Fique Sabendo da quinzena relembra os principais acontecimentos socioambientais do ano e os avanços e reveses do período
2022 foi marcado por retrocessos e resistências na luta socioambiental. Desmatamento, garimpo e grilagem seguiram crescendo e ameaçando as Terras Indígenas e os povos da floresta. No entanto, a esperança se fez presente mês a mês com estratégias de resistências locais e com a possibilidade de um novo governo no próximo ano, com protagonismo dos povos indígenas no Congresso e no novo Ministério dos Povos Originários.
O Fique Sabendo dessa quinzena relembra reveses, avanços e lutas que marcaram o último ano na pauta socioambiental e dos povos indígenas do Brasil. Confira a retrospectiva:
Janeiro
No início do ano, um balanço socioambiental de 2021 produzido pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) mostrou que a Amazônia teve o pior desmatamento da década. Mais de 10 mil km² de mata nativa foram completamente devastados em apenas um ano. O balanço de 2021 para os povos indígenas isolados também foi negativo. Esses povos começaram o ano com mais de 3 mil hectares recém desmatados nos 12 meses anteriores, segundo dados do boletim Sirad-I, produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA).
Mas o ano também começou com ares de esperança: a primeira criança vacinada no Brasil contra a Covid-19 foi indígena. Davi Seremramiwe, Xavante de 8 anos, natural do Mato Grosso, foi imunizado em São Paulo e deu início à vacinação infantil no país contra o vírus que matou mais de 600 mil brasileiros desde 2020 e que afetou gravemente os povos indígenas.
A Vacina é um ato de honra aos nossos ancestrais!
— Apib Oficial (@ApibOficial) January 14, 2022
Hoje foi um dia simbólico na Luta Pela Vida. Vacinamos o primeiro parentinho, uma criança indígena imunizada contra o vírus e todo o projeto de morte do governo Bolsonaro.
Estamos há um ano em campanha pelo #VacinaParente. pic.twitter.com/4zho9tlUdY
Fevereiro
Fevereiro começou com um avanço: a pedido da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu um ofício do governo Bolsonaro que restringia a atuação da Funai a áreas homologadas, ou seja, somente aquelas com todas as fases da demarcação concluídas. Barroso determinou que as ações de proteção da fundação devem ser mantidas independentemente de homologação ou não da área.
Logo no início do ano, lideranças indígenas alertaram para a situação dos parentes isolados no Vale do Javari, no Amazonas. A Covid-19 voltou a representar uma ameaça para essas comunidades indígenas: a imunização da terceira dose estava atrasada para eles. Indígenas denunciaram que anciões estavam morrendo em um momento em que, nos centros urbanos, a vida já parecia voltar à “normalidade”. Na aldeia Maronal, no Vale do Javari, quatro anciãos do povo Marubo morreram entre novembro de 2021 e fevereiro deste ano com suspeita de Covid-19.
Março
Em março, a luta dos povos isolados pela proteção de suas terras seguiu sofrendo ameaças. A portaria de restrição de uso da Terra Indígena Piripkura, no Mato Grosso, expirou após ser renovada por apenas seis meses em 2021. Em abril de 2022, ela foi renovada de novo, também por apenas seis meses. Denúncias feitas pela Apib e pelo Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) mostraram que parte da TI foi a leilão para sanar as dívidas de uma das propriedades que invadiu o território.
O mês de março também foi marcado pela retomada das discussões sobre mineração em Terras Indígenas. O PL nº 191/2020, que pretende legalizar o garimpo em território indígena, foi incluído na agenda legislativa prioritária do governo federal para o ano e provocou tensões por ser considerado um “libera geral” para a exploração minerária dentro de Áreas Protegidas. Ao longo de todo o ano, os povos indígenas resistiram e se mobilizaram contra a aprovação do PL. As mobilizações seguiram durante todo o mês de abril.
Abril
Abril, mês dos povos indígenas, foi marcado por demonstrações de esperança e possibilidades de um futuro melhor em meio a tanto retrocesso. Povos e organizações indígenas de diversas partes do país se reuniram em Brasília no tradicional Acampamento Terra Livre, que completou 18 anos de (re)existência. Com o tema ‘Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política’, o acampamento pautou a luta contra o “Pacote da Destruição”, uma série de proposições legislativas danosas ao meio ambiente e aos povos indígenas que estavam na agenda prioritária do Congresso em 2022.
Durante os encontros do ATL, o então candidato à presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, prometeu um Ministério dos Povos Originários, o “regovaço” de medidas anti-indígenas e anti-ambientais e a garantia da consulta prévia aos povos indígenas sobre políticas e medidas que os afetem.
