O presidente e sócio-fundador do ISA, Márcio Santilli, conta mais uma história da Constituinte em uma crônica socioambiental inédita

Devemos, mesmo, celebrar o centenário do jurista José Afonso da Silva, comemorado em 30 de abril, pessoa que deu, e ainda dá, contribuições de valor inestimável à democracia e a muitas outras boas causas. Vai aqui um registro de uma das histórias sobre essas contribuições.
Durante a Constituinte (1986-1988), José Afonso assessorou diretamente o então líder do PMDB, o senador por São Paulo Mário Covas. O PMDB de então era uma frente heterodoxa, que dispunha de maioria absoluta na Constituinte. Apesar das suas divisões internas, com uma parte da bancada seguindo as orientações do “centrão” (sim, já existia), Mário Covas influiu de forma decisiva no processo, e José Afonso também.
Só que, por causa de uma desinformação generalizada, ele deu uma pisada na bola relativa à questão indígena (justo ele, que é um grande defensor dos direitos indígenas). Ele atuava, como advogado, num processo enroladésimo que tramitava na Justiça Federal e envolvia a situação fundiária da zona leste da cidade de São Paulo. Essa situação impedia a regularização de milhares de imóveis urbanos, porque a área pertencia à União por ter constituído um “aldeamento indígena extinto”. Mas o governo federal não tomava providências, enquanto o governo do estado e a prefeitura queriam resolver a questão e regularizar a situação de milhares de pessoas.
Para resolver, José Afonso sugeriu, e o Mário Covas acolheu e apresentou a proposta de inclusão de um inciso no Artigo 26, dizendo que se incluem entre os bens dos estados as áreas pertencentes aos aldeamentos indígenas extintos. E, de fato, esse inciso foi incluído nos vários projetos da Constituição.
A simples menção à extinção já causava arrepios no movimento indígena de então, liderado pela UNI, a União das Nações Indígenas, e entre os seus apoiadores. Um dispositivo similar constou da primeira Constituição republicana (1891-1934) e deu margem para que os povos indígenas fossem declarados extintos, mesmo estando vivos, dando espaço para os estados titularem as suas terras.
O caso de SP
Então, a UNI e os seus apoiadores pediram uma audiência com o Covas, da qual José Afonso também participou, para expressar essa preocupação e pedir que eles revissem a proposta e a retirassem do Projeto de Constituição. José Afonso explicou o motivo da inclusão daquele inciso e achou que a preocupação dos indígenas e indigenistas era um pouco exagerada. Afinal, eles acabaram decidindo apresentar uma emenda restringindo a aplicação do inciso ao Estado de São Paulo.
Naquela altura, o Projeto de Constituição já caminhava para o primeiro turno de votação em plenário. Mário Covas, como autor da emenda modificativa, foi para a tribuna encaminhar a votação. Todos esperavam que a emenda fosse aprovada, já que o próprio proponente do inciso reconhecia a necessidade de alterá-lo.

Só que não! Após a fala de Covas, um constituinte do nordeste foi à tribuna e fez um discurso de denúncia, alegando que aquela emenda visava resolver só o problema de São Paulo, deixando o resto do Brasil de fora. O tema dos aldeamentos extintos era surreal, ninguém sabia ao certo o seu alcance, a maioria comprou a tese de São Paulo versus Brasil e a emenda caiu.
Percebemos, então, que se o movimento indígena não fosse capaz de jogar luzes sobre o tema, o inciso ficaria no texto da Constituição. E o tempo era curto, pois a votação em segundo turno chegaria rapidamente ao artigo 26. E, na verdade, nenhuma das pessoas mais diretamente envolvidas sabia precisar a extensão do conceito e que outras áreas seriam afetadas.
Foi, então, que conhecemos a antropóloga Rita Heloísa de Almeida, formada pela Universidade de Brasília (UnB) e que havia feito uma tese sobre os tais aldeamentos extintos. Pedimos que ela fizesse uma lista das áreas de antigos aldeamentos, que revelou uma quantidade impressionante. Vários municípios, especialmente na Amazônia, mas não somente, se originaram de aldeamentos extintos. Heloisa faleceu em 2022, aos 67 anos.
Lista de aldeamentos
Com essa lista em mãos, mapeamos os Constituintes mais votados em cada uma dessas cidades e deduzimos que se conseguíssemos falar com todos eles, teríamos uma chance de reverter o resultado no segundo turno, em que apenas emendas supressivas poderiam ser votadas. Isso porque a inclusão de todas aquelas áreas entre os bens dos estados na Constituição promoveria uma desapropriação gigantesca. Os apoiadores dos direitos indígenas se dividiram em grupos de dois para percorrer os gabinetes e informar o maior número possível de constituintes.
Coube-me conversar com o senador Jarbas Passarinho, que era o líder do PDS, partido sucedâneo da Arena, que dava sustentação à ditadura e dispunha da segunda maior bancada na Constituinte. Passarinho era nativo do Acre e representava o Pará. Sua cidade natal estava na lista, além de vários municípios paraenses. Quando ele entendeu do que se tratava, e o tamanho da bronca, se dispôs a encaminhar a votação, em segundo turno, de uma emenda supressiva, que também havia sido apresentada por Covas. Passarinho leu a lista na tribuna, explicou, com calma, as implicações do inciso, que foi derrubado por ampla maioria.
José Afonso, quando tomou conhecimento da lista, exclamou, de forma incomum ao seu estilo: “puta merda!”. O episódio não afetou a admiração que sempre tivemos pelo jurista. Ao contrário, ele foi capaz de reconhecer o erro e ajudar na sua correção, o que é incomum entre celebridades. Nossa admiração por ele cresceu.
Estou escrevendo essa história, sobre algo que não entrou na Constituição, porque ela nos ensinou que não se deve incluir em leis, menos ainda na Constituição, disposições sobre o que não podemos avaliar o alcance. O caso é um bom exemplo de como o Congresso, independentemente de ideologia, pode rever uma posição e corrigir um erro, diferentemente do que acontece hoje, em que a irracionalidade predomina na lógica da radicalização política.
No seu centenário, José Afonso está recebendo muitas homenagens por tudo o que fez, inclusive o que está na Constituição. Dessa forma meio torta, me somo a essas homenagens, que são extensivas à Rita, que nos deixou em 2022.
