Antecessor, Dom Edson Damian passa a ser bispo emérito; em entrevista ao ISA, ele relembra viagens às comunidades e encontros com papas

Em uma cerimônia que reuniu ritos católicos e rituais indígenas, o bispo Dom Raimundo Vanthuy Neto assumiu em 11 de fevereiro a Diocese de São Gabriel da Cachoeira (AM). O bispo Dom Edson Damian, que esteve à frente da Diocese por 15 anos, fez a passagem na presença do cardeal dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus.
O diretor-presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Marivelton Barroso, do povo Baré, colocou um cocar no novo bispo.
A cerimônia aconteceu no ginásio Arnaldo Coimbra e reuniu religiosos, instituições e representantes de paróquias de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. As danças e rituais indígenas na cerimônia foram o Carriçu, Mauako e Japurutu, além da defumação.
Dom Edson Damian apresentou sua renúncia ao Papa Francisco ao completar 75 anos de idade, dando início ao processo para indicação de um novo religioso. Dom Vanthuy foi escolhido e ordenado bispo em 4 de fevereiro deste ano, em Roraima, onde atuava.
Com grande emoção, ele apresentou a família e contou que os pais são migrantes nordestinos que se mudaram para Roraima na busca por uma melhor condição de vida.

O novo bispo nasceu em 10 de maio de 1973 em Pau dos Ferros, Rio Grande do Norte. Começou a sua formação no Seminário São José de Manaus em 1991, sendo ordenado diácono em 11 de julho de 1999 e presbítero da Diocese de Roraima em 2001.
Foi diretor e professor do Instituto de Teologia, Pastoral e Ensino Superior da Amazônia, atualmente Faculdade Católica do Amazonas, e colabora com os estudos sobre o Cristianismo e Povos Indígenas na Amazônia.
Com o lema “Servir na caridade e na esperança”, Dom Vanthuy escolheu celebrar a missa descalço. Ele pediu aos povos indígenas que ensinassem a ele sua coragem, lembrando a persistência e a resistência frente às pressões da colonização. “É um povo subversivo, que enfrentou o processo de colonização. E, resguardando suas línguas indígenas, dizem: ‘continuamos indígenas’”, disse. “A esperança tem outro nome, que é a coragem”, completou.


Dom Vanthuy falou da preocupação com o alcoolismo, um dos principais problemas enfrentados pelos povos indígenas do Médio e Alto Rio Negro e se dirigiu às instituições pedindo para que haja união de esforços no enfrentamento à questão.
Gilce Guilherme França, professora do povo Baré, participou da cerimônia e ofereceu a Dom Vanthuy uma peneira de arumã com contornos do rosto do novo bispo e um cálice em madeira da floresta.
“Ele mostrou essa preocupação com a ecologia e com a casa comum, que é o nosso território. Mostrou humildade com os povos indígenas. Também mostrou preocupação com o alcoolismo, que é um problema grande nas cidades e nas nossas comunidades. Está sendo acolhido pelos povos do Rio Negro”, disse.
Além do diretor-presidente da Foirn, participaram da celebração representantes de outras instituições, como a coordenadora da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) Regional Rio Negro, Dadá Baniwa; o coordenador do Distrito Sanitário Especial do Alto Rio Negro (DSEI-ARN), Luiz Brasão; o diretor do Instituto Federal do Amazonas - Campus São Gabriel da Cachoeira, Renato Valadares; Instituto Socioambiental (ISA) e Exército.
Durante sua atuação em São Gabriel da Cachoeira, dom Edson Damian esteve aberto ao diálogo interinstitucional, com parceria e colaboração constantes em encontros e debates realizados na FOIRN e no ISA.
Em seu site, a FOIRN informa que a presença de Marivelton Baré na cerimônia destaca a importância do diálogo e cooperação entre diferentes instituições e grupos sociais para a promoção da paz e da harmonia na sociedade.

Durante o ano de 2023, dom Edson esteve em várias sessões do Cine Japu - projeto do ISA e da Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas que promove exibições de filmes em São Gabriel da Cachoeira -, participando dos debates e divulgando a programação durante as missas.
A Diocese é formada por 11 paróquias: três na cidade de São Gabriel da Cachoeira (Catedral, Dom Bosco e Aparecida), e seis no território indígena, sendo Taracuá, Iauaretê e Pari-Cachoeira (Triângulo Tukano), Assunção do Içana, Cucuí e Maturacá. Há ainda as paróquias de Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos.
Em janeiro, o então padre Vanthuy esteve em São Gabriel e, acompanhado de dom Edson Damian, conheceu lideranças de comunidades indígenas e participou de encontro da Escola de Teologia, quando foi lançada a Carta compromisso para prevenir as violências e o suicídio.
Para Dom Edson Damian essa é uma iniciativa que trará benefícios para toda a população. “Meus últimos dias em São Gabriel são coroados por propostas oportunas e que trarão benefícios para a população”, disse. Ele recebeu na Diocese a visita da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, e da presidente da Funai, Joenia Wapichana, repassando a elas as demandas que constam na carta.
