Beiradeiros, agroextrativistas e indígenas ampliaram formas de valorização de sua economia e modos de vida no 11º Encontro da Rede Terra do Meio, em Altamira (PA)
Você já provou a castanha-do-brasil retirada diretamente do ouriço? Wara Wara Xipaya, professora e extrativista, conta que o sabor é único. “A castanha, quando é retirada do ouriço, é fresca e tem um leite delicioso usado para alimentar as crianças e na culinária em geral. A castanheira é uma árvore muito grande que tem vários ouriços que caem no chão. Daí a gente faz a coleta e quebra esse ouriço, que guarda de 20 a 25 amêndoas. A gente descasca e come, mas também pode ralar e espremer essa amêndoa para tirar o leite. E aí já está no jeito pra beber, utilizar na comida, com beiju, que a gente chama de paru, e outros nossos alimentos”, detalha.
Essa riqueza, colhida às margens do Rio Iriri, na Terra Indígena Xipaya, e em toda a Terra do Meio, em Altamira (PA), é um exemplo dos conhecimentos e produtos da sociobiodiversidade que a Rede Terra do Meio transforma em sustento e conservação da floresta, dos povos e suas culturas.
Entre os dias 6 e 8 de dezembro, Altamira recebeu o 11º Encontro da Rede Terra do Meio, espaço de governança que reuniu 31 das 39 organizações que compõem o coletivo, representando 10 territórios indígenas, três reservas extrativistas – Resex Xingu, Resex Riozinho do Anfrísio e Resex do Iriri - e uma organização de agricultura familiar, localizadas em aproximadamente 7,9 milhões de áreas protegidas.
Durante o evento, foram aprovados instrumentos inovadores, como o Fundo Terra do Meio. Foram redefinidos valores de produtos e, ainda, discutido o aprimoramento de atividades, entre elas a coleta de sementes e comercialização para restauração e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Além disso, o Governo do Pará apresentou uma proposta de projeto para pilotar e desenvolver mecanismos de Pagamentos por Serviços Territoriais e Ambientais (PSTA) – voltado para territórios coletivos.
Presidente da Rede Terra do Meio, Francisco de Assis Porto de Oliveira – o Seu Assis -, reforçou a importância da união do grupo, formada por agricultores familiares, beiradeiros e indígenas: “Desde a criação da primeira cantina, em 2009, vimos a Rede crescer. Hoje, cuidar dela é cuidar de algo que pertence a todos nós.”
Analista sênior em economia da sociobiodiversidade do Instituto Socioambiental (ISA), Jeferson “Camarão” Straatmann considera que o encontro da Rede Terra do Meio é mais do que um espaço de troca de experiências: trata-se de um momento de reafirmar compromissos e sonhar com novos horizontes. Ele integra a secretaria executiva da Rede.
“A Rede promove a sociobioeconomia, levando em conta não só produtos e comércio, mas principalmente o fortalecimento dos saberes, conhecimentos e práticas de manejo que mantêm a floresta viva, desencadeando efeitos positivos para a cultura, biodiversidade, proteção da água, combate aos efeitos da mudança climática. Essa é uma economia que gera renda, promove culturas e entrega serviços ecossistêmicos para todas e todos nós”, explica.
Coordenadora adjunta do Programa Xingu, do ISA, Fabíola Silva reforça que o encontro é um momento único de articulação e planejamento coletivo dos povos e comunidades tradicionais. “Se governos e sociedade querem tratar de bioeconomia e de estratégias para promover povos e produtos da floresta, é preciso olhar para a Rede Terra do Meio”, diz.
Sonhos e planejamentos
Os participantes do encontro aprovaram o Fundo Terra do Meio, que contará com recursos de projetos, doações e pagamentos por serviços ambientais (PSA), promovendo a execução de ações ligadas às estratégias e objetivos da Rede. O fundo deve promover atividades de governança, estruturas coletivas e manejo, com previsão de recursos para emergências.
"O Fundo Terra do Meio é uma construção inovadora, oficializada neste encontro. Ele é parte do regimento interno que foi atualizado e aprovado na assembleia. E vai nortear a aplicação e o investimento de recursos, com foco em governança, manejo e resposta a crises climáticas e outras emergências, melhorando a qualidade de vida das pessoas que vivem nas comunidades", explica Francinaldo Lima, membro da secretaria-executiva da Rede Terra do Meio.
