#ElasQueLutam! apresenta o reencontro da liderança waurá com sua trajetória e com a missão de dar visibilidade à força e à resistência das mulheres de seu povo
Luzes brancas iluminam cerâmicas recém-moldadas dispostas em um grande papelão estendido por quase toda a extensão do chão de uma sala no Sesc Consolação, no centro da capital paulista.
Sentada em uma cadeira escolar, de frente para outra jovem, Yakuwipu Waurá explica meticulosamente a técnica que utiliza para moldar o barro e evitar que as peças se rachem. Fala também sobre os materiais que usa para dar liga, em especial o cauxi, espécie de coral que é encontrado nos rios e que, diante dos impactos das mudanças climáticas, está cada vez mais escasso e tornando incerta a produção das cerâmicas.
“Eu rodei o Xingu inteiro e eu percebi que em volta do Xingu o desmatamento aumentou bastante”, conta Yakuwipu Waurá. “O rio que a gente nadava o fundo é preto, agora tá começando a ficar barrento. [...] O cauxi não tá mais reproduzindo, é difícil reproduzir”.
A aluna anota atentamente todos os detalhes em um caderno. A oficina, no Sesc Consolação, fez parte de uma agenda repleta de encontros, rodas de conversas e oficinas que tinha como objetivo compartilhar o conhecimento ceramista dos Waurá em museus e centros culturais de São Paulo e também de alertar para os impactos das mudanças climáticas no Território Indígena do Xingu. Saiba mais.
Na sala, também estão presentes suas parentas e companheiras de viagem: sua mãe, Pere Yalaki Waurá; Kuheju Waurá; Kutalo Waurá; Yakuwipu Waurá; e Kayana Pisulu Waurá. Além delas, dois meninos correm por todo o curto perímetro da sala, Ukuhan Waurá, filho de Yakuwipu, e Tawapy Waurá.
Em sua terra natal, na aldeia Piulewene, no TIX, Yakuwipu desempenha uma série de funções: é técnica de desenvolvimento infantil em sala de aula, presidente da Associação Sapukuyawa Arakuni, estudante de ciências humanas e sociais/licenciatura intercultural indígena da UFR, integra o Movimento Mulheres do Território Indígena do Xingu (MMTIX) e também segue na luta pela proteção territorial.
É com um sorriso constante no rosto que Yakuwipu conta que sua luta transcende essa viagem para São Paulo - a luta tem raízes familiares. Ainda assim, foi nessa cidade que é lar de parentes de 194 etnias, segundo o Censo 2022 do IBGE, que ela encontrou algumas das respostas que tanto buscava em sua vida.
“Começa com o movimento da luta de resistência dos povos indígenas. Na época, para garantir a Constituição”, inicia Yakuwipu sobre a missão e fardo que herdou ao nascer.
Leia também
#ElasQueLutam: Alessandra Munduruku, a força feminina contra a destruição do território!
Seu avô era uma liderança do povo Waujá e fez parte do movimento que lutou nos anos 1970 pela inclusão do Capítulo VIII, conhecido como Capítulo dos Povos Indígenas, na Constituição. “Ele precisava mais homem nascer como neto para poder levar esse a luta dele na proteção territorial, lutar pela terra demarcada para poder garantir para o futuro”, ela explica.
Na época, ela conta, outros povos estavam sendo massacrados pelos não indígenas e seu avô temia muito pelo futuro de seu povo. Por isso, pedia por um neto homem para ajudar a enfrentar esse inimigo. “Meu pai não queria que eu viesse ao mundo”, lamenta.
Foi uma parteira quem garantiu que a bebê recém nascida tivesse um futuro. Esse porvir, no entanto, vinha com a promessa de um casamento com o neto mais novo dela, que ao final não se cumpriu. “Por isso que eu sempre falo que nasci casada”, brinca.
Yakuwipu diz que cresceu ouvindo essa história. Cada parte dela. Mas enfatiza que, ao fim, foi criada por seu pai, que se arrependeu de sua atitude inicial. “Todo dia de manhã eu acordava, ele já estava preparando tudo. Abóbora e batata assada, banana assada, me acordava, oferecia”, relembra. “Não me faltou nada, o amor, o carinho, eles deram”, completa.
Sua mãe vivia na aldeia grande, junto às suas irmãs, enquanto Yakuwipu ficou em uma aldeia menor, no Médio Xingu, com seu pai. Por isso, aprendeu um pouco do conhecimento dos homens também. Ela aprendeu a fazer a roça, a preparar a terra, a pescar. “Tudo que os homens faz, ou quase, eu faço”.
Assim como seu avô, a luta pela proteção territorial chegou cedo em sua vida, mas foi sua mãe, também uma mulher indígena em movimento, quem a chamou atenção para aprender o português e somar esforços na luta de seu povo.
Leia também
#ElasQueLutam: Vercilene Dias, da comunidade Kalunga (GO) ao STF!
