O sócio fundador e presidente do ISA, Márcio Santilli, analisa as movimentações políticas em Brasília para tentar restringir os direitos indígenas
Artigo publicado original no site do Mídia Ninja, em 19/7/2024
Na semana passada, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, pautou a PEC 48/2023, que pretende alterar o artigo 231 da Constituição para limitar o direito à demarcação das terras aos povos indígenas que estivessem nelas na data da sua promulgação, em 5 de outubro de 1988. Com o chamado “marco temporal”, ficariam destituídos do direito à terra todos os grupos que foram expulsos, ou transferidos à força, antes ou durante a ditadura.
O presidente da CCJ, senador Davi Alcolumbre (União-AP), candidato à presidência do Senado, pautou a PEC para se aproximar da bancada de extrema direita, mas acatou uma sugestão do líder do governo, senador Jaques Wagner (PT-BA), para aguardar os resultados do processo de “conciliação” sobre os direitos territoriais indígenas, promovido pelo STF, por meio do ministro Gilmar Mendes, relator de um pacote de ações judiciais sobre a Lei 14701/23, promulgada pelo Congresso para restringir aqueles direitos.
A intenção da PEC é pressionar o STF a rever decisão anterior, que considerou inconstitucional a fixação do “marco temporal”. Porém, formalmente, a PEC implica o reconhecimento implícito de que esse marco não consta da Constituição, o que contradiz a postura anterior do Congresso de considerá-lo constitucional.
Incoerências
Na discussão na CCJ, o primeiro signatário da PEC, senador Dr. Hiran (PP-RR), defendeu a sua aprovação imediata como uma questão de soberania nacional, citando a demarcação da Terra Indígena Yanomami em área contínua equivalente à extensão de Portugal. No entanto, o caso nada tem a ver com o tal marco temporal, pois os Yanomami vivem nesse território desde sempre.
O relator da PEC, senador Espiridião Amin (PP-SC), tentou minimizar a contradição alegando que o verbo na expressão constitucional “terras tradicionalmente ocupadas” está no presente do indicativo, o que excluiria do direito territorial os indígenas que foram expulsos ou transferidos à força das suas terras. A Constituição não prevê a existência de indígenas sem terra, mas o relator, assim como a própria PEC, nada disse a respeito.
A única linha de coerência entre os defensores da PEC é o desejo de atualizar o esbulho colonial das terras indígenas, que chega ao extremo de ameaçar os demais poderes e a própria Constituição. Eles apontam a incoerência do STF, que teria forjado a tese do “marco temporal” em julgamento sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR). Mas não reconhecem a sua própria incoerência ao afetar direitos reconhecidos aos indígenas pelos também congressistas, na Assembleia Nacional Constituinte.
Ambiguidades
Ao sugerir o adiamento da votação da PEC na CCJ, Wagner informou que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), vai indicá-lo entre os três representantes do Senado que vão compor o grupo convocado por Gilmar Mendes para promover a conciliação. Disse que está disposto a “dar a cara para bater, por ambos os lados”, sinalizando que apoiará posições mediadas, não necessariamente favoráveis aos indígenas. O seu governo, na Bahia, não promoveu soluções efetivas para conflitos entre fazendeiros e o povo indígena Pataxó.
A ambiguidade tem sido a marca desse processo. Ao ser nomeado relator das ações no STF, Mendes disse que via algumas inconstitucionalidades na lei aprovada pelo Congresso, mas não suspendeu a sua vigência, nem mesmo do artigo que trata do “marco temporal”, já definido como inconstitucional em julgamento anterior. Outros ministros parecem inclinados a fazer concessões aos interesses contrariados com a demarcação de terras indígenas, esperando que se reduzam as demandas e as pressões sobre o tribunal.
A ambiguidade também frequenta alguns ministérios do governo federal. O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro (PSD-MT), que também é senador, chegou a se licenciar do cargo para assumir a função parlamentar e votar a favor do “marco temporal”, retornando ao ministério em seguida. Até que o STF decida, o Ministério da Justiça não quer editar portarias com limites de áreas a demarcar e a Casa Civil não quer encaminhar a homologação, por decreto presidencial, de áreas já demarcadas.
Os poderes da República não percebem que o acirramento de conflitos locais e de pressões institucionais deve-se à sua própria incapacidade para concluir a demarcação dessas terras. O Congresso passou 38 anos sem regulamentar a Constituição para, então, produzir uma lei contra ela. O Judiciário, que deveria promover a Justiça, suspende demarcações e lhes impõe a sua habitual morosidade. O Executivo protela decisões e não cria instrumentos apropriados para resolver pendências típicas da etapa final do processo demarcatório.
A conciliação que o STF promove deveria se dar entre os poderes, para enfrentarem, em definitivo, as suas dificuldades para efetivar o mandamento constitucional de demarcar terras indígenas. É óbvio que a culpa pelas pendências nas demarcações e pela persistência de conflitos não é dos povos indígenas. Portanto, a conciliação pretendida não poderia implicar restrições aos seus direitos.