Movimento quilombola exige justiça e direito à terra no aniversário de assassinato da liderança; estudo da Conaq revela aumento nas execuções de quilombolas
No Quilombo de Pitanga dos Palmares (BA), o primeiro aniversário do assassinato de Mãe Bernadete Pacífico foi marcado por saudade e emoção, mas sobretudo pelo grito coletivo por justiça e pela garantia do direito à titulação dos territórios quilombolas.
Na terra sagrada que deu origem à liderança, no município de Simões Filho, sua memória se tornou raiz da luta ancestral quilombola, que orienta e acompanha as sementes da resistência a seguirem firmes na defesa de seus direitos.
“Nós não vamos associar o assassinato de Dona Bernadete ao tráfico, porque a morte de Dona Bernadete foi por terra nesse país!”.
Em discurso no 7º Festival de Arte e Cultura Quilombola – Fé, Cultura e Resistência, que organizou uma série de homenagens pelo aniversário de falecimento da liderança quilombola, a articuladora política da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Selma Dealdina, falou que a família, amigos, filhos de santo e o movimento nacional quilombola não irão aceitar a versão da Polícia Civil do Estado da Bahia, que aponta o tráfico de drogas como mandante da morte de Mãe Bernadete.
Na noite de 17 de agosto de 2023, Maria Bernadete Pacífico Moreira foi assassinada em sua casa, no Quilombo Pitanga dos Palmares, aos 72 anos. Apesar de estar no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), ela foi alvejada por 22 tiros, em um caso que chocou o país e evidenciou a vulnerabilidade das lideranças quilombolas no Brasil.
Após Mãe Bernadete, 12 pessoas quilombolas foram assassinadas no país no período de um ano. Um levantamento inédito feito pela Conaq mostrou aumento exponencial dos crimes nos últimos cinco anos.
Foram 46 execuções registradas de janeiro de 2019 a julho de 2024, uma média anual de 8 assassinatos. A cada um mês e meio, uma vida quilombola foi eliminada violentamente. Destacam-se 2021 e 2023 como anos com número de assassinatos superior à média anual.
Há décadas, o Quilombo de Pitanga dos Palmares enfrenta graves conflitos fundiários, agravados pela especulação imobiliária desenfreada e pela instalação de empreendimentos públicos e privados que põem em risco sua sobrevivência.
“O tráfico não pode levar os créditos de uma luta que Dona Bernadete travou enquanto denunciava desmatamento, enquanto denunciava a não titulação de terras e enquanto cobrava pela morte do Binho [seu filho, também assassinado]. É preciso que o sangue derramado pela luta por terra nesse país seja respeitado! Não vão desonrar o sangue de Dona Bernadete”, afirmou Selma Dealdina.
“Mãe Bernadete era mãe, mãe do quilombo, a griô que dava conta do estado dentro do quilombo", lembra Mãe Jaciara, amiga e moradora de Pitanga dos Palmares. "Mas não era ialorixá", apesar de iniciada no candomblé, explica. Por isso, a acusação de racismo religioso para o crime não pode ser considerada. “Quando [a mídia] fala ‘a ialorixá foi assassinada no terreiro', isso também deixa a gente de candomblé vulnerável. Então pode chegar em qualquer terreiro e matar?”, questionou.
Legado continua
O 7º Festival de Arte e Cultura Quilombola foi realizado entre os dias 16 e 18 de agosto pelo Quilombo Pitanga dos Palmares e pela Associação de Etnodesenvolvimento Muzanzu. Sete comunidades quilombolas da região e lideranças de todo o país se reuniram para celebrar o legado de Mãe Bernadete com visitas guiadas, apresentações musicais, danças tradicionais, oficinas culturais e feira de produtos artesanais e gastronômicos.
“Esse festival retrata a história de luta, resistência e ancestralidade de Mãe Bernadete. Era tudo que ela fazia quando estava aqui entre nós e eu tô dando continuidade a esse legado tão corajoso e maravilhoso”, contou Jurandir Pacífico, filho da matriarca.
Atuante em várias frentes de luta, Mãe Bernadete defendia o empoderamento feminino, a criação e aplicação de políticas públicas e uma educação de qualidade – um de seus sonhos era colocar universidades dentro dos quilombos.
Além disso, fez parte da coordenação e do coletivo de mulheres da Conaq, atuou como Secretária de Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho (BA), foi mestra de cultura popular, artesã e uma referência também como sambadeira, sendo da primeira coordenação da Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (Asseba).
“O desejo da minha mãe é esse, ver os irmãos quilombolas juntos. Essa troca de saberes e fazeres de sete comunidades quilombolas envolvidas nesse Festival é de suma importância”, completou Jurandir Pacífico.
Durante o festival, foi inaugurado o Museu Rústico Mãe Bernadete. Criado para homenagear a liderança e seu filho Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, mais conhecido como Binho do Quilombo, assassinado em 2017. O espaço é uma tradicional casa de pau a pique e foi construído em uma semana, com barro, bambu, ripas, pau-brasil e muitas mãos.
