Apib reforça que ações sobre tese ruralista que restringe demarcações devem retornar ao plenário do Supremo e que declaração de inconstitucionalidade deve ser respeitada
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) retirou-se da comissão de “conciliação” sobre o “marco temporal” das demarcações instituída pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes (leia mais abaixo).
Depois de lerem uma carta anunciando e justificando a decisão, cinco integrantes da entidade nacional representativa dos povos originários levantaram-se e saíram do auditório do tribunal onde ocorria a segunda audiência do colegiado, nesta quarta (28). Cerca de 50 lideranças que acompanhavam o evento fizeram o mesmo.
Os indígenas afirmam que os objetivos e as regras dos trabalhos até agora não foram explicitados de forma clara e transparente. “Não havia nitidez sobre o que se estaria a conciliar, quais seriam os pontos em discussão e o que poderia ser concretamente alterado no sistema de proteção dos direitos indígenas que foram garantidos aos povos indígenas pelo Constituinte originário de 1988”, aponta a carta.
Até o início da primeira audiência, no dia 5, não foi feita nenhuma comunicação formal mais detalhada sobre o assunto. Só então, os indígenas ficaram sabendo que a comissão poderia tomar decisões por maioria, por meio de votação. O colegiado tem 24 integrantes e a Apib, apenas seis ‒ o que implica uma desvantagem numérica óbvia em qualquer deliberação. Membros de outros setores e organizações podem participar apenas como observadores.
Ainda na primeira audiência, a Apib foi informada de que, se optasse por sair do processo, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) poderiam consultar as comunidades em seu lugar. O juiz auxiliar indicado por Mendes para conduzir as atividades, Diego Viegas Veras, afirmou que, nesse caso, elas continuariam sem “problema algum”. Nesta quarta, ele salientou que essa era uma ordem do ministro do STF. Em seguida, parlamentares ruralistas e representantes de produtores rurais sugeriram substituir a Apib por outras organizações indígenas locais e menos representativas.
Já do lado de fora da Corte, numa coletiva de imprensa, o advogado da Apib Maurício Terena lembrou que Mendes ainda não respondeu a uma série de pedidos e recursos apresentados pela entidade, inclusive para que as regras de funcionamento da comissão fossem menos desfavoráveis e para que a lei em vigor sobre o “marco temporal" seja suspensa.
“Essa conciliação feita a partir de hoje sem a presença dos indígenas, sem uma das partes autora da ação, é ilegítima”, sentenciou. “O direito brasileiro assim prevê: que a autonomia, a vontade das partes deve ser respeitada e, assim que uma das partes sai do processo, essa conciliação precisa ser suspensa e a discussão deve voltar ao plenário do Supremo”, completou. Terena acrescentou que a eventual substituição da Apib na câmara seria uma "medida jurídica incabível", já que a entidade é coautora de uma das ações que a originou (leia mais abaixo).
Carta
“Neste cenário, a Apib não encontra ambiente para prosseguir na mesa de conciliação. Não há garantias de proteção suficiente, pressupostos sólidos de não retrocessos e, tampouco, garantia de um acordo que resguarde a autonomia da vontade dos povos indígenas”, diz a carta da entidade.
O texto critica o que os indígenas consideraram como uma série de pressões, atitudes discriminatórias e violações aos seus direitos ocorridas na primeira audiência. O documento destaca que foram impostas condições “inaceitáveis” e “até humilhantes” para a participação dos representantes dos povos originários nos trabalhos. Veras chegou a reproduzir um áudio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), lembrando que há um acordo “entre os poderes” para que o projeto que inclui o “marco temporal” na Constituição não avance na Casa até o fim da “conciliação” no STF. O gesto do juiz foi visto pelos indígenas como uma ameaça: ou aceitariam participar do colegiado, nas condições definidas por Mendes, ou sofreriam mais uma derrota no Congresso.
Em julho, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), propôs o entendimento na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) tramita, com a expectativa de que a câmara instalada no Supremo resolvesse a disputa em torno do “marco temporal” antes da votação do projeto no Congresso.
Nesta quarta, deixando de lado que a imensa maioria das vítimas por conflitos de terra sempre foi e é de indígenas, o Veras repetiu que quem se retirasse da "conciliação" seria responsável pela “espiral de violência no campo”.
“[É inadmissível sermos] submetidos a um processo de conciliação fora da lei, com esse nível de pressão, chantagem e preconceito”, contrapõe a carta da Apib. Apesar da decisão tomada nesta quarta, no documento a entidade afirma estar “à disposição para sentar à mesa em um ambiente em que os acordos possam ser cumpridos com respeito à livre determinação dos povos indígenas”.
'Marco temporal' e 'conciliação'
O “marco temporal” é uma interpretação ruralista, segundo a qual só teriam direito às suas terras as comunidades originárias que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A tese ignora as expulsões e violências cometidas contra essas populações, em especial nas últimas décadas. Na prática, pode inviabilizar as demarcações, por questionamentos administrativos ou judiciais.