Muito emocionado durante a cerimônia de troca de bispos, ele fez agradecimentos, dizendo que em seu coração tem lugar para todos aqueles com quem caminhou.
Dom Edson passa agora a ser bispo emérito da Diocese de São Gabriel da Cachoeira e, até o final do ano, ficará em Jaguari (RS), na companhia de seu pai, Gerônimo, que completará 102 anos, e dos irmãos e irmãs.
Quando assumiu a Diocese, também ganhou um cocar, que ficará no Rio Negro. Ele falou do grande aprendizado que teve ao lado dos povos indígenas: “Os indígenas me ensinaram a viver com o estritamente necessário e a ser feliz.”
Em entrevista, dom Edson relembrou algumas passagens enquanto esteve à frente da Diocese mais indígena do país. Leia abaixo algumas delas:
Diários
Antes de vir para cá (São Gabriel da Cachoeira) me aconselharam a escutar vários sábios que tinham trabalhado aqui. Um deles se chamava padre Casimiro Beksta. Ele foi um salesiano que teve grande sensibilidade nos valores culturais indígenas e foi o primeiro que começou a estudar muito, inclusive devemos a ele a tradução do livro de Grünberg do alemão para o português (Theodor Koch-Grünberg - “Dois anos entre os indígenas: viagens no noroeste do Brasil - 1903-1905”).
Foi o padre que descobriu o talento do Feliciano Lana (artista indígena, do povo Desana), visitando comunidade perto do Rio Tiquié e oferecendo materiais a ele.
Eu visitei o velho salesiano que estava acamado para fazer uma entrevista. E uma das coisas que ele me disse foi: “você está chegando numa realidade totalmente diferente, numa riqueza sociocultural e linguística extraordinária. Você leve um caderninho para registrar a cada dia aquilo que você viu, as impressões que teve, as pessoas com quem você conversou.” E fiz isso desde o primeiro dia. Hoje tenho cerca de 15 diários com essas anotações.
Temores
Eu lembro-me do medo que eu sentia quando eu ia visitar as comunidades acima de Iauaretê. No Rio Uaupés e no Rio Papuri há cachoeiras perigosíssimas. E os práticos indígenas diziam: “bispo, aqui podemos passar na cachoeira sem desembarcar.” E eu pensava, mas será que vai dar? Com essa água tão violenta. Pois dava.
As primeiras vezes eu fechava os olhos, tomava um banho de água que vinha contra a gente, e passava. Outras vezes diziam: “bispo, aqui é perigoso. O senhor anda pela trilha que nós vamos pelo rio.”
Nas primeiras vezes eu usava colete, depois com o tempo eu levava o colete e servia para assentar em cima, pois o banco é duro. Nas últimas vezes eu já esquecia o colete. Deus me perdoe porque, às vezes, a gente coloca Deus à prova e confia demais.
No ano passado, sabendo que era a última viagem que eu faria pelo Rio Papuri, lá tem a famosa Cachoeira do Pato – são três cachoeiras, uma seguida da outra. E todas as vezes que eu passei lá, o prático dizia: “agora, o senhor desembarca, e vai pela trilha. Eu vou subir a cachoeira sozinho.” Tinha sempre um outro que ajudava a carregar o material, a comida, a lona, e caminhava mais de hora pela trilha e lá em cima embarcava de novo.
Da última vez era um prático jovem, arrojado. E ele perguntou: “bispo, o senhor já subiu a Cachoeira do Pato?”. Eu respondi que não, que todas as vezes eu desembarquei.
“Mas dessa vez tem água suficiente para subir com segurança.” Eu perguntei: “Você tem certeza?” “Tenho.” Os jovens são assim.
Então foi assim. Mas que medo eu senti, eu fechava os olhos. Mas senti segurança nesse jovem e consegui transpor as três cachoeiras. Eu venci o medo definitivamente. Já posso partir passando por essa aventura também.
Alagamento
É claro que eu tinha medo de alagar. E aconteceu uma vez. Eu estava indo de Maturacá (no território Yanomami) para visitar a comunidade do Maiá, muito longe. Saímos de madrugada porque chegaríamos lá no fim da tarde, pelo Rio Cauaburis.
Fazia cerca de três horas que tínhamos saído da aldeia e o prático, numa corredeira, ele entrou com muita velocidade. E bateu com violência numa pedra ou numa árvore. Eu estava sentado na voadeira (pequena embarcação a motor) e caí. Afundei.
Quando estava afundando na água eu lembrei: “os meus pais e meus familiares vão me receber morto. Se um dia puderem, dessa distância, me encontrar.”
Mas de repente eu consegui subir. E aconteceu o milagre que foi o seguinte: o prático, um indígena Yanomami, que também caiu fora da voadeira, não sei se com a mão ou com o pé, ele tirou a mangueira que abastecia o motor. O motor ficou funcionando, mas a voadeira não saiu do lugar porque não tinha combustível.
E tinha um seminarista que estava dormindo na voadeira. Ele não caiu. Quando ele viu que eu subi pedindo socorro, ele me pegou pelos braços e me ajudou a entrar de novo.