Ao som de tambores, Jurandir Pacífico anunciou a inauguração do museu, mas se permitiu ficar do lado de fora. “Eu não tenho condição de entrar hoje. Eu vou abrir, mas não vou entrar. Não estou preparado para entrar agora”, desabafou.
“O museu traz a preservação da memória e da história das pessoas que lutam. Ali tem a memória do Binho, tem a memória da Mãe Bernadete e a perspectiva de que a gente não perca essas histórias”, exaltou a ministra das Mulheres, Aparecida Gonçalves.
Fé e ancestralidade
“No candomblé, quando uma mulher de candomblé morre, ela se torna uma ancestral. Então Mãe Bernadete aqui é uma força que está com nós”, relembrou Mãe Jaciara.
O Quilombo Pitanga dos Palmares é o único do Brasil que possui uma rua de terreiros, e é nesse cenário que Mãe Bernadete cultuava sua fé. Apesar de não ter o título de ialorixá, ela era uma mulher de terreiro, filha de Oxumarê, iniciada na década de 1970 no terreiro Ilê Axé Kalé Bokum, em Salvador.
“A espiritualidade acaba sendo a tecnologia que mais protege a gente”, comentou Wellington Pacífico, neto de Mãe Bernadete e que estava com ela quando foi assassinada.
“É o búzio que vai orientar, é o Exú, é o Caboclo que vai orientar para quais caminhos seguirmos e quais pessoas confiarmos. Acaba sendo importante para nós, porque quando a gente escuta, a gente acaba tendo resultado. No final das contas, tem um avanço nas lutas em relação à defesa do território e também tem a nossa proteção enquanto pessoa, a integridade física da gente”, explicou.
Mulheridade quilombola
O II Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas foi uma das últimas agendas públicas da Conaq à qual Mãe Bernadete esteve presente, em junho de 2023. O tema era “Quando uma mulher quilombola tomba, o quilombo se levanta com ela”.
“Mãe Bernadete é fundadora, é integrante, porque ela não deixa de existir porque não está mais aqui no plano carnal. Ela continua entre nós. Uma das fundadoras do coletivo de mulheres da Conaq”, recordou Selma Dealdina, que juntamente com outras mulheres da instituição e do coletivo, promoveu uma oficina de mulheres quilombolas no festival para honrar também essa parte da luta de Mãe Bernadete.
“A dor que doeu aqui doeu em todas nós. Então esse é um momento único, em que a gente pode vivenciar pelo menos um pouco de justiça. É uma reafirmação de direito, de luta, de resistência e de dizer que o legado dela não morreu. Pelo contrário: o legado dela continua. Ela não lutava só pelo território dela, ela lutava por todos os territórios”, reforçou a coordenadora executiva da Conaq e membro do Coletivo de Mulheres, Laura Silva.
O coletivo se uniu a mulheres do Quilombo Pitanga dos Palmares e de Salvador para uma oficina de reflexões políticas, onde foram abordados temas como racismo, regularização fundiária, abandono, feminicídio e adoecimento psicológico. As mulheres também escreveram sobre Mãe Bernadete. "Um legado de luta, fé e resistência. Uma revolução ancestral e visceral. Eternamente presente!”, dizia uma das mensagens.
Laura destacou que o coletivo de mulheres trabalha de forma conjunta na luta por políticas públicas adequadas à realidade quilombola, debatendo pautas a nível nacional e principalmente fazendo incidências nos ministérios, “para que a gente possa ter uma política pública que venha de encontro com a nossa realidade”, comentou.
“Se você for ver os dados, os maiores números de mulheres que sofrem feminicídio, são as mulheres [negras]. Hoje, um grande número de lideranças dos quilombos são mulheres. São elas que estão na linha de frente e portanto elas estão mais vulneráveis”, explicou a ministra Cida Gonçalves.
Dados da última pesquisa “Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil”, realizada pela Terra de Direitos e pela Conaq, revelam que, no período de 2018 a 2022, dos 32 assassinatos registrados, nove foram de mulheres.
“Tem um ódio instituído no país, que acirra a violência contra as mulheres. Mãe Bernadete, com os três primeiros tiros, já estava morta. Mesmo assim, deram mais 19. Isso não é um crime que caracteriza o tráfico, como estão querendo dizer. Não. Isso é um crime de ódio”, ressaltou a ministra.
Segundo ela, o governo está implementando um protocolo nacional para proteger as mulheres quilombolas, com políticas públicas voltadas à sua segurança, autonomia e combate à violência. No âmbito do ministério, foi instituído o Fórum Permanente das Mulheres Quilombolas – uma demanda do último Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas –, onde debates bimestrais são realizados para definir as linhas dessas políticas a serem investidas nos quilombos.
Disputa pela terra
O assassinato de Mãe Bernadete faz parte das estatísticas que evidenciam a insegurança dentro das comunidades quilombolas do Brasil. A disputa por terra é a principal ameaça à segurança das comunidades tradicionais.
“Talvez eu não tenha elementos para dizer todos [os motivos], mas eu digo preponderantemente: sim, a questão fundiária é adjacente a toda essa violência que as comunidades tradicionais têm sofrido, especialmente as comunidades quilombolas”, disse o promotor de justiça e coordenador da área de direitos humanos do Ministério Público da Bahia, Rogério de Queiroz.
