O sócio fundador e presidente do ISA, Márcio Santilli, comenta as implicações políticas do desastre climático enfrentado pelos gaúchos
Artigo pulicado originalmente no site da Mídia Ninja em 22/5/2024
As águas do Guaíba começam a baixar e a enchente atravessa a Lagoa dos Patos, até vencer a resistência da maré alta para desaguar no Atlântico. Vão deixando para trás um rastro brutal de destruição: deslizamentos nas serras e transbordamento dos rios, arrastando pessoas, animais, cultivos, pontes, estradas, cidades e bairros inteiros alcançados pelo caminho até invadirem o centro de Porto Alegre, superando o sistema de diques construído para proteger a cidade desde a última grande cheia, em 1941.
Ainda estão ocorrendo operações de salvamento, desaparecidos estão sendo procurados e havia 162 mortes confirmadas até às 18h desta quarta (22). Há milhares de desabrigados, muitos perderam tudo e não têm para onde voltar. Será preciso esperar as águas baixarem para estimar a extensão exata dos danos, mas é certo que a economia e a população foram profundamente atingidas.
Na virada do ano, outra capital, Manaus, e muitas cidades da Amazônia, ficaram isoladas, sujeitas à desassistência e ao desabastecimento de água, com a seca, também inédita, que afetou a região. As cenas de Manaus encoberta pela fumaça das queimadas, do isolamento das comunidades ribeirinhas e da mortandade massiva de peixes assustaram todo mundo.
SOLIDÁRIOS E INDIGNADOS
Mas a tragédia gaúcha está provocando uma onda maior de engajamento da sociedade do que em eventos anteriores, no sentido da solidariedade e da indignação. Emociona a atitude dos gaúchos e de gente vinda de outros estados ao socorrer, alimentar, vestir e acolher as vítimas. Prefeituras, empresas, igrejas e organizações da sociedade civil promovem campanhas, em centenas de municípios, em várias regiões do país, com apoio ativo da população, para recolher alimentos, roupas, produtos de higiene e remédios e enviá-los ao Rio Grande do Sul. Sem contar a profusão de doações via pix.
Merecem o repúdio geral os oportunistas que agravam a tragédia em benefício próprio, como os que montam esquemas para desviar doações em dinheiro ou mantimentos, ou que retêm produtos essenciais para aumentar preços. Piores ainda são os que espalham notícias falsas para ampliar o caos, esperando colher benefícios políticos para grupos extremistas.
O que mais irrita é a ausência de providências dos governos para prevenir mortes e danos, diante dos recorrentes eventos extremos em várias regiões do país. Não dá para dizer que não se sabia, pois o agravamento da crise climática vem de longe. Trata-se de tragédia anunciada, de omissão, negligência ou conivência.
RESPONSABILIDADES
O governador gaúcho, Eduardo Leite (PSDB), queixa-se que “não é hora de apontar culpados”. Todo mundo concorda que nada é mais urgente do que socorrer as vítimas. Mas passou a hora de corrigir erros e começar a construir soluções. Sebastião Melo (MDB), prefeito de Porto Alegre e candidato à reeleição, não executou os recursos que constam no orçamento deste ano para a prevenção de desastres. O investimento zero denota ausência de políticas de prevenção.
A deterioração dos solos e da proteção ambiental no Rio Grande do Sul antecede os mandatos de Leite. O próprio Guaíba, que sempre havia sido um rio, foi reclassificado como lago, nos anos 90, para reduzir a largura da mata ciliar legalmente protegida. Fatores climáticos contribuíram para que muitos gaúchos comprassem terras e mudassem para outros estados, contribuindo para descapitalizar o Rio Grande.
O governador, no entanto, persiste e agrava a deterioração. No início do primeiro mandato, sancionou a piora de centenas de disposições legais de proteção ambiental. Não fortaleceu a Defesa Civil, apesar da recorrência das enchentes. Ele fala em um “Plano Marshall” para reconstruir o Rio Grande, a começar pela implantação de quatro “cidades provisórias” que, segundo ele, poderiam ser feitas em pouco tempo. Já Sebastião Melo, em final de mandato e de orçamento, quer contratar uma empresa americana para projetar uma “nova Porto Alegre”.