Ainda em abril, a Hutukara Associação Yanomami lançou relatório inédito com dados, imagens aéreas e relatos da criminosa invasão de garimpeiros ilegais dentro da Terra Indígena Yanomami. Segundo dados extraídos do relatório, em 2021 o garimpo ilegal avançou 46% em comparação com 2020. O número de comunidades afetadas diretamente pelo garimpo ilegal soma 273, abrangendo mais de 16 mil pessoas, ou seja, 56% da população total do território. Acesse o relatório e saiba mais.
Maio
Em maio, a onda de ataques violentos aos povos indígenas que marcaram o ano de 2022 teve como alvo os Parakanã, da Terra Indígena Apyterewa, localizada no Pará. Grileiros montados em cavalos invadiram duas aldeias Ka’a’ete e Tekatawa, instaurando o terror e escalando a tensão no território. Além da grilagem de terras, a região enfrenta o avanço do garimpo ilegal.
Após experiências traumáticas com obras de infraestrutura, o povo Arara publicou protocolos de consulta para garantir direito ao território e sua proteção. Dois protocolos foram lançados: um escrito pelos Arara da Terra Indígena Cachoeira Seca e outro, pelos Arara da TI Arara.
O direito de consulta aos povos originários e tradicionais garante que nenhum empreendimento que tenha impacto nas TIs pode ser feito sem antes escutar a comunidade local. Essa consulta tem que cumprir um protocolo claro, com regras estabelecidas pelos próprios indígenas.
Junho
Junho foi marcado por uma das piores notícias do ano. Logo no início do mês foram iniciadas as buscas pelo indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, que haviam desaparecido durante uma incursão no território do Vale do Javari. Pouco mais de dez dias depois, foi confirmado o assassinato de Bruno e Dom. O cruel assassinato escancarou a situação de extrema violência contra os que defendem os povos indígenas e a proteção das florestas no Brasil, o 4º país que mais ameaça e mata ambientalistas.
Um dossiê produzido pela associação que congrega servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), a Indigenistas Associados (INA), e pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), mostrou como Bolsonaro transformou a Funai em um órgão anti-indígena. O estudo revelou que apenas duas das 39 coordenações regionais da Funai eram chefiadas por servidores públicos.
Outras 19 eram coordenadas por membros das Forças Armadas; três por policiais militares e duas por policiais federais. Servidores da Funai entraram em greve no final de junho por conta desse descaso sistemático. Em manifesto, os indigenistas pediram exoneração de Marcelo Xavier da presidência do órgão.
Julho
O mês de julho foi marcado pela continuidade dos ataques de fazendeiros contra os indígenas Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul. Grande parte dos ataques teve como cenário a cidade de Amambaí, palco de uma disputa por um território indígena ancestral onde atualmente está localizada uma fazenda. No final de junho, dois indígenas foram mortos e sete ficaram feridos em uma tentativa de retomada do território ancestral. Em maio, um jovem indígena de 18 anos foi assassinado com ao menos cinco tiros em outra retomada dos Guarani Kaiowá. Já em julho, outro Guarani Kaiowá foi assassinado em uma emboscada também em Amambaí.
O mês de julho também foi de resistência! Na periferia de São Paulo foi lançada a feira Quilombo Quebrada, uma parceria de combate à fome e estímulo à segurança alimentar entre moradores periféricos e populações tradicionais. A feira leva mensalmente à periferia de São Paulo uma variedade de frutas, legumes e verduras produzidos pelos quilombolas do Vale do Ribeira.
Agosto
Em agosto, mês internacional dos povos indígenas, o "índio do buraco", último da terra Tanaru, foi encontrado morto em Rondônia. O “índio do buraco” já não tinha mais parentes, pois foram mortos em uma sequência de massacres de invasores, principalmente fazendeiros, que ainda cercam o território, no sul de Rondônia. Sem o “índio do buraco”, há receio de que fazendeiros aumentem as pressões pela invasão do território.
“Essa morte mostra a extinção de um povo em pleno século 21. Mostra que a política indígena não está protegendo os povos isolados”, disse a liderança e ativista Neidinha Suruí, da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé. Por não ser demarcada, a Terra Indígena Tanaru está sob ameaça de invasões e ataques.
Ainda em agosto, o ISA lançou um estudo que mostra que os povos indígenas e tradicionais são essenciais para a preservação das florestas. A análise mostrou que nos últimos 35 anos essas populações protegeram mais de 20% da vegetação nativa no Brasil. Além da alta tecnologia social no manejo tradicional da florestas, a presença de povos indígenas amplia a governança sobre os territórios e promove contribuições socioambientais importantes para recuperar áreas degradadas. “As florestas precisam das pessoas, assim como as pessoas precisam das florestas”, sintetizou o estudo.
