2ª edição do Aquilombar acabou reunindo a alegria dos reencontros e a frustração por causa da inação do Planalto
“A história do Brasil não pode ser contada sem os quilombos!”, disse Givânia da Silva, integrante do Coletivo de Educação da Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), em um discurso potente para milhares de quilombolas que estiveram na segunda edição da maior mobilização dessas comunidades do Brasil. O Aquilombar 2024 teve um tema central de poucas palavras, mas que traduzem uma mensagem necessária e de força para os dias atuais: “ancestralizar o futuro”.
A presença de mais de 3 mil quilombolas de todas as regiões do país coloriu a capital federal ao longo de quinta-feira (16). Eles viajaram centenas de quilômetros para se encontrar, celebrar sua cultura, marchar em direção ao Congresso, reafirmar sua existência, exigir a garantia de seus direitos e aquilombar a sociedade brasileira.
No Centro Cultural Ibero-Americano, no centro de Brasília, os quilombolas puderam mostrar um pouco mais de sua cultura, com apresentações de dança, como a do Grupo de Conscientização Negra Omnirá, do quilombo Cururupu (MA); feira de artesanatos e comidas.
Embora a titulação de territórios tenha sido reforçada como a principal pauta da mobilização, ponto que uniu o coro de reivindicação dos participantes e que também permeou a fala das autoridades presentes, foi justamente esta a maior frustração nesta edição do Aquilombar.
Lideranças de diferentes localidades foram convidadas pelo governo federal a ir a Brasília para receber a documentação da titulação definitiva de seus territórios. No entanto, souberam ali, enquanto a solenidade com essas autoridades se iniciava, que viajaram em vão. Os decretos não seriam assinados.
O restante dos participantes da mobilização tomou conhecimento da decisão do governo ao final da solenidade, quando o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, o último a falar, afirmou que os títulos seriam entregues em outro momento, sem indicar uma data ou local para isso.
Questionado pelo ISA a respeito da não assinatura dos decretos de titulação, o ministro só disse que haverá um evento "próximo" para que a entrega ocorra.
Titulação demorada e violência
Os processos de titulação de territórios quilombolas no Brasil são extremamente demorados. Tanto que, conforme cálculo da organização Terra de Direitos, seriam necessários 2.708 anos para o governo finalizar a titulação definitiva dos 1.857 quilombos com processos abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Ou seja, o Brasil cumpriria com esta obrigação constitucional somente no ano de 4.732.
A última pesquisa do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que o país soma mais de 1,3 milhão de quilombolas, dos quais menos de 5% vivem em áreas tituladas. Sem a garantia desse direito, todos os outros são afetados. Além disso, conflitos no campo aumentam e geram violência, como o assassinato de Mãe Bernadete, em agosto de 2023, no Quilombo Pitanga de Palmares, em Simões Filho (BA).
“A titulação, para uma comunidade quilombola, é o principal momento de celebração, em razão de ser a consolidação do direito constitucional da garantia efetiva ao território. Era esperado que a solenidade proposta pelo governo federal no ato do Aquilombar desse passos concretos rumo a essas titulações. No entanto, o que houve foi uma grande frustração, porque o movimento aguardava por isso com enorme expectativa”, assevera a coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA, Milene Maia Oberlaender.
Ela também reforça como essa decepção reverbera como inquietação no movimento quilombola. Além de ser a porta de acesso das comunidades a inúmeras políticas públicas, a regularização definitiva também traz a proteção das populações, que, muitas vezes, estão invisibilizadas, vulnerabilizadas e sem acesso a direitos básicos.
“Isso nos traz preocupação, porque as expressivas manifestações de violência em territórios quilombolas ocorrem justamente em razão da inércia do governo em finalizar os processos de titulação”, explica Oberlaender.
Não por acaso, a violência contra quilombos no Brasil aumentou nos últimos cinco anos, conforme aponta a pesquisa Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil, realizada pela Conaq e Terra de Direitos. Entre 2008 e 2022, foram assassinados 70 quilombolas em suas terras, isso sem contar os inúmeros casos de violação de direitos fruto do racismo institucional e ambiental.
