Dossiê detalha avanço da atividade ilegal na gestão Bolsonaro; 82% da destruição ocorreu em áreas protegidas, sendo 72% somente na Terra Indígena Kayapó
Sob Bolsonaro, foram quatro anos de descontrole da fiscalização ambiental. Taxas recordes de desmatamento e a expansão, por toda a Amazônia, de atividades ilegais como o roubo de madeira e o garimpo.
Na Bacia do Xingu, que atravessa os estados do Pará e Mato Grosso, a destruição causada pelo garimpo ilegal foi avassaladora entre 2019 e 2022. Desmontar a estrutura de destruição instalada nestes territórios demanda fortes investimentos, continuidade e consistência na atuação de segurança pública na região.
Novo dossiê da Rede Xingu+ mostra o avanço e reincidência do garimpo nos últimos anos nas Terras Indígenas e Unidades de Conservação da região. Os dados produzidos pelo Observatório De Olho no Xingu indicam que, desde 2018, foram mais de 12,7 mil hectares de áreas de garimpo abertas – 82% dentro de áreas protegidas.
Entre 2018 e 2019, período de mudança de gestão presidencial, o desmatamento gerado pela atividade aumentou 15% nas áreas protegidas.
Em 2023, a atividade teve uma redução expressiva, devido ao aumento da fiscalização, mas não parou.
No primeiro semestre do ano, já foram desmatados cerca de 475 ha em TIs, segundo os boletins divulgados pelo Sistema de Indicação por Radar de Desmatamento da Bacia do Xingu (Sirad X). Ao menos 17 frentes de exploração garimpeira em funcionamento ou com indício de atividades foram identificadas este ano.
Durante o governo Bolsonaro, a reativação de garimpos antigos foi uma ação recorrente na Bacia do Xingu, como os garimpos Coringa, Madalena e Manelão nas TIs Baú, Kuruaya e Trincheira Bacajá.
Além da desarticulação da fiscalização, a melhora da cotação do preço do ouro no mercado internacional estimulou o avanço da megaestrutura bilionária que controla a atividade criminosa.
O dossiê detalhou a extensão do garimpo em seis Terras Indígenas e cinco Unidades de Conservação no Xingu.
O caso mais drástico foi a Terra Indígena Kayapó, que concentrou 72% de todo o garimpo na bacia entre 2018 e 2022 e é a TI com a maior área de desmatamento gerado pelo garimpo ilegal de todo o país.
Nesse território, o garimpo destruiu mais em cinco anos do que nas três décadas anteriores.
Existem três frentes principais de exploração no território do povo Mebengokré: nos rios Arraias, Fresco e Branco, e uma quarta um pouco mais discreta, no Riozinho.
No primeiro semestre de 2023, mais de 450 ha de floresta foram derrubados pelo garimpo na TI Kayapó em suas diversas frentes.
O território já havia sido assolado pela atividade nas décadas de 1970 e 1980, impulsionado pela abertura de estradas e pelo aumento da cotação do preço do ouro. Nos anos seguintes, arrefeceu, até voltar com tudo no fim da década de 2010.
Thaise Rodrigues, analista do Instituto Socioambiental (ISA) e autora do dossiê, diz que a realidade encontrada hoje na TI Kayapó é resultado de muitos fatores.
A exploração garimpeira nesse território remonta à década de 1960, anterior à homologação da TI, que ocorreu em 1991.
A retirada mal sucedida dos garimpeiros na TI após a sua homologação, o fácil acesso terrestre às frentes de exploração garimpeira e a proximidade de cidades e municípios com um longo histórico de pilhagem ambiental, criaram condições para a consolidação e avanço da atividade ilegal na Kayapó.
Em 2019, os incentivos diretos do governo à exploração garimpeira somado ao desmonte da fiscalização ambiental, foram determinantes para o crescimento descontrolado do garimpo no local.
Garimpo em UCs
Outra triste novidade dos anos Bolsonaro foi o aumento do garimpo nas Unidades de Conservação.
Em cinco anos, mais de mil hectares de vegetação primária foram derrubados para ocupação de garimpos ilegais nas UCs. Rios tiveram seus leitos destruídos e suas águas assoreadas e contaminadas.
Os impactos não ficaram só na paisagem: peixes, tracajás e outros animais foram contaminados, afetando a sobrevivência de diversas comunidades ribeirinhas que, ao longo desses anos, também sofreram com aliciamento e ameaças.
Em 2023, novos focos de exploração foram identificados na Reserva Biológica (REBIO) Nascentes da Serra do Cachimbo e o funcionamento dos garimpos na Flona de Altamira e Reserva Extrativista (RESEX) Rio Iriri também continuou.
Na RESEX Riozinho do Anfrísio, no Pará, ao menos cinco novos focos de garimpo foram abertos durante a gestão de Bolsonaro, permanecendo ainda uma frente ativa em agosto de 2023 – apesar dos esforços de fiscalização do novo governo. Ao todo, na RESEX do Riozinho do Anfrísio foram derrubadas 42 hectares de floresta e 19 comunidades beiradeiras afetadas pela contaminação do mercúrio.
Outro caso que chama atenção é o da Floresta Nacional (Flona) de Altamira. A UC tem a maior área de desmatamento por conta do garimpo ilegal na Bacia do Xingu. São duas frentes principais: na região noroeste, onde foram 309 hectares derrubados entre 2018 e 2022, e na zona oeste do território, onde foram desmatados 428 hectares no período.
A situação é extremamente preocupante sobretudo porque as áreas de garimpo estão localizadas nas chamadas "Zonas Primitivas" das UCs, isto é, áreas especialmente importantes para preservação e recuperação, do ponto de vista da biodiversidade. Essas zonas são delimitadas para, teoricamente, estabelecer regiões com a mínima intervenção humana para proteção de cabeceiras de rios (áreas de nascente), e recuperação de áreas já degradadas no passado. Mas elas não estão sendo respeitadas, e a degradação só tem aumentado.
Rodrigues aponta que a persistência do garimpo exige uma ação articulada e contínua nesses territórios. “Estamos falando de várias áreas destruídas com o uso de grande maquinário, e capitalizadas por uma rede criminosa. Isso exige um plano de proteção territorial consistente, com manutenção de bases de proteção