Setembro
No Rio Negro, Amazonas, lideranças indígenas denunciaram uma invasão garimpeira em setembro. A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) cobrou a retirada de dragas de garimpo de ouro que entraram ilegalmente em território indigena. O aumento da pressão do garimpo ilegal sobre as Terras Indígenas do Rio Negro está colocando a população em risco e levando ao crescimento de denúncias.
Levantamento realizado pelo ISA mostrou que havia, na época, cerca de 77 pedidos de exploração minerária nas áreas que compreendem as Terras Indígenas Jurubaxi-Téa, Rio Téa, Yanomami, Médio Rio Negro I, Médio Rio Negro II e Cué-Cué Marabitanas.
A resistência dos povos indígenas ocupa diversos espaços. Nas ruas, na floresta e também nos palcos. Em setembro, os Brô MCs foram o primeiro grupo de rap indígena a se apresentar no festival Rock In Rio, no Rio de Janeiro. A apresentação também divulgou, a nível nacional, a campanha Isolados ou Dizimados, alerta para o risco que povos indígenas isolados de quatro áreas diferentes no país correm, caso o governo federal não tome providências legais para a proteção desses territórios.
Outubro
Em outubro, o ISA lançou um estudo comprovando que o garimpo impede o progresso social na Amazônia e derruba os indicadores sociais. O garimpo afeta pelo menos 216 municípios e uma população estimada de 6 milhões de pessoas na Amazônia Legal, ainda de acordo com o levantamento. O Índice de Progresso Social (IPS) médio dos municípios amazônicos afetados pelo garimpo é de apenas 52,4, menor do que a média para a Amazônia, de 54,5, e bem abaixo da média nacional, de 63,3.
Outubro trouxe esperança com o resultado das eleições, mas também mostrou que os próximos quatro anos também serão de desafios para a luta socioambiental. A maior bancada indígena da história do país foi eleita neste ano, com grandes representantes como as lideranças indígenas Sônia Guajajara e Célia Xakriabá para o Congresso Nacional.
Além disso, o país elegeu em segundo turno o presidente Lula, que prometeu uma mudança na política socioambiental com protagonismo dos povos indígenas. Apesar dos avanços, o governo Lula e a Bancada do Cocar enfrentarão opositores ferrenhos, como o deputado federal eleito Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente e principal responsável pela política anti-ambiental do governo Bolsonaro, e o senador Hamilton Mourão, vice-presidente de Jair Bolsonaro.
Novembro
Em novembro, organizações indígenas cobraram uma investigação sobre o ataque a tiros que matou Ana Yanomami Xexana, em Boa Vista, Roraima, em mais um capítulo da guerra contra os Yanomami. Cerca de 30 indígenas estavam reunidos na Feira do Produtor, um local comum de estadia dos Yanomami quando estão de passagem pela cidade. Em outubro, um líder indígena e um adolescente ficaram feridos após ataque a tiros efetuados por garimpeiros na Terra Indígena Yanomami.
O mês também foi marcado pelo protagonismo indígena na COP-27, a cúpula da ONU sobre mudanças climáticas que reúne líderes de países do mundo todo. Lideranças indígenas participaram do encontro reivindicando apoio financeiro a fundos geridos por comunidades indígenas, a retomada das demarcações no Brasil e uma nova política socioambiental para os próximos quatro anos.
Dezembro
Neste fim de ano, a Terra Indígena Jacareúba-Katawixi, no Amazonas, completou um ano sem nenhuma proteção após o vencimento da Portaria de Restrição de Uso que protegia o território. Ela está entre as Terras Indígenas com a presença de povos isolados mais ameaçadas do país. Um levantamento do ISA mostrou que, entre agosto de 2021 e setembro de 2022, mais de 12 mil árvores adultas foram derrubadas no território.
O ano também termina com grandes expectativas sobre os próximos passos com a posse do novo governo a partir de janeiro de 2023. Um Grupo Técnico dos Povos Originários foi formado para discutir os desafios da política indígena para o próximo ano, que deve ser marcada pela retomada imediata das demarcações, pelo fortalecimento e recomposição orçamentária dos órgãos indigenistas e ambientais, e pela retomada da fiscalização e monitoramento das Terras Indígenas.
Relatório produzido pelo GT indicou 13 Terras Indígenas em condições de terem demarcações homologadas já no primeiro mês do próximo governo. Entre os atos normativos anti-indígenas indicados para serem revogados imediatamente, está o parecer normativo 001/2017, publicado pelo ex-presidente Michel Temer, que prevê o Marco Temporal.
Outros seis atos normativos devem ser revogados imediatamente e outros quatro durante os 100 primeiros dias de Governo Lula. Um exemplo disso é o Decreto 10.965, que facilita a mineração dentro de terras indígenas e a Portaria 3.021, do Ministério da Saúde, que determina a exclusão da participação social nos Conselhos Distritais de Saúde Indígena.