Anfitrião, Incra reconhece que lentidão reflete o racismo institucional e promete trabalhar por celeridade nos processos de titulação

Denúncias de violência e negligência por parte do setor público, ameaças das mais diversas naturezas, morosidade burocrática, racismo institucional e racismo ambiental são apenas alguns dos assuntos abordados durante a Retomada da Mesa Permanente de Regularização Fundiária Quilombola de São Paulo pela Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Desativada no estado há cerca de oito anos, a Mesa reúne diversos atores públicos, nos âmbitos federal e estadual que, de alguma forma, assumem responsabilidade social e têm obrigação jurídica de atuação junto às comunidades quilombolas, seja no que se refere à questão socioambiental, agrária ou de quaisquer outras frentes.
Interrompida no último ano do Governo Dilma, em meio ao caos institucional provocado durante a pavimentação do Golpe que a removeu da Presidência da República, a retomada da Mesa Quilombola, como é chamada extraoficialmente, tem sido uma forte reivindicação das lideranças quilombolas do Estado de São Paulo, que compareceram em peso à reunião, tornando pequeno o auditório do Incra na capital paulista.
“Essa retomada é fundamental para que a gente possa articular esforços e cooperar para a regularização fundiária quilombola”, reforça a advogada Rafaela Miranda, jovem liderança do Quilombo Porto Velho, localizado no município de Iporanga, que na ocasião representou a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), da qual é assessora jurídica.
Regularização Fundiária Quilombola
Embora diversas questões burocráticas tenham sido levantadas pelas lideranças enquanto demandas urgentes para as comunidades, como a dificuldade para o licenciamento de roças ou mesmo os atrasos e outros problemas nas emissões do Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF), as dificuldades em torno da Regularização Fundiária Quilombola em São Paulo dominaram a pauta.
Os relatos se deram no sentido de enfatizar como a morosidade das instituições públicas nos processos de titulação, que têm levado décadas para se concluir, abre espaço para episódios de ameaças e violências praticadas por grileiros que ocupam ou especulam terra em territórios em processo de Identificação e Delimitação; e como a falta de documentação dificulta o acesso das comunidades a políticas públicas que, embora sejam destinadas aos quilombolas, exigem papéis e documentos que, em geral, eles têm dificuldade para obter.
Leia parte dos depoimentos das lideranças quilombolas ao longo da reportagem:
"Fico feliz de estarmos aqui. A gente espera que esta mesa continue por quatro, oito, dez anos. Que a gente não tenha aquele corte que tivemos nos últimos anos, com um desmanche de tudo o que foi construído com a força do nosso povo. Trabalhamos muito para construir muitas das demandas que aqui estão. Por isso, esse retrocesso a gente desmonta com força de vontade e com união. Ali na nossa comunidade as maiores ameaças são por mineração e por Pequenas Centrais Hidrelétricas. E a demora na titulação influencia bastante nestas questões. Eu trago isso aqui porque está saindo uma ponte, iniciada no governo Bolsonaro, que liga Itaóca ao Paranã. E eu acredito que isso vai aumentar muito o assédio das mineradoras."
"A luta dos Quilombos não para. Ela é no dia a dia. Todos temos a necessidade da segurança da titulação das nossas terras. Nossos antepassados viveram sem título, mas não tinha tanto conflito como tem agora. Hoje, para termos segurança, dependemos muito deste título. A nossa comunidade vem sofrendo afrontas por contas de terceiros que estão sendo indenizados por estes dias. Eles vêm ameaçando a Associação. Eles entraram numa área pequena, mas já formaram uma área maior. E nossas comunidades sofrem muito com isso e com os grandes fazendeiros de bananas que usam muito agrotóxico e trazem doenças para as populações quilombolas."
"Recebi e recebo muitas ameaças de terceiros. Me ligam e falam: “a senhora fica na tua! Se liga! A senhora vai ver o que vai acontecer com a senhora.” Os terceiros oprimem as lideranças das comunidades, mesmo depois de serem notificados para deixarem nossas terras. Tivemos o caso da Dona Bernadete. Na minha comunidade isso já aconteceu também e ninguém fez nada. Foi enterrado e pronto. Queremos ficar livres. Não ficar com a terra titulada e continuar sendo oprimidos."
"Precisamos levar eletricidade para as comunidades. Algumas casas têm luz e outras não. As pessoas que compraram por ali recentemente conseguiram colocar energia elétrica. Só os quilombolas que não conseguem. Fomos até a Prefeitura, levamos toda a documentação que precisava, o reconhecimento da Associação, mas eles pedem um número que só o Incra pode nos fornecer."