Havia uma grande expectativa do público da ida do presidente Lula ao evento. A ausência foi justificada por Teixeira pela situação de calamidade no Rio Grande do Sul. Segundo o ministro, Lula fará uma nova solenidade, desta vez em um território quilombola, e participará pessoalmente do ato.
Ele lembrou que o governo lançou o programa Terra da Gente, que servirá para os assentamentos e para a titulação de quilombos. “Estão sendo investidos R$ 138 milhões para comprar terra para os quilombos e para demarcação dos quilombos”, informou.
Medidas do governo
O presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP), João Jorge, esteve no Aquilombar e falou sobre esse direito tão caro e importante. “Precisamos parar [de fazer com que] as pessoas morram pra ter um título. O meu papel é retomar essa política”, disse. “Temos um compromisso do novo governo do Brasil, da ministra Margareth Menezes [da Cultura], da ministra Anielle Franco [da Igualdade Racial] , de fazer uma coisa bem básica, levar a certificação das comunidades quilombolas para que o Incra possa finalmente dar a titulação dessas comunidades”, afirmou.
João Jorge relembrou nomes ancestrais, como Nego Bispo, Mãe Bernadete e Abdias do Nascimento. “O Bispo, nosso mentor intelectual contemporâneo, por acaso está aqui torcendo por um bom resultado. A senhora Bernadete, da Bahia, também está aqui neste momento e Abdias Nascimento, primeiro homem desse país a falar do quilombismo [também está presente]”.
O presidente do Incra, Cesar Aldrig, enfatizou: “Esse aqui é o maior evento da população quilombola do país. Temos muita clareza que esse país tem uma dívida enorme com o povo quilombola”.
Aldrig informou que já há 35 mil hectares de portarias publicadas para os povos quilombolas, ação que faz parte do pacote de medidas anunciadas no Aquilombar, previstas no Programa de Apoio e Fortalecimento ao Etnodesenvolvimento e Acesso à Terra e ao Território (Pafe), da Secretaria de Territórios e Sistemas Produtivos Quilombolas e Tradicionais (Seteq), do MDA.
Medidas do Pafe anunciadas no Aquilombar
- Criação do Selo Quilombola, com a finalidade de identificar produtos de origem étnica e territorial produzidos por comunidades quilombolas. O selo foi entregue às comunidades Tapuio (PI), Mesquita(GO), Dilô Barbosa(ES), Estiva (MG) e Estrela (PE).
- Entrega dos relatórios técnicos de identificação e delimitação (RTIDs) de duas comunidades quilombolas: Negros do Osso (PE) e Vila Juazeiro (BA);
- Entrega de portarias de reconhecimento nas comunidades Olindina Cirilo Serafim (ES), Rio Andirá (AM), Serra Salitre (MG) e Quilombo Fojo (BA).
A Conaq entregou uma carta contendo as principais demandas das comunidades aos ministros presentes no evento. O documento aborda sete pontos: violações dos direitos quilombolas; violações ao território; justiça climática; políticas públicas; acesso à justiça; violações aos direitos das mulheres quilombolas e requerimentos.
O secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos do Ministério da Igualdade Racial (MIR), Ronaldo dos Santos, avaliou o evento de forma positiva. “Estamos bastante felizes com o que foi o dia de hoje”. Ele continuou: “É a segunda vez que a Conaq faz o Aquilombar aqui em Brasília, então fica uma grande expectativa de que tenha um próximo que seja igualmente bonito, até mais potente. E da nossa parte, do lado do governo, que seja combustível, inspiração para que a gente possa fazer mais ainda do que temos feito até aqui e possamos corresponder às demandas que as lideranças quilombolas, de forma organizada, têm pautado o estado”.
Luta e resistência
Coordenador do Coletivo de Juventude da Conaq, Celso Araújo, reafirmou a luta quilombola por direito ao território titulado iniciada por seus ancestrais e o dever da juventude em continuá-la.