Ela conta que o território em que vive sofre com diversos tipos de invasão, madeireira, de pescadores e foi por esse motivo que ela se aproximou dos movimentos do Xingu, da Associação Terra Indígena Xingu (ATIX), e dos parceiros, para poder levar e denunciar o que está acontecendo.
“Minha mãe sempre nos lembra e fala a fala do nosso nosso avô, que é para a gente saber se defender do nosso inimigo, que a gente tem que saber falar na língua, aprender falar, aprender a estratégia, a técnica, o conhecimento do não indígena. Assim a gente sabe viver em dois mundos”.
Por essa razão Yakuwipu começou a estudar, mas apenas aos 18 anos, quando enfim uma escola foi construída em sua aldeia. Cursou até o 5º ano do Ensino Fundamental e terminou o Ensino Fundamental e Médio fora. Atualmente, ela é técnica de desenvolvimento infantil na escola de sua comunidade e está cursando Licenciatura Intercultural na Universidade Federal de Rondonópolis (UFR).
Ela conta que quando aprendeu o português, foi instruída a voltar para a aldeia e multiplicar o que aprendeu. De modo que ela se tornou técnica de desenvolvimento infantil, e para se aprimorar cada vez mais, decidiu cursar a universidade.
Foi com o conhecimento que buscou fora do território e com o incentivo de sua mãe que ela passou a atuar também no movimento de mulheres do Território Indígena do Xingu, o MMTIX, acompanhando as reuniões, ajudando a população xinguana e levando a voz das mulheres. Confira esse e outros movimentos de mulheres indígenas no Mapa Interativo das Organizações das Mulheres Indígenas no Brasil!
Leia também
Txai Suruí: juventude indígena contra a emergência climática!
“Elas me vêem como referência, porque eles não dão muita confiança nas mulheres”, lamenta. “Eu sabia que se eu conseguisse terminar meus estudos, eles iriam me ver como referência e deixar outras minhas sobrinhas e outras mulheres se inspirarem e verem que somos mulheres, somos capazes de aprender as coisas igual os homens”.
Todos esses movimentos em sua vida trouxeram a Yakuwipu a necessidade de se reconectar com uma parte importante de seu povo: as cerâmicas. Ela aprendeu com seu pai quando criança e ele havia aprendido com a tia dele, a parteira que a trouxe ao mundo.
A matéria-prima, no entanto, era pouca, por isso não era possível praticar tanto. Razão pela qual aos 27 anos ela tomou a decisão de dedicar sua vida a isso. Ela explica que não são apenas cerâmicas. A “panelinha”, como chama, “é uma entidade do Waujá. Porque no Xingu, você ser Waujá, você tem que saber fazer”, ela complementa. “É uma forma que a gente se conecta com o nosso passado e mantém presente no futuro”.
O reencontro e a história recontada
E foi por meio desta conexão que Yakuwipu viu sua história ganhar um novo sentido, a partir do reencontro com as cerâmicas dadas de presente ao indigenista Orlando Villas-Bôas. A sua história acompanhando a luta do seu povo nem sempre é fácil. “Como eu atuo na frente da proteção territorial do Xingu, eu vejo muito problema que tá acontecendo no Xingu. Eu fico muito triste e aí eu penso: por que que parteira me colocou nesse mundo?”.
Nesse reencontro, em evento promovido pelo Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo, sua mãe, Pere Yalaki, reconheceu, através da peça, a ceramista. Ela descreveu então a parteira que trouxe Yakuwipu ao mundo: “Ela é ceramista, era uma mulher importante para o Waujá, era uma mulher que recebe e aconselha, e ela era uma mulher para a comunidade e a mulher que não dependia muito das coisas dos homens, ela sabia se virar e ela era uma mulher que é sábia”.
“Só de olhar aquela peça, a gente sente a presença de cada artista que fez aquele canal. É muito forte”, explicou. “De repente eu entendi porque ela me colocou no mundo”, falou emocionada. “Eu acho que é isso é minha missão. Ela salvou minha vida para eu poder contar a história e falar um pouco sobre ela, para ela ser conhecida”, concluiu.
Yakuwipu se descreve como uma mulher que luta pela autonomia das mulheres, que sonha em ver o Xingu daqui a 50 anos com rios limpos, fartos em peixes e alimentos tradicionais. Ela espera também ajudar as mulheres do seu povo que têm vontade de conhecer outros mundos, a atuarem na proteção territorial ou em qualquer cargo no Xingu, além de incentivar as pessoas do seu povo a entrarem na universidade e aprenderem as estratégias dos não indígenas.
“Eu acho que toda a história que meu pai falava para mim, me incentivou a ser essa mulher que eu sou. Pesadelo que eu não tenha enxergado essas coisas. Quando ele me deixou eu vi tudo que ele fez para tentar me preparar para esse mundo”, lamenta.
“Até agora não caiu a ficha sobre isso, mas quando eu vim aqui em São Paulo e eu vi panela, eu percebi que é isso. Tem uma forma que eles falam que você não pode ser que eu acho que é para incentivar a gente ser aquela pessoa e hoje eu sou”, afirma.
Carregando