"O Quilombo, a partir da titulação, tem dono. O quilombo é um território que não é particular, mas é de posse coletiva da comunidade. Está protegido por lei federal. Nós temos ciúmes dos mananciais, porque somos nós que preservamos. Como uma mineradora vai chegar e explorar no nosso território?!"
Um dos representantes estaduais da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Neimar Lourenço destacou a importância da Mesa e avaliou como uma “conquista” sua retomada pelos quilombolas. “Esta Mesa é nossa. A gente está dentro do prédio do Incra que estava fechado para nós há muitos anos. Estar aqui agora é muito importante. A força de vocês é o que move tudo isso. A gente está aqui para ser o fogo da chaleira que vai fazer isso ferver e a gente conseguir nossas titulações.”
A representatividade da presença maciça de quilombolas na retomada da Mesa também foi destacada pela Superintendente Regional do Incra em São Paulo, Sabrina Diniz. “A presença das comunidades é o principal. A Mesa Quilombola existe justamente para garantir que as comunidades quilombolas acompanhem seus processos de titulação, para que possam pressionar e apontar quais são os problemas que a gente está enfrentando no avanço deste processo de titulação.”
A superintendente ainda reforçou como o diálogo entre governos federal e estadual é fundamental, já que depende dos dois a titulação dos quilombos.

Presente representando o Governo Estadual, a assessora especial para Quilombos e outras Comunidades Tradicionais da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), Andrea João, se manifestou no sentido de ressaltar os resultados que podem advir de um trabalho conjunto. “Nós sabemos desta necessidade para promover a legitimação das terras quilombolas no Estado de São Paulo. Espero que nosso trabalho se desenvolva e que a gente consiga avançar.” Fala que foi corroborada pela representante do Núcleo de Regularização Fundiária da Fundação Florestal, Maria Aparecida Salles Resende. “Apesar de muita coisa lenta que a gente gostaria que fosse mais acelerada, houve avanços, principalmente depois que passamos a trabalhar junto ao Itesp.”
As declarações do Itesp, no entanto, ainda reverberaram o mal-estar generalizado causado pelo pouco comprometimento da instituição na ocasião do encontro realizado em junho deste ano, durante a apresentação das pautas das comunidades quilombolas de São Paulo ao Itesp, agora vinculado à Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo.
Com uma legislação própria para a titulação de territórios quilombolas desde 1999, as lideranças recordaram que o estado titulou, parcialmente, apenas seis comunidades e mantém outras 36, oficialmente reconhecidas, na fila para garantia do direito à terra, sem devolutivas acerca do desenrolar do processo de cada uma delas.
Na avaliação do coordenador do Programa Vale do Ribeira, do Instituto Socioambiental (ISA), Frederico Viegas, a Mesa é um momento muito importante exatamente para a retomada de diálogos. “O Incra é o órgão de referência para a titulação dos territórios quilombolas, apesar do Estado de São Paulo ter um órgão que faz uma parte da titulação das terras públicas estaduais. E ele também tem um papel na assistência técnica a nível federal. Então, essa Mesa é o lugar onde essas comunidades podem falar e alinhar o que pode ser feito. Essa retomada recoloca o espaço de participação social no âmbito das políticas de Estado.”
Governo Federal reforça ação por política quilombola

Durante a plenária, a Mesa Quilombola recebeu a visita do Ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), Paulo Teixeira, que na ocasião reforçou o protagonismo da pauta que vem sendo articulada pelo Governo Federal no âmbito das políticas públicas voltadas às comunidades tradicionais.
“O saber ancestral é que deveria guiar a nossa sociedade, porque esse saber é mais equilibrado, é mais includente, é mais solidário, é mais ambiental. Tanto que nos quilombos você não dá o título para a pessoa, individualmente. Os Quilombos querem títulos coletivos, querem continuar como comunidade. Por isso nós queremos que os quilombos do Brasil sejam todos demarcados”, ressaltou o ministro.
No entanto, apesar do Ministro demonstrar amplo apoio à pauta quilombola, o assessor jurídico do ISA, Fernando Prioste, recorda que o Incra não avançou na desburocratização do procedimento de titulação das comunidades, assim como não revogou normas de Bolsonaro que atacam os direitos de quilombolas. “Segundo a Conaq, é urgente que o Incra nacional revise, por meio de consulta prévia, a Instrução Normativa nº 57/2009 e a Instrução Normativa nº 111/2021, que tratam, respectivamente, do processo de titulação dos territórios e do procedimento de consulta prévia às comunidades em casos de licenciamento ambiental”, pontua.
