufruto da terra, o que garante essa prerrogativa a essas populações em princípio. No caso em que a área for de domínio público e o usufruto for delas, para desenvolver um projeto de carbono será necessário comunicar previamente ao órgão público responsável, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) por exemplo, para eventual acompanhamento a pedido das comunidades. Se o domínio e o usufruto forem públicos, a iniciativa vai depender da anuência e do acompanhamento do órgão oficial.
Participação nos recursos
O PL 182 garante o recebimento e a participação dessas populações na gestão dos recursos financeiros gerados pelos projetos de crédito de carbono realizados em seus territórios. As comunidades terão direito a 50% dos créditos, no caso de iniciativas convencionais de remoção de gases de efeito estufa, e 70% dos créditos, no caso de projetos de desmatamento e degradação florestal evitados, conservação e manejo florestais (REDD+).
Parte desses recursos poderá ser destinado ao apoio às atividades produtivas sustentáveis, à proteção social, à valorização da cultura e à gestão territorial e ambiental, nos termos da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) e da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT).
Indenização
O projeto assegura a indenização por danos coletivos, materiais e imateriais, decorrentes de projetos e programas de geração créditos de carbono (essa salvaguarda também vale para assentados da reforma agrária).
Como vai funcionar o mercado de carbono?
O PL 182 define um marco regulatório para a venda de créditos de carbono, incluindo a criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). O SBCE terá um órgão gestor, um órgão deliberativo e um comitê consultivo permanente. O detalhamento das regras de governança desses órgãos será regulamentado diretamente pelo governo.
São abrangidos pelas novas regras programas locais e jurisdicionais (estaduais e nacional) baseados em projetos de Redução das Emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) e preservação ambiental, como os de desmatamento e degradação florestal evitados, conservação, manejo ou aumento de estoque de carbono florestal (REDD+).
Poderão participar do SBCE dois tipos de empresas: as que emitirem entre 10 mil e 25 mil toneladas de CO2 equivalente (tCO2e) por ano não terão meta de redução, mas deverão reportar suas emissões obrigatoriamente e estabelecer um plano de redução de emissões; as empresas que emitirem mais de 25 mil tCO2e terão de cumprir essas obrigações e ainda vão ter de reduzir suas emissões.
Os chamados planos nacionais de alocação deverão prever metas graduais e a trajetória dos limites de emissão para cada período de compromisso de redução de emissões previsto na lei. Em cada período, um novo plano deverá prever o volume de Cotas Brasileiras de Emissões (CBEs) e o percentual máximo de Certificado de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE) admitidos no mercado.
Os CBEs que são a quantidade de CO2 equivalente a que cada operador do mercado terá direito. Elas poderão ser compradas por aqueles que não atingirem suas metas de emissão. O CRVE é outro ativo comercializável que será gerado quando houver redução nas emissões. Ele também poderá ser comercializado para que países cumpram suas metas no Acordo de Paris, ou seja, em transações internacionais. Cada CBE ou CRVE representa 1 tonelada de CO2 equivalente.
As empresas com mais dificuldades de reduzir emissões deverão comprar cotas para poluir e certificados que atestem a captação de carbono na atmosfera para zerar as emissões líquidas (emissões brutas menos remoções e reduções). Ao fim de cada período de compromisso, as empresas deverão fazer um levantamento das emissões líquidas e, a partir da sua confirmação, poderá ser emitido um certificado que permitirá cancelar uma cota de emissão.
Quando realizado no mercado financeiro e de capitais, o comércio de créditos estará sujeito à regulação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), mas também poderá haver a transação privada em separado, sem essa regulação, no chamado mercado voluntário.