Ministro do STF defende mudanças profundas na legislação baseado em “conciliação” sobre marco temporal. Apib diz que iniciativa é “nova Constituinte indígena”
Texto atualizado em 21/02/2025 às 15:58.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes apresentou, nesta segunda (17/02), uma minuta de projeto de lei que prevê alterações drásticas na legislação sobre os direitos indígenas. A ideia inicial é encaminhar a proposta ao Congresso.
O anteprojeto, isto é, o texto preliminar destinado a basear um projeto de lei abre as Terras Indígenas (TIs) à mineração e a outras atividades econômicas impactantes, como a construção de estradas e hidrelétricas. De acordo com a proposta, os povos originários seriam consultados, mas não teriam o direito de vetar os empreendimentos. Na prática, o Legislativo teria o poder de permiti-los ou não, mesmo sem o aval dessas populações.
A Constituição prevê que a exploração econômica dessas áreas por não indígenas pode ser regulamentada pelo Legislativo, mas isso não foi feito até hoje pela falta de consenso sobre o assunto. Daí a proibição a essas obras e atividades ainda em vigor nesses territórios.
A proposta também cria novos obstáculos às demarcações, com possibilidades adicionais de contestação e a formalização da participação de novos atores nos processos. Muitos desses procedimentos já levam décadas para ser concluídos. Se as mudanças forem aprovadas, o problema será agravado e tende a inviabilizar grande parte deles (saiba mais abaixo).

'Marco temporal'
O texto sistematiza os trabalhos da comissão de conciliação criada por Mendes no âmbito das ações sob sua relatoria que contestam a Lei 14.701. A norma prevê uma série de retrocessos aos direitos indígenas, como o chamado “marco temporal” das demarcações, e foi aprovada em reação à decisão do STF que o considerou inconstitucional, num dos capítulos mais tensos do conflito entre o Congresso e a Corte, em 2023.
O marco temporal é uma interpretação ruralista pela qual só teriam direito às suas terras os povos originários que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A tese ignora as expulsões e violências cometidas contra essas populações. Na prática, também pode inviabilizar as demarcações.
O anteprojeto de Mendes foi discutido na audiência da comissão de conciliação realizada nesta segunda. A previsão inicial é que seja votado nas próximas duas semanas. Depois, será encaminhado ao plenário do Supremo e, se for aprovado, será enviado ao Congresso.
O futuro dos debates é incerto, no entanto. Ao final da audiência, a perspectiva de a comissão construir consensos era remota, com uma quantidade enorme de dispositivos do projeto destacados para votação em separado, por causa das divergências. O governo solicitou a Mendes a prorrogação dos debates.
Reservadamente, o representante de um dos partidos autores das ações disse à reportagem que, diante das dificuldades, pode ser que Mendes seja obrigado a cancelar o plano de votar um texto final consensual e só apresente aos demais ministros do STF um compilado de propostas e posicionamentos.
Ação atípica
A apresentação de anteprojetos de lei pelo STF é atípica. A função do tribunal é, entre outras, interpretar a legislação para garantir o cumprimento da Constituição. Essa atuação se dá de forma reativa, ou seja, somente quando a Corte é provocada por meio de ações judiciais.
“O STF está disposto a ser a casa iniciadora do que pode ser tornar a aprovação do maior retrocesso nos direitos dos povos indígenas desde a Constituição de 1988?", questiona o consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA) Mauricio Guetta.
“Uma eventual proposta de autoria do STF comprometeria a sua principal função, a de analisar a constitucionalidade de leis e garantir a proteção de direitos fundamentais. Jamais poderia ser papel da Corte oferecer projeto de lei negociando direitos indígenas", avalia.

'Constituinte do STF'
“A câmara de conciliação (...) insiste em atender os interesses do agronegócio e violar os direitos indígenas e promover a destruição ambiental”, disse a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em nota.
O coordenador jurídico da entidade, Maurício Terena, avalia que a proposta de Mendes é “muito perigosa para a proteção dos direitos territoriais indígenas e da política indigenista como um todo”. Ele diz que, em face da abrangência das mudanças previstas na legislação, o texto pode ser considerado uma “nova constituinte do capítulo dos índios, mas feita pela Suprema Corte”.
“[O anteprojeto] abre margem [nas demarcações] para vários questionamentos de terceiros, inclusive por entidades de classe do agronegócio. Então, basicamente, inviabiliza a competência de demarcar TI, que é um dever constitucional”, continua.