Representante do Ministério da Igualdade Racial (MIR), Luís Gustavo Magnata apontou que a pauta tem sido tratada de maneira transversal dentro do Governo Federal. “Este Governo sabe receber críticas e irá responder a elas com políticas públicas. Este é um dos papeis do MIR: sentar com vários ministérios e instituições e dialogar sobre as políticas para Quilombos. Políticas estas que não só tragam a titulação, mas que conectem o desenvolvimento dos territórios junto a elas. Estamos num ritmo muito lento da agenda nacional de titulação de quilombos, que vem de 2003. Por isso, precisamos de uma orquestração que já está sendo construída. Cada quilombo tem sua característica, mas a gente não pode ir por um de cada vez. Precisamos organizar tudo isso.”
"Nós não fazemos roça sem autorização. Na pandemia nós conseguimos autorização para fazer a roça e informar posteriormente. Mas a Florestal não quer saber. Eles chegam na comunidade e exigem que a gente informe de que é aquela roça. E eles ameaçam, que se eu não contar vou ser autuado ou preso. É um abuso de autoridade e isso não pode acontecer. Como vocês podem atuar para que eles cheguem com mais calma e conheçam a resolução?"
"As pessoas ficam por aí falando em família tradicional... Famílias tradicionais somos nós que fomos escravizados para enriquecer os exploradores e seguimos resistindo até hoje."
"Vejo aqui muitos órgãos do meio ambiente dizendo que nos protegem, que dialogam com os quilombolas. Mas o que eu vejo é polícia florestal apontando arma para criança que está brincando no rio, algemando menor que pegou um pedaço de madeira seca para fazer artesanato. Eu acho que isso é muito ruim. Afinal de contas, não precisa ser parque nem ter empresa particular armada dentro destes territórios para preservar, porque somos nós que preservamos. Não tem cabimento de nós termos conservado até hoje e sermos tachados de criminosos. Quantos líderes têm que ser assassinados para sermos reconhecidos? Nós todos estamos ameaçados. E o Governo é um jumento, se você não cutucar, ele não anda. E a Justiça é lenta. Até ela tomar uma decisão, quantos foram mortos?!"
No âmbito do Ministério do Meio Ambiente (MMA), o representante do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Anderson Soares assegurou o empenho da instituição com o diálogo para a construção de uma política de escuta junto às comunidades quilombolas. “A gente tem falado muito da compatibilização e da dupla proteção dos territórios. Onde uma comunidade tem seu território sobreposto por Unidade de Conservação (UC), entendemos que ela tem todo o direito de manter seu modo de vida, com seus arranjos produtivos locais, fazendo o uso direto de recursos naturais. Sabemos que houve muita intransigência no passado com a demanda quilombola, de demarcação e titulação. Mas, atualmente, no âmbito deste novo Governo, há o entendimento de que as contestações feitas lá atrás precisam ser revistas, buscando corrigir este posicionamento e viabilizar a titulação dos quilombos.”
“O presidente Lula estava preocupado porque, com o ritmo em que as coisas estavam caminhando, seria quase impossível a gente titular todas as comunidades quilombolas do nosso país”, explicou Sabrina Diniz. Segundo ela, por entender que esta é uma das questões prioritárias do Governo Federal, o Incra em São Paulo resolveu se articular com a Conaq, Eaacone, ISA, MIR, MDA, ICMBio e com o Governo Estadual, via Itesp e Fundação Florestal, para que a regularização fundiária quilombola realmente tenha encaminhamentos efetivos a partir da Mesa Quilombola.
Racismo institucional e Racismo Ambiental

A assessora jurídica da Eaacone, Rafaela Miranda, pontua o cenário histórico de morosidade para o enfrentamento de todas estas graves situações. “A gente busca que os órgãos possam depreender esforços, cooperar para a gente enfrentar isso. Porque ainda hoje essa é a realidade da maior parte dos mais de 6 mil quilombos do Brasil, de graves questões de vulnerabilidade, de insegurança fundiária, do acesso a políticas públicas e da permanência no território.”
A superintendente do Incra em São Paulo reconhece que a lentidão dos processos de titulação dos quilombos ocorre “por conta do racismo institucional que existe nas nossas instituições”. Sabrina Diniz pontua como todas estas dificuldades vêm do racismo presente, arraigado nas instituições brasileiras. “A gente precisa romper com isso. E uma das formas é admitir que esse racismo institucional existe. E a presença de vocês aqui é a maneira que temos para mudar isso. Não é com discurso que a gente muda. É com a prática. É com a presença do povo nos espaços de decisão e participação.”