Durante o encontro, João Luis Abreu, economista do ISA, desenhou um painel ilustrativo e explicativo da estrutura da Rede e do Fundo da Terra do Meio, tendo o apoio de Clara Assis, assessora da secretaria executiva do ISA.
“Neste espaço de troca, onde desafios são refletidos, sonhos ganham direção e decisões são tomadas em conjunto. Essa é a essência da construção de uma economia em rede que promove a floresta em pé e o bem estar das comunidades”, afirma João Luis Abreu.
O fundo será utilizado com base em critérios claros, aprovados coletivamente, e contará com um sistema de premiação para incentivar boas práticas. Entre as possibilidades, está o fortalecimento da diversidade nas roças.
Além disso, a governança será marcada pela transparência. “É uma responsabilidade coletiva e um ganho para a Rede, que agora tem um novo instrumento para potencializar suas ações”, comenta Jeferson “Camarão”.
PSTA: valorizando os guardiões da floresta
Outro ponto alto do encontro foi a apresentação, pelo Governo do Estado do Pará, do projeto piloto do Programa de Pagamento por Serviços Territoriais e Ambientais (PSTA) em Territórios Coletivos.
O objetivo é construir o programa estadual de pagamentos por serviços ambientais para territórios coletivos a partir das experiências a serem construídas na região da Terra do Meio. O piloto, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), deve iniciar em 2025 com o processo de consulta às comunidades.
O PSTA tem como objetivo reconhecer e recompensar as comunidades que mantêm a floresta em pé, preservando a biodiversidade e mitigando os impactos das mudanças climáticas.
Articulador do programa pelo Governo do Pará, Vanderson Serra destacou que as formas como esse pagamento será feito serão discutidas com as comunidades, com decisão conjunta.
A região da Terra do Meio foi escolhida para o piloto devido às estruturas de governança existentes, como a Rede Terra do Meio. Os representantes da rede concordaram em seguir em diálogo com o estado do Pará, acompanhando os processos de consulta, construção e teste dos mecanismos de pagamento e promoção dos serviços de conservação que realizam há séculos.
Alimentando escolas e fortalecendo comunidades
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), acessado em 2024 pela Rede Terra do Meio, vem transformando a relação entre as comunidades e as escolas da região e gerando renda.
Assessora da Diretoria de Política Agrícola e Informação da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Maria Cazé esteve no encontro e promoveu uma oficina com representantes de 12 territórios – três Resex e nove terras indígenas – que vão começar a desempenhar o papel de agentes territoriais para apoiar a execução e comunicação do PAA, visando ainda maior participação da base de produtores na gestão de novos projetos.
“Esse, para nós, é um dos projetos de PAA mais importantes do Brasil. Aqui na Terra do Meio está o maior projeto executado pela Conab no Pará, no valor de R$ 1,5 milhão. É um projeto que tem a maior diversidade de alimentos entre todos os executados – são 82 tipos. Foram incluídos no programa 22 alimentos que não tinham sido registrados ainda. Ninguém no Brasil entrega alimentos como golosa, cacauí, peixe feito na massa da macaxeira. Esse projeto é grandioso tanto em diversidade de alimentos quanto em diversidade de povos”, explica.
Além de melhorar e trazer diversidade para a alimentação nas escolas dos territórios, o PAA impacta positivamente a economia das comunidades.
Moradora da comunidade Baliza, na Resex Xingu, Marinês Lopes de Souza faz entrega de alimentos para a escola local. “Faço entrega de manga, carambola, cheiro verde, feijão verde, arroz, galinha, bolo de babaçu”, enumera.
Com a atividade, ela reforça a renda e alimenta a própria família: seis de seus netos estudam na escola e podem comer na merenda os produtos do quintal, da roça e da floresta. “É um incentivo para continuar produzindo e preservando nossa cultura”, diz.
O articulador de políticas públicas Leonardo de Moura, do ISA, ressaltou o caráter inovador do PAA: “Estamos mudando a forma de executar políticas públicas, adaptando-as às realidades locais. Isso é essencial para promover justiça social e ambiental.”
Na Rede Terra do Meio, em 2024, a castanha – um dos principais produtos do coletivo - movimentou R$ 500 mil. O PAA movimentou R$ 1 milhão.