Terena acrescenta que é uma contradição discutir um projeto de lei que coloca em risco os territórios indígenas, responsáveis por proteger grandes extensões de floresta, quando a agenda das mudanças climáticas ganha mais importância e o país vai sediar a 30ª Conferência da ONU sobre o assunto, a COP 30, em novembro, em Belém (PA).
Pela manhã, na primeira parte da audiência da comissão de conciliação desta segunda, a deputada indígena Célia Xakriabá (PSOL-MG) retirou-se sob protesto, por ter sido impedida de se sentar à mesa. “Quero dizer que, para mim, é um desrespeito, inclusive da proposta que foi apresentada”, criticou. Como suplente dos representantes do Congresso, a parlamentar vinha participando ativamente dos trabalhos desde o seu início, com direito a voz.
Na semana passada, com a perspectiva do fim dos trabalhos na comissão e da votação de uma proposta final, a deputada bolsonarista Sílvia Nobre (PL-AP) foi indicada como representante titular do Congresso por decisão do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB).
Em nota, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) reafirmou a posição contrária à mineração em TIs e destacou que a inserção do tema na minuta foi recebida com surpresa, uma vez que o assunto não foi debatido durante a mesa de conciliação. “O texto apresentado não expõe consensos em relação aos tópicos e traz preocupantes inserções, que distanciam ainda mais os indígenas de seus legítimos interesses”, diz a nota.

Entenda os principais pontos do anteprojeto de lei
1) Por que e como a proposta foi elaborada?
Em abril do ano passado, o ministro Gilmar Mendes suspendeu os processos em instâncias inferiores relacionados à Lei do marco temporal (14.701/2023). Na qualidade de relator de quatro ações contra a norma, também convocou uma “conciliação” sobre ela. Esse instrumento tem sido usado pelo Judiciário para se antecipar e evitar disputas judiciais longas.
Mendes convidou para participar do processo os autores das ações, entre eles a Apib e partidos, além de representantes do Congresso, do governo, Procuradoria-Geral da União, Estados, municípios e grandes produtores rurais.
Em agosto, logo na segunda audiência da comissão, a Apib retirou-se das discussões, justificando não ter sido informada previamente de que as decisões seriam tomadas por maioria, inclusive a votação de um documento final com o resultado do trabalho. Pela composição do colegiado, os indígenas ficaram em desvantagem numérica, com apenas seis representantes, num total de 24.
Mendes decidiu que os trabalhos continuariam e, contra a posição da Apib, determinou que o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) indicasse novos representantes dos povos originários.
O ministro deixou claro que o STF não voltaria atrás em sua decisão de considerar inconstitucional o marco temporal e que os debates deveriam focar no detalhamento das regras para a exploração econômica dos territórios indígenas e para indenização de proprietários rurais que tivessem títulos legítimos nessas áreas, outra inovação prevista nessa mesma decisão.
Em resumo, ao longo de seis meses, representantes de ruralistas, de estados e municípios apresentaram propostas para restringir os direitos indígenas, ao passo que governo federal e Ministério Público buscaram contrapô-las.
2) Em resumo, quais as principais mudanças nos direitos indígenas propostas no anteprojeto de lei?
A proposta prevê um conjunto de mudanças profundas da legislação sobre os direitos indígenas, envolvendo temas como demarcação, consulta, gestão territorial, proteção e exploração econômica das TIs. Uma das principais alterações diz respeito à regulamentação da mineração, da construção de hidrelétricas, estradas, redes de transmissão de energia e comunicação, entre outras obras de infraestrutura e empreendimentos econômicos nessas áreas. O anteprojeto também estabelece um novo procedimento administrativo de reconhecimento dos territórios, substituindo as regras do Decreto 1.775/1996.
3) Por que a mineração em TI foi incluída na proposta, se ela não é alvo da lei do marco temporal?
A mineração nas TI não é regulada pela Lei 14.701 e não foi discutida na comissão de conciliação ao longo de mais de seis meses. O assunto foi incluído na proposta de Mendes, de última hora, porque uma outra ação sobre o tema foi reunida àquelas que contestam o marco temporal, sob a mesma relatoria do ministro.
Proposta pelo PP, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) pede que o STF determine prazo ao Congresso para aprovar uma lei regulamentando a matéria.