Nilto Tatto, deputado federal pelo estado, também falou às lideranças quilombolas presentes na ocasião e recordou que São Paulo só avançou na pauta quilombola quando foi instalada a Mesa Permanente de Regularização Fundiária. “Foi preciso muita mobilização quilombola para isso. O Incra sequer tinha equipe aqui. Isso tem a ver com o racismo nas estruturas. E nós só vamos enfrentar o racismo estrutural com a presença permanente aqui. Tudo é fruto de luta. Nós sabemos disso.”
"Nós, quilombolas, somos a chave deste território de Mata Atlântica. Se não fosse por nós estarmos vivendo e cuidando dali, já tinha acabado tudo, a mata, a água. E sem isso não tem vida, não tem saúde. Eu vivo com o que tem na mata e nunca me sentei numa cama de hospital. Além disso, estamos com bastante receio do assédio das mineradoras. Já tem até gente visitando os territórios."
"Eu queria saber por que não há um representante da Procuradoria Geral do Estado aqui. Nós temos documento de propriedade registrado em cartório. E por que o governo não reconhece essa propriedade? Afinal de contas, que democracia a mesa está defendendo? Que tipo de democracia é essa que não reconhece documento registrado em cartório? Eu espero um entendimento melhor nesta questão da Regularização Fundiária dos Quilombos."
"Pedimos que vocês olhem pela vida das comunidades tradicionais, dos quilombolas. Nós somos os protetores da natureza. Queremos nosso direito de viver em paz, de viver da terra. O parque chegou derrubando casa em cima das pessoas, colocando o povo na rua. Estão acabando com a nossa vida, com a nossa cultura, com a nossa religião, destruindo tudo. A especulação imobiliária está entrando e está destruindo tudo. E nós, que sobrevivemos cuidando daqueles territórios, somos discriminados todos os dias."
“Neste ritmo que está, não dá mais para esperar. Mapeadas temos mais de 60 comunidades para serem tituladas. Levaria centenas de anos. A quantidade de documentos para a obtenção do título é uma coisa fora de sério, é para não funcionar mesmo. A gente está reinaugurando a mesa, mas as demandas não pararam. A Eaacone atualizou todas as demandas que surgiram nesta lacuna de desgoverno e entregamos este documento ao Incra. Entendi que o panorama de conflitos aumentou. E tem documentos parados há anos e não sabemos qual é o gargalo que está fazendo isso ficar parado”, asseverou Rodrigo Marinho, articulador da Eaacone.
Rodrigo acredita que o movimento saiu com uma perspectiva positiva em relação às possibilidades de encaminhamentos a partir da Mesa. E avalia que será preciso “reorganizar todas as políticas para quilombos no sentido de avançar nesta pauta. Pensar neste gargalo a curto e médio prazos.”
Guardiões da Mata Atlântica, quilombolas auxiliam no freio da crise climática

Coordenador do MDA em São Paulo, Elvio Motta reforçou que a questão da titulação está na centralidade na ação do MDA, do Incra e do próprio Governo Federal, muito em razão de sua estratégia no que diz respeito à conservação do meio ambiente.
“Os territórios quilombolas, juntamente com os territórios indígenas e aqueles que abrigam os assentados da reforma agrária ainda são os que não estão a serviço de uma ação predatória e mercadológica da terra. É um outro olhar para aquele território, até mesmo em razão de tudo o que estamos vivendo em relação à Crise Climática, que só não está pior porque vocês estão ocupando esses territórios. A gente reconhece isso e tem que entender que as políticas públicas de permanência têm que ser prioritárias.”
Neste mesmo sentido, Sabrina Diniz ressaltou o papel de guardiões da floresta que as comunidades quilombolas têm desempenhado em São Paulo e no País ao longo dos séculos.
“Sabemos que não é por coincidência que muitos territórios quilombolas têm Unidades de Conservação que foram enfiadas goela abaixo em cima das comunidades e que isso, muitas vezes, prejudica o seu desenvolvimento. Se não fosse por vocês nestes territórios, já estaria tudo terra arrasada. Vocês são fundamentais e a gente reconhece aqui, enquanto estado, o papel de vocês na preservação do meio ambiente. E é inadmissível o processo de criminalização que vocês sofrem no plantio das roças, na construção das moradias em seus territórios. Não existe quilombo sem quilombola. Não existe Mata Atlântica sem quilombola, sem caiçara e sem indígena. E esses processos, tanto do racismo institucional quanto do racismo ambiental precisam acabar.”