E, por incrível que pareça, o Adão, que era nosso prático, ele vinha nadando com uma mão e trazendo um banquinho com a outra. Porque ele era muito baixinho, ele tinha que assentar no banquinho para poder dirigir.
Aí embarcamos sem palavra alguma. E chegamos tarde da noite ao Maiá. Eu achei que eu ia partir para a eternidade.
Malária
Quando eu vim para cá, eu tive muito medo da malária. Quando eu fui para Roraima, em 1999, me disseram: prepare-se para a malária, que é o batismo que a gente recebe quando chega lá.
Eu fiquei 10 anos em Roraima, nenhuma malária. Quando eu vim para São Gabriel, me disseram: agora você não escapa, pois tem malária em todas as aldeias. Eu visitei todas as aldeias e parto daqui sem nenhuma malária.
Línguas indígenas
É a minha limitação. É claro que se aqui fossem faladas apenas uma ou duas línguas, eu teria me dedicado. Mas são 18.
Mas eu me esforcei tanto que, desde as primeiras visitas, quando chegava às aldeias, o prático indígena, ele me ensinava como é que eu devia dizer “bom dia, boa tarde, boa noite, como vai, é uma alegria estar com vocês”.
Ele explicava isso, então aprendi essas poucas palavras em várias línguas. Isso causou um impacto que impressionou. Porque a gente chegava saudando, eles diziam: “mas o bispo mau chegou e já fala a nossa língua.” É claro que na segunda pergunta eu me perdia.
Bento XVI
Quanto eu fui a Roma para a primeira visita ao Papa Bento XVI, que era muito sisudo, conservador inclusive. Eu fui preparado para 15 minutos de conversa.
Eles me disseram: “chegando lá, você vai fazer um pequeno relato da situação da Diocese.” Cheguei, ele me saudou e, para minha surpresa, ele tinha um mapa sobre a mesa. Disse-me: “a sua região é imensa, não tem estradas, você deve gastar muitas horas pelos rios”.
Eu disse que tinha um pequeno relatório, mas ele preferiu conversar.
Primeira pergunta: “o povo daquela região está destruindo muito a floresta?”
Aí foi a minha vez de dizer: “é a região mais preservada da Amazônia porque os habitantes são povos indígenas: 90%. O povo indígena não destrói a floresta. Eles são os guardiões da floresta. Eles são nossos mestres em ecologia. É por isso que se explica que eles não destroem. Eles cuidam da nossa mãe terra, nossa casa comum.”
Ele perguntou: “e os índios se confessam?”
Aí eu disse: “confessam. E tem um detalhe, eles começam a confessar e dizem assim, agora eu vou confessar na minha língua.” O papa perguntou para mim: “você entende todas as línguas?” Respondi: “de que jeito? Eu cheguei lá velho, já com 60 anos, são 18 línguas. Como é que eu vou aprender? Mas Deus Pai, Criador, ele fez todos os povos à sua imagem e semelhança. E é Deus Pai que perdoa, Ele que se entenda com os seus índios.”
Papa Francisco
Em 2015, o Papa Francisco escreveu a encíclica Lovato si´. Uma carta dirigida ao mundo inteiro falando sobre o cuidado com a casa comum, a ecologia, o aquecimento global. A necessidade de mudar completamente esse sistema que ele chama de tecnocrático que está destruindo e colocando em perigo a sobrevivência da humanidade.
Em 2019, surpreende mais ainda, convocando um sínodo especial para a Amazônia. Em 2020, eu participo do Sínodo de Roma. Esse encontro é dedicado ao tema ecologia integral.
Aí eu pude conversar pessoalmente com o papa e entreguei a ele o cálice feito de pau-brasil por um artesão daqui. E ele ficou tão feliz. Ele olhou para mim e disse assim: “hoje faz 75 anos que eu fiz a minha primeira comunhão”.
Depois, eu pude fazer uma outra visita agora em 2021, com todos os 19 bispos da regional Norte. Eu levei um presente em nome de todos os bispos. Ao fim da conversa eu me aproximei, disse: “olha, eu sou da diocese mais indígena. Amazonas é o Estado que concentra a maior população indígena do país e por isso estou lhe oferecendo esse presente que foi confeccionado pelas mulheres indígenas lá de São Gabriel.”
Quando eu coloquei na cabeça dele, ele perguntou: “imagina se apareço na Praça de São Pedro com uma mitra dessa?”
Aprendizado
Uma das coisas que me impressionou foram os povos que vivem em comunidades tão isoladas. Chegávamos às comunidades para visitar as casas com quase nada. Sem móveis. Eu ficava me perguntando. “Como é que eles vivem?”
Então, uma das lições que eu aprendi aqui se chama sobriedade. Os indígenas ensinam a gente a viver com o estritamente necessário.
Para que encher a vida de bugiganga. Quando a gente tem o necessário para viver, a gente é mais feliz do que comprando, consumindo desenfreadamente.
Esse materialismo consumista está destruindo a mãe Terra e gerando pessoas sempre insatisfeitas e infelizes.
Os indígenas me ensinaram a viver com o estritamente necessário e ser feliz.