O parágrafo 6º do Artigo 231 da Constituição, que trata dos direitos indígenas, diz que a exploração dos recursos naturais nas TI deve acontecer de acordo com o “relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar”. Foi essa a legislação que nunca foi aprovada pelo Congresso por falta de consenso. Dependendo de como for feita, a regulamentação vai facilitar e acelerar empreendimentos econômicos de grande impacto socioambiental nos territórios indígenas, reduzindo as restrições legais de hoje.
Juristas, representantes do movimento indígena, de organizações da sociedade civil, do governo e dos partidos autores das ações contra o marco temporal argumentam que Mendes deveria ter se limitado a tratar só desse tema, e que a competência para propor uma lei específica de regulamentação da mineração nas TIs é do Congresso.
“A ADO busca tratar única e exclusivamente de quais são os atos de ‘relevante interesse público da União’. Ponto”, argumenta Paulo Guimarães, advogado do PCdoB em uma das ações.
Guimarães acrescenta que o texto traz uma série de inovações controversas que precisariam ser discutidas com profundidade. Avalia ainda que ele é praticamente uma cópia do Projeto de Lei 191/2020, o mais radical que já tramitou no Congresso sobre o tema. A proposta foi apresentada pelo então presidente Bolsonaro e teve sua tramitação suspensa, em 2023, a pedido do presidente Lula.
4) O que diz o anteprojeto em relação à mineração em TI?
A minuta estabelece uma série de princípios e regras sobre a mineração em TIs. Atribui ao Poder Executivo a função de dar início ao processo formal de pesquisa e exploração e de indicar quais TIs "homologadas" (com processo de reconhecimento concluído) poderão ser exploradas.
Segundo a Constituição, após a regulamentação do tema por lei, a mineração em TIs deve se autorizada pelo Congresso, "ouvidas as comunidades afetadas". Apesar disso, o anteprojeto não garante a elas a possibilidade de veto aos empreendimentos. Na prática, portanto, o Legislativo teria o poder de liberá-los, mesmo sem o aval dessas populações. Manifestações contrárias dos indígenas apenas seriam anexadas aos processos.
A proposta também estabelece um prazo de cinco anos para exploração e a indenização aos indígenas, e apenas por meio da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM).
O texto lista atividades consideradas de “relevante interesse público da União”, como a exploração de "minerais estratégicos" e infraestrutura essencial de energia elétrica e transporte. Entram, ainda, na relação, situações de segurança nacional e proteção sanitária. A definição de "minerais estratégicos" é permeada mais por interesses de mercado do que o interesse público, como estabelecido no artigo 231 da Constituição.
Hoje, as definições do Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos, responsável por indicar quais são esses minérios, não levam em conta, por exemplo, a disponibilidade territorial das reservas minerais. Mesmo que um mineral tenha caráter estratégico ou relevante, é injustificável sua exploração em TI, se há outras áreas disponíveis para exploração.
5) Quais as mudanças previstas no processo de demarcação das TI?
O texto detalha novos prazos e etapas nos processos de demarcação, inclusive para contestação, e formaliza a participação específica de novos atores, como Estados e municípios. Cada um deles poderia indicar técnicos para acompanhar os estudos e seria informado previamente sobre reivindicações de TI. É previsto o prazo de 30 dias após a publicação da identificação da TI no Diário Oficial da União para contestações. Além disso, associações de produtores rurais poderiam ingressar no procedimento a qualquer momento. Se forem convertidas em lei, essas propostas tendem a inviabilizar demarcações que hoje já podem durar décadas.
O anteprojeto também trata das indenizações a produtores rurais com títulos legítimos sobrepostos às TIs, uma inovação trazida na mesma decisão do STF que considerou inconstitucional o marco temporal. Diferentemente dessa determinação, no entanto, a proposta de Mendes diz que o proprietário pode permanecer no imóvel até receber sua compensação, postergando o acesso das comunidades às suas terras.
6) Como será o encaminhamento do anteprojeto de lei agora?
A previsão inicial é que a proposta fosse votada no próximo dia 24, mas o juiz auxiliar que coordena os trabalhos de conciliação, Diego Viegas Veras, já avisou que eles podem se estender até o dia 27. Depois da sua aprovação, o texto será encaminhado ao plenário do Supremo e, se for aprovado, será enviado ao Congresso.
O futuro dos debates é incerto, no entanto. Ao final da audiência desta segunda, a perspectiva de a comissão construir consensos era remota, com uma quantidade enorme de dispositivos do anteprojeto destacados para votação em separado, por causa das divergências. O governo solicitou a Mendes a prorrogação dos debates.