O avanço do agronegócio, das instalações eólicas e das fazendas de energia solar, juntamente com suas linhas de transmissão, está pressionando os territórios quilombolas. Além disso, o interesse do setor imobiliário em áreas valorizadas pelo turismo e por empreendimentos litorâneos intensifica a pressão. O mais preocupante, no entanto, é o avanço do crime organizado sobre os territórios quilombolas, dos geraizeiros e de outras comunidades tradicionais.
“O estado da Bahia não pode vivenciar outra situação como a que aconteceu com Binho, com Mãe Bernadete. Nós não podemos vivenciar nova situação de agressão, de violência contra defensores dos direitos humanos e nós precisamos aprimorar esses mecanismos de proteção e de prevenção”, alertou.
Segundo o promotor de justiça, o Ministério Público é responsável por apontar quais são os erros identificados nesses casos. “O MP atua quase como uma atuação subsidiária à omissão dos entes públicos. Por isso, que a gente é chamado. A rigor, nós não deveríamos nem mesmo estar diante de situações como essas. Acaba havendo esse destaque da atuação do MP por conta do vazio que é criado nesse cenário dessa política pública de proteção a essas pessoas.”
Titulação de Pitanga dos Palmares
Chefe de gabinete da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi-BA), Alexandro Reis destacou a importância da titulação dos territórios quilombolas para o fim dos conflitos. “Primeiro, porque dá segurança às comunidades em relação a ter o seu território e a sua terra garantidos para produzir, para preservar sua cultura, para se reproduzir.”
Em segundo lugar, a preservação do meio ambiente. “As comunidades quilombolas têm esse papel importante de preservar o meio ambiente. Sua produção não degrada os biomas, além de história, memórias afetivas e culturais, e de funcionamento da comunidade. Além disso, é uma determinação da nossa Constituição Federal, é uma questão de direito fundamental que é responsabilidade do Estado garantir isso”, pontuou.
A Sepromi atua junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para fazer o reconhecimento dos territórios quilombolas. O Quilombo Pitanga dos Palmares foi certificado em 2004 pela Fundação Cultural Palmares.
Em abril de 2024, o Incra reconheceu cerca de 854 hectares de área como pertencentes oficialmente à comunidade quilombola. Entretanto, o processo de titulação de territórios quilombolas no Brasil é extenso e demorado.
Alexandro Reis explica que há uma força tarefa junto com Incra, Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Advocacia Geral da União (AGU) e Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE-BA) para fazer a desintrusão da área, que tem 854 hectares. Os imóveis de pessoas não quilombolas foram identificados e notificados. Agora, o governo federal deve negociar as indenizações para a saída das famílias.
Novas estratégias de proteção
De acordo com o último Censo do IBGE, a Bahia é o estado que tem o maior número de quilombolas do Brasil. São 397.059 e apenas 5% vivem em territórios demarcados.
O estado lidera com Maranhão e Pará o ranking de mortes por conflitos de terra. Só na Bahia, foram pelo menos 11 quilombolas assassinados em dez anos.
Apesar de uma luta firme e sólida pela titulação de territórios quilombolas, inclusive o seu, Mãe Bernadete temia pela própria vida. Entrou para o PPDDH e estava inserida no programa desde 2017. Entretanto, não foi o suficiente.
“Cada vez que se avança no direito dessas comunidades, a resposta vem mais violenta por parte de quem não tem interesse que essas comunidades tenham a posse do seu território. São territórios ricos, que têm água, que têm minérios, e os poderes, as forças econômicas questionam.”, afirmou a Superintendente de Direitos Humanos no Estado da Bahia, Trícia Calmon.
Ela defende a revisão das estratégias de proteção para pessoas que lutam por territórios, destacando a necessidade de organizar processos que acelerem a regularização fundiária. Segundo Trícia Calmon, é crucial identificar e eliminar as ameaças originadas pela insegurança na posse da terra.
“É necessário chegar com políticas públicas fortemente nos territórios, porque passa uma mensagem que aquele território existe e está no mapa de ações dos governos. Outra via é o fortalecimento das próprias comunidades e dos movimentos sociais, para que eles construam também suas soluções de proteção. Todas as esferas de governo precisam dialogar permanentemente.”, alertou.
Vou fazer minha oração pra que?
Comi fogo quem me deu
Se a minha oração terminou, meu Zumbi,
Os inimigos não me venceram
Se a nossa oração terminou, meu Zumbi
Os inimigos não nos venceram.
Composição de Ananias Viana, amigo de Mãe Bernadete
O encontro-homenagem chega ao fim, mas a vida em Quilombo Pitanga de Palmares continua, não se interrompe. A luta pela terra, direitos e memória persiste, invencível, como Mãe Bernadete, que se eternizou em raiz e agora se eleva como tronco forte entre os ancestrais, zelando por aqueles que caminham sob sua proteção.
Em cada quilombola, Mãe Bernadete segue viva.