“Sem os nossos territórios livres, sem os nossos territórios titulados, vão continuar tirando a vida da nossa juventude, das nossas lideranças dentro dos nossos territórios. As nossas vidas vão continuar sendo ceifadas por aqueles que não querem que a gente acesse aquilo que é nosso por direito. A juventude quilombola, a juventude que está presente aqui hoje tem esse dever de fazer com que a luta dos nossos ancestrais continue, porque a nossa existência hoje é porque alguém resistiu por nós”, sublinhou.
“Esse Estado tem uma dívida com a população preta, com a população quilombola. Nós não viemos aqui pra ver sorrisos de ministros e ministras quando falam da pauta da titulação quilombola. Estamos aqui para reivindicar os nossos direitos. Estamos aqui para reivindicar todas as nossas políticas públicas, mas a principal delas é a titulação dos nossos territórios”, disse Araújo.
A coordenadora do coletivo LGBTQIAP+ da Conaq, Cristina Quilombola, destacou a liderança das mulheres quilombolas e o racismo promovido por grandes empreendimentos que invadem os territórios.
“Precisamos avançar em vários processos em nossos territórios, na nossa educação, na nossa agricultura familiar, na nossa cultura; avançarmos na garantia do direito à vida da nossa população LGBTQIAP+; garantir a vida das nossas mulheres quilombolas dentro dos nossos territórios. Nós temos territórios quilombolas que são liderados por essas mulheres que estão à frente da luta, que estão à frente da resistência, que ocupam esses espaços de direito que muitas vezes tentam nos calar”, afirmou.
“Para o avanço e o progresso dos territórios precisamos das nossas comunidades quilombolas tituladas já, para que os nossos territórios sejam livres do agronegócio, livres das minerações, livres dos parques eólicos que a todo instante adentram os nossos territórios com o racismo ambiental, o racismo institucional, o racismo estrutural”.
Emergência climática
As consequências da crise climática para as comunidades quilombolas têm sido uma preocupação presente nos debates e ações das lideranças do movimento. Para elas, a tragédia que acontece no Rio Grande do Sul é um triste exemplo de como essa pauta precisa estar no centro das discussões e mostra a urgência para que sejam apontados caminhos mais efetivos de enfrentamento.
No estado, cerca de 6 mil famílias quilombolas foram afetadas pelas enchentes, segundo a Conaq. De acordo com o levantamento, todas as 145 comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul, em 70 municípios, foram atingidas pela tragédia desde o final de abril. No total, 17.552 quilombolas sofrem diretamente os impactos das cheias. Já segundo o MIR, dez comunidades estão totalmente cercadas pela água e com dificuldades de acesso, as enchentes atingem todas as 6.828 famílias quilombolas gaúchas e dez comunidades estão ilhadas.
Ao final da marcha, a articuladora política da Conaq, Selma Dealdina, analisou como a emergência climática atinge diretamente a vida dos povos e comunidades tradicionais. "Isso que ocorre no Rio Grande do Sul serve de alerta para que a gente consiga refletir sobre a importância de olhar para as mudanças climáticas e como elas podem ocasionar um desastre ainda maior", ressaltou.
Um dos graves problemas apontados pela dirigente da Conaq é a situação das famílias que precisam deixar suas casas e seus territórios em função das consequências da crise climática.
"Precisamos discutir a situação dos exilados do clima. Nós temos uma grande quantidade de pessoas que estão fora de seus territórios devido aos impactos dessa crise. Eu espero que, de fato, a gente comece a olhar para isso com mais atenção. E olhar para o que os povos do campo e das florestas, as comunidades tradicionais, a nossa ancestralidade e sabedoria popular nos dizem sobre isso tudo que estamos vivendo", enfatizou.
Ela lembrou, ainda, que são esses povos e comunidades os primeiros a ser atingidos pelas consequências da crise climática. "No final, somos nós que pagamos essa fatura".