Como zelador dos direitos constitucionais indígenas, STF deve estar disposto a corrigir eventuais equívocos a que está sujeito
Imagine que eu e você, leitor (a), pertencemos ao mesmo povo indígena, mas vivemos em aldeias diferentes dentro de uma mesma Terra Indígena. Suponha que haja uma jazida mineral perto da sua aldeia, mas sua comunidade não quer explorá-la por causa dos impactos socioambientais. Já na minha aldeia, não existe uma jazida semelhante e economicamente viável.
Agora, imagine que seja realizada uma consulta para decidir sobre a exploração dessa jazida e que sua comunidade se posicione contra, enquanto a minha apoia. Mesmo assim, a mineração é autorizada, desconsiderando a vontade da sua comunidade, causando danos para vocês e trazendo benefícios econômicos para a minha aldeia.
Essa situação absurda será possível caso venha a ser acatada a regulamentação da pesquisa e da lavra mineral em territórios indígenas que consta da sugestão legislativa apresentada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, enquanto relator do processo de conciliação em curso no STF – decorrente de ações judiciais que questionam a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, aprovada pelo Congresso e que prevê uma série de retrocessos aos direitos indígenas, como o “Marco Temporal” das demarcações.
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A proposta de regulamentação da mineração em Terras Indígenas, que sequer constava da referida lei, ainda será discutida no âmbito da comissão de conciliação e no plenário do STF, antes do seu eventual envio ao Legislativo. É bom lembrar ainda que o tema da mineração em territórios indígenas não foi discutido na comissão e aparece agora na proposta do colegiado, na reta final das discussões, embora elas tenham começado há mais de seis meses.
A regulamentação da pesquisa e lavra mineral em Terras Indígenas está prevista nos artigos 176, parágrafo único, e 231, parágrafo terceiro, da Constituição, embora nunca tenha sido efetivada pelo Congresso. Uma ADO, ação direta de inconstitucionalidade por omissão, que também se encontra no Supremo sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, pretende suprir a inação do Congresso.
Não é não
A Constituição diz que é competência exclusiva do Congresso autorizar a pesquisa e a lavra mineral em Terras Indígenas, no interesse nacional, ouvidas as populações afetadas, que devem participar do resultado da lavra. A audiência às comunidades não é uma mera formalidade, mas supõe que elas devem ser de fato consultadas. Porém, a proposta de regulamentação diz que a exploração deve ocorrer independentemente de estarem, ou não, de acordo. Ou seja, a vontade dos indígenas só seria levada em conta se estiverem de acordo com a exploração. Se forem contra, a atividade deve ocorrer mesmo à revelia da sua vontade.
A consulta às comunidades afetadas, também prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), deve ser livre, prévia e informada, o que sugere que deve ser efetiva. Isso quer dizer que as populações indígenas têm o direito de influenciar concretamente o processo de tomada de decisões que lhes afetem diretamente. De acordo com a convenção, a consulta, portanto, deve sempre ser realizada por meio das instituições representativas dessas comunidades, mediante procedimentos adequados a cada circunstância, respeitando sua língua, seus costumes e sua cultura. Mas não é o que ocorre no projeto de lei proposto. Um eventual “não” deveria ser acatado, ainda que se definisse um prazo para refazer a consulta alguns anos depois.
A posição das comunidades afetadas, conforme a definição constitucional — tanto na consulta quanto na eventual participação nos resultados da lavra —, não pode ser substituída pela audiência a outras comunidades da mesma Terra Indígena ou etnia, ainda que essas também possam auferir benefícios decorrentes dos resultados econômicos da lavra.
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Alhos e bugalhos
É de boa lógica linear pretender que o processo de conciliação no STF venha a sistematizar os vários aspectos dos direitos indígenas que demandam legislação. Afinal, a Lei 6.001/1973, o Estatuto do Índio, promulgada quinze anos antes da Constituição, não foi revista para se adequar à ela, que, por sua vez, prevê regulamentações específicas, entre as quais a relativa à pesquisa e à lavra mineral em Terras Indígenas. Além disso, sempre haverá novos temas, que afetam os direitos indígenas e que demandam novas regulamentações.
Porém, a lógica política não é linear e se impõe, como é o caso da Lei 14.701/23 e da sua contestação no próprio STF. O processo legislativo é movido por essa lógica, que introduz tensões assimétricas em relação às lacunas legais existentes. É preciso estarmos atentos aos riscos políticos que, emanados de determinados processos, não contaminem o tratamento de outras questões. Por isso, é mais prudente que o processo de conciliação esteja focado nos temas tratados pela Lei 14.701/24, objeto do contencioso.
O STF é o zelador dos direitos constitucionais indígenas, assim como dos de outras minorias e segmentos mais vulneráveis da sociedade brasileira. Por isso, deve estar permanentemente atento às sutilezas próprias do tratamento a esses direitos. Assim como deve se dispor a corrigir eventuais equívocos a que está sujeito, da mesma forma que deve ocorrer com as demais instituições e poderes da República.
A regulamentação da pesquisa e lavra em Terras Indígenas tem previsão constitucional e natureza bem diversa da solução de contenciosos instaurados relativos à demarcação das Terras Indígenas. Além disso, envolve outras instituições públicas e privadas, que não integram a comissão de conciliação que se aproxima da conclusão dos seus trabalhos. O seu tratamento também reclama maior profundidade e assertividade do que seria possível no contexto de leis que exigem outros focos.