Modelo de sociobioeconomia
A Rede Terra do Meio é um exemplo concreto de como a sociobioeconomia pode aliar cultura, conservação e geração de renda. Com produtos como castanha, babaçu, óleo de andiroba e artesanatos, a Rede promove uma economia que mantém a floresta viva, garantindo sustentabilidade para as comunidades e reduzindo os impactos das mudanças climáticas.
Fazem parte da rede de beiradeiros, agricultores familiares e povos indígenas como Xipaya, Kuruaya, Xikrin, Kayapó, Arara, Araweté e Assurini.
Em 2024, foram movimentados mais de R$ 2 milhões em produtos como a castanha coletada por Wara Wara Xipaya e por grande parte dos moradores da Terra do Meio: o que não é consumido pelas famílias, é encaminhado para venda ou troca na rede de cantinas num processo que promove o comércio justo.
“Tudo o que fazemos, da roça ao manejo sustentável, é trabalho que gera conservação”, resume Francisco de Assis Porto de Oliveira.
Comunicadores amplificam vozes da Rede Terra do Meio
Conhecedores das Terras Indígenas e reservas da Terra do Meio, jovens comunicadores vêm fortalecendo os caminhos da sociobiodiversidade com suas câmeras e celulares. A Rede Terra do Meio agora conta com um grupo de comunicadores que desempenham um papel essencial na proteção dos modos de vida dos indígenas agroextrativistas e ribeirinhos da região e fortalecem a união entre os integrantes da Rede Terra do Meio, conectando e informando todos sobre as atividades da Rede.
Quem está à frente do grupo é Joelmir Silva e Silva, assessor de comunicação da Rede Terra do Meio. “Sou beiradeiro, neto de indígena e filho de seringueiro, da comunidade Maribel, às margens do rio Iriri, na Terra Indígena Cachoeira Seca”, descreve.
Em 2019, ele foi escolhido por lideranças da sua comunidade para exercer a função de comunicador na Rede Xingu+. “Meu trabalho busca traduzir informações técnicas para uma linguagem acessível às comunidades, promovendo entendimento e integração”, explica.
"É uma forma de luta. Somos comunicadores e lideranças e atuamos através de câmeras e celulares para tirar nosso povo da invisibilidade", relata, destacando a importância de dar voz às narrativas locais. Agora, ele assume o desafio de fortalecer a comunicação da Rede Terra do Meio.
Clique aqui e confira a exposição Os Olhos do Xingu, onde o comunicador Joelmir Silva apresenta as belezas e desafios no Xingu.
A Rede Xingu+, por meio dos Comunicadores indígenas e ribeirinhos do Xingu, está fortalecendo a produção coletiva da comunicação na Rede Terra do Meio. Esse grupo é composto por 33 comunicadores engajados, que unem esforços para valorizar as vozes e as realidades das comunidades que vivem.
Assista ao vídeo feito pelos comunicadores:
Parte dos Comunicadores da Rede Xingu+ integram a comunicação da Rede Terra do Meio, que atualmente conta com nove Comunicadores, entre eles, está Alice Freitas Kuruaya, comunicadora da Resex Rio Xingu.Outro exemplo é Maxiel da Silva Ferreira, da Resex Rio Iriri, que encontra na fotografia e no cinema poderosas ferramentas para divulgar e proteger a cultura ribeirinha. Ele ressalta como a troca de experiências entre os comunicadores da Rede Terra do Meio é fonte de aprendizado e inspiração para seu trabalho.
Já Yjapyka Xipaya, morador da TI Xipaya, iniciou sua jornada como comunicador no ano passado. Ele divide seu tempo entre as atividades tradicionais da aldeia e sua atuação como comunicador, aproveitando as reuniões e encontros para absorver conhecimento e aprimorar sua experiência. Como ele mesmo relata: “Agora eu estou criando mais experiência, encontrando com os comunicadores. Às vezes eu fico calado, prestando atenção, aprendendo nas reuniões.”
A Rede Terra do Meio se consolida como um espaço de aprendizagem colaborativa, onde os caminhos da sociobiodiversidade se encontram. Comunicadores como Joelmir, Alice, Yjapyka e Maxiel, junto a outros jovens, têm trabalhado para fortalecer as vozes da floresta, visibilizando as histórias dos membros que formam a Rede Terra do Meio e compartilhando com o mundo como os seus modos de vida contribuem no enfrentamento às mudanças climáticas