#ElasQueLutam! Coroada na parada LGBTQIA+ do estado, Paola já liderou o maior abrigo indígena da América Latina e tem como referência Joenia Wapichana, presidente da Funai
Atravessar a fronteira era o início de uma nova vida – um “renascimento”, como descreve a nova miss trans da parada LGBTQIA+ de Roraima, Paola Abache, de 23 anos. A indígena da etnia Warao, habitantes do Delta do Rio Orinoco, no Norte da Venezuela, enxergou na imigração a oportunidade de começar sua transição de gênero. Mas a chegada ao Brasil lhe proporcionou ainda mais conquistas: Paola foi escolhida como “cacique” do maior abrigo indígena da América Latina e realizou o sonho de infância de se tornar uma “reina” (rainha, em espanhol).
Coroada em outubro de 2023, quatro anos depois de chegar em Roraima, Paola conta que não conseguiu acreditar quando teve seu nome anunciado pela segunda vez. O primeiro anúncio ocorreu por engano e a colocava em terceiro lugar. Quando teve que voltar a sua posição achou que não daria nem mais um passo à frente, até que os apresentadores do evento disseram que ela era a nova miss trans do estado.
“Eu lembro que fiquei sem reação. Pensava que ia chorar, mas não chorei. Pensava que ia gritar, mas não gritei. Achava que ia pular, mas não pulei. Eu só pensava que não podia acreditar, mesmo com a faixa de miss. Só entendi em casa, onde coloquei a faixa de novo e fiz tudo que achei que iria fazer. Depois, eu só pensava que queria abraçar forte a minha mãe”, relembrou.
A dificuldade para entender que havia alcançado um sonho não era só pelo choque do momento. Paola afirma que teve dificuldades financeiras para passar por todas as etapas do concurso. Além disso, ela lembra que a concorrência não foi fácil.
“Eu olhava para as outras meninas concorrendo, estavam bem vestidas, maquiadas, e eu sentia que iria passar vergonha porque não estava bem produzidas como elas. Também eram muito bonitas, nenhuma era feia. Um amigo me olhou e disse: ‘é a sua noite, brilhe e arrase’, eu acenei com a cabeça e disse: ‘está bem, isso que vou fazer’”, disse.
Ao fim do concurso, Paola se sente realizada e equiparada a Lilith Cairú, indígena Wapichana que também foi coroada miss trans em 2020. Segundo Paola, Lilith se tornou uma inspiração desde a primeira vez que a viu. Então, pediu orientação à ela para se inscrever no concurso deste ano. As duas se conheceram durante a Parada.
Inspirações e aspirações
Lilith Cairú é só uma das três mulheres Wapichana que têm inspirado a indígena Warao em sua jornada pelo Brasil. Mari Wapichana, a primeira a vencer o concurso de miss indígena de Roraima, também é um exemplo que Paola deseja seguir.
No entanto, é a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, que faz Paola suspirar e sonhar com o futuro. Atualmente, ela cursa o ensino médio pela Educação de Jovens e Adultos (EJA) e planeja estudar Direito.
“Quero fazer Direito para poder trabalhar com a defesa dos Direitos Humanos, assim como a Joenia faz. Eu quero ser como ela, quero lutar como ela, porque ela é forte. É lindo ver como ela defende sua comunidade”, afirma.
Além do EJA, Paola também tem se dedicado a aprender a língua portuguesa. Este será o seu terceiro idioma, pois ela se comunica em warao e espanhol. Após quase cinco anos no Brasil, ela diz que hoje já consegue entender os brasileiros.
Renascimento
Em janeiro de 2019, quando tinha 19 anos, Paola decidiu que era hora de ser quem ela sabia que era desde os 6 anos. Ela seguiu o movimento de venezuelanos que, desde 2014, buscam melhores condições de vida em outros países.
“No meu caso, a imigração não foi pela fome ou falta de remédios. Eu imigrei para renascer”, conta a jovem, que chegou em Roraima em janeiro de 2019. Durante os primeiros dois anos, ela viveu em um abrigo no município de Pacaraima.