Mendes instituiu a “conciliação” quando decidiu suspender os processos de instância inferiores relacionados à Lei 14.701/2023, que prevê o “marco temporal”, a possibilidade da realização de grandes empreendimentos econômicos, sem consulta prévia às comunidades, e de arrendamento nas Terras Indígenas (TIs), entre outras restrições aos direitos dos povos originários.
O ministro tomou a decisão como relator de ações sobre a lei ‒ a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7582, 7583 e 7586 ‒ além da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 86), que trata da regulamentação do parágrafo 6º do Artigo 231 da Constituição, sobre a posse e a exploração das TIs.
As ações foram apresentadas, desde o final do ano passado, pela Apib e partidos de esquerda (PT, PCdoB, PV, PSOL, Rede e PDT), questionando a constitucionalidade da norma, além do PP, PL e Republicanos, que a defendem. O ISA é amicus curiae (“amigo da corte”) nas três ADIs (ou seja, pode apresentar informações e argumentos nos processos).
A Lei 14.701 foi promulgada após o Congresso derrubar, em dezembro de 2023, quase todos os vetos do presidente Luís Inácio Lula da Silva ao texto original. Sua aprovação desafiou a decisão do STF, de meses antes, que declarou inconstitucional o “marco temporal” por 9 votos contra 2. Na mesma decisão, os ministros da corte fixaram teses complementares sobre o assunto, a exemplo da possibilidade de indenização de ocupantes não indígenas de TIs com títulos de terra legítimos.
Recados de Gilmar Mendes
A saída dos representantes indígenas acabou alterando a programação da audiência no STF desta quarta. A ideia original era comparar e analisar pontos da lei e das decisões do tribunal, mas a discussão acabou concentrando-se nos possíveis impactos e encaminhamentos que deveriam ser tomados a partir daí.
Veras decidiu que não haveria nenhuma deliberação mas ignorou os pedidos para que a audiência fosse suspensa para que a situação fosse melhor avaliada e o diálogo com a Apib fosse retomado. As solicitações foram feitas pela deputada indígena Célia Xakriabá (PSOL-MG), representantes do MPI, da Funai e dos partidos coautores das ações.
Por meio do juiz auxiliar, Gilmar Mendes deu vários recados e sinalizou qual deve ser o rumo das conversas em sua perspectiva. Segundo o ministro, o objetivo da comissão tem de ser a discussão de como resolver “problemas concretos” relacionados às demarcações, entre eles a definição de prazos para realizá-las, de procedimentos para retirar os invasores das TIs e formas de viabilizar as indenizações para os produtores rurais. Esta última possibilidade está prevista tanto na decisão do Supremo do ano passado quanto na nova lei.
Desde o início da audiência, Veras repetiu que a questão do “marco temporal” estaria “ultrapassada”, até ser mais claro ao afirmar que, segundo Mendes, “não há espaço para retroceder” em relação à posição do Supremo sobre o assunto. Daí a necessidade de tratar dos outros temas. “O ‘marco temporal’ não vai resolver os conflitos”, apontou o juiz auxiliar.
"Infelizmente, a impressão que ficou ao final da audiência, o que ficou subentendido é a ideia de substituir o ‘marco temporal’ por outras propostas igualmente inconstitucionais, como remover comunidades de seus territórios. Isso não pode acontecer", aponta a advogada do ISA Juliana de Paula Batista.
Representantes do Ministério Público Federal (MPF), da Funai e dos partidos de esquerda insistiram que a Lei 14.701 está acirrando os conflitos de terra e inviabilizando as demarcações. Os técnicos dos órgãos públicos reforçaram os pedidos para que Gilmar Mendes suspenda a vigência da legislação. O Ministério da Justiça têm paralisado e retornado à Funai os processos demarcatórios com a justificativa de que o imbróglio jurídico ainda não foi resolvido.
“É importante dizer que a indefinição por parte da Corte para levar a questão para o plenário e reafirmar a sua decisão [anterior] tende a manter esses conflitos acontecendo. É por isso que a gente também decidiu sair da mesa, porque entendemos que ela só vai protelar mais as discussões”, salientou Mauricio Terena. Ele disse confiar que o plenário do STF irá referendar a posição assumida no passado.
Veras reforçou que as propostas da comissão ainda serão analisadas pelo conjunto dos ministros da Corte. Também afirmou que a comissão irá propor soluções com a vigência da lei e, se não for possível, encaminhar sugestões de mudança da norma ao Congresso.
“O resultado da comissão não representará a posição do STF. O que se fará aqui é uma proposta de encaminhamento. Estão confundindo o processo”, defendeu. Ele confirmou as novas audiências para os dias 9 e 23/9. No próximo encontro, os participantes deverão apresentar sugestões de nomes de especialistas que serão ouvidos no evento seguinte. A princípio, o calendário de atividades vai até 18/12.