CACOFONIA FEDERAL
A onda de indignação chegou ao Congresso, despertando a atenção de muita gente para o que andam fazendo deputados e senadores. Saiu da bolha a informação sobre o “Pacote da Destruição”, quase trinta projetos de lei e de emendas à Constituição propostos pelos ruralistas e que pretendem fragilizar ainda mais a proteção ambiental. Estão entre as propostas fragilizar o licenciamento ambiental, reduzir a extensão das Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais e desproteger a vegetação nativa não florestal, entre outras.
Também vieram à tona posições já assumidas por deputados gaúchos que negam a evidente crise climática. A bancada espera a chuva passar para retomar a ofensiva à legislação socioambiental.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sentiu a pressão e apressou a aprovação, com emendas, de um projeto de lei originário da Câmara para instituir os planos municipais, estaduais e federal de adaptação à mudança do clima. A Câmara precisa decidir sobre as emendas do Senado e espera-se igual presteza do seu presidente, Arthur Lira (PP-AL). Essa lei não cria instrumentos coercitivos e não dispõe sobre os recursos necessários para implantar esses planos, mas fortalece iniciativas em curso e estimula outras, além de qualificar e qualificar o debate sobre adaptação na campanha eleitoral que se inicia.
Já a extrema direita boicota ativamente as medidas federais, investe na disseminação de informações falsas e na política do “quanto pior, melhor”. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) foi o único voto contrário à lei dos planos de adaptação. Seus irmãos, Eduardo e Carlos, deputado federal e vereador, estiveram pessoalmente no Rio Grande para promover a radicalização política e insuflar o boicote ao governo federal.
O presidente Lula já foi três vezes ao Rio Grande desde o início da crise climática, acompanhado de vários ministros, para prestar solidariedade às vítimas, tomar pé da grave situação e anunciar medidas, como o envio de efetivos e de equipamentos e a liberação de recursos emergenciais. Porém, como ocorre em outras situações críticas, as ações federais são mal articuladas, o que irrita Lula.
O governo federal está fazendo a lição de casa ao reduzir o desmatamento na Amazônia e assumir o seu protagonismo na política climática mundial. A COP-30, reunião da ONU sobre o tema, será realizada em Belém, Pará, no final de 2025, e o Brasil deve chegar lá com emissões em redução e condições de cobrar dos demais emissores globais o cumprimento das suas metas. Porém, novas frentes de produção de petróleo estão sendo abertas, inclusive na Amazônia, e o “Pacote da Destruição” nos ameaça. O país está muito atrasado na adaptação climática.
HORA DE SOLUÇÕES
Eduardo Leite está incomodado com as iniciativas do governo federal que, por sua vez, o considera ingrato. Ele sempre acha pouco e pede mais. Mas Lula também maculou a relação ao criar um ministério extraordinário para cuidar da reconstrução do Rio Grande e nomear, para chefiá-lo, o deputado federal gaúcho Paulo Pimenta (PT), até então ministro das Comunicações, tido como futuro candidato petista ao governo estadual. Leite acusa Lula de organizar um governo paralelo.
A criação de um ministério é controversa, pois os recursos e as competências para reagir à emergência e reconstruir o estado estão em outros ministérios e a articulação entre eles deveria ser garantida pela Casa Civil. Na eventualidade de novas crises, em outros estados, seriam criados outros ministérios? Paulo Pimenta é um grande quadro político, mas não é uma autoridade climática e não dispõe do reconhecimento das demais forças políticas para poder realizar essa missão.
Leite também exagera no direito de errar. Não acha que seja hora de reconhecer os seus erros passados, mas chegou a reclamar das doações de mantimentos, alegando que elas poderiam prejudicar o comércio local. Porém, ele sabe que a produção estadual foi duramente impactada e que a população está sujeita à extorsão com a inflação de preços, num momento de extrema necessidade. Leite não compreende e desmobiliza o abraço do Brasil ao seu estado.
Espera-se que Lula e Leite (governos federal e estadual), numa hora dessas, superem-se e se entendam. São líderes muito importantes, mas o desafio é muito maior do que eles e do que todos nós. A demora e o desperdício de energia política ocorrem contra nós. E aí estão os extremistas, criminosos, ávidos para destruir Lula, Leite, as políticas públicas e a democracia. Espera-se que eles tenham a humildade e a grandeza de rever erros e de voltar atrás. Devem unir suas forças para enfrentar esta e outras crises climáticas que virão.