A fim de dar assistência aos venezuelanos que vivem em Roraima, o governo federal instaurou em 2017 a Operação Acolhida, uma força-tarefa coordenada pelo Exército Brasileiro, que garante abrigos e orientações sobre os trâmites legais no Brasil.
Quando a indígena Warao deixou a comunidade Araguabisi, na Venezuela, a transição ainda não havia iniciado, mas ela já enfrentava problemas para ser aceita, inclusive por parte da própria família. No entanto, ela já estava decidida e, quando iniciou a triagem na fronteira, pediu que seu nome nos documentos brasileiros fosse Paola Abache.
Em Roraima, o namorado já a esperava. Ele havia chegado dois anos antes e os dois mantiveram o relacionamento pelas redes sociais. Também pelos meios virtuais a família de Paola descobriu a transição ao ver suas fotos.
“Minha avó, que me criou, foi a primeira a me aceitar. Eu também fui acolhida por minhas duas tias, irmãs da minha mãe, e duas das minhas primas. Elas me apoiaram muito e minha avó dizia que já sabia que eu seria assim porque me observava desde criança”, contou. Ela disse que hoje sua identidade é aceita pela família.
Após dois anos vivendo em Pacaraima, ela decidiu que era hora de ir para a capital e foi transferida para um dos abrigos de Boa Vista. Quando chegou, o espaço ainda era dividido com não indígenas, mas se tornou um abrigo específico para os Warao em 14 de março de 2022.
O Waraotuma a Tuaranoko (“lugar de repouso até que possa partir para outro” na língua Warao) é o maior abrigo indígena da América Latina, segundo o Alto-Comissariado das Nações Unidas Para Refugiados (Acnur). O espaço já chegou a abrigar quase 2 mil indígenas e também já esteve sob a liderança de Paola Abache.
De acordo com o Censo mais recente da Venezuela, de 2011, a etnia Warao é a segunda mais populosa do país com cerca de 49 mil indígenas. Este povo também é apontado como o grupo humano mais antigo da Venezuela. Relatório do Acnur afirma que em 2014 havia 30 Warao vivendo no Brasil, mas em 2016, quando a crise no país vizinho se agravou, o número saltou para 600 e chegou a 3.300 em 2020.
Na comunidade, na Venezuela, as questões de gênero foram uma barreira entre Paola e seu povo, mas no abrigo sua identidade não foi uma questão. Os próprios indígenas a escolheram como uma cacique para representá-los mesmo sem que ela quisesse aceitar.
Primeiro, ela ocupou o cargo de “suplente” de um dos caciques. No entanto, ele optou pela interiorização, um processo da Operação Acolhida que leva imigrantes venezuelanos para viver em outros estados brasileiros a fim de reduzir os impactos em Roraima. Então, foi necessária uma nova votação para escolher um novo cacique e a comunidade já sabia que queria Paola, mas levou dois dias até que a convencessem a aceitar.
“Já estava como mulher e nunca me passou nada com os indígenas, não sofri preconceito. Ainda assim, eu não quis ser líder de cara, eu fiquei pensando e os outros me convenceram dizendo que eu já tinha experiência e expressava bem as necessidades de todos e que sabia fazer uma boa defesa do meu povo”, contou.
Paola foi cacique por sete meses. Ela dividia a liderança com outros quatro indígenas. “Ser cacique não é fácil. É preciso conhecer a própria comunidade, entender os problemas, atuar nos casos de conflito, ser uma conselheira e, mais do que tudo, precisa saber trabalhar para levar o melhor para comunidade. E, eu tinha medo, porque não saberia ser de outro jeito se não conseguisse ser uma cacique assim”, relembrou.
Após transicionar em um novo país, liderar seus parentes no maior abrigo indígena da América Latina e se tornar miss trans da parada LGBTQIA+ de Roraima, Paola sabe que suas conquistas são fruto de uma luta que precisa se multiplicar. “Para outras mulheres assim como eu, trans e indígena, é preciso trabalhar, lutar e estudar. Se vocês têm sonhos, não desistam e não acreditem nas muitas pessoas que vão tentar fazer com que não consigam realizar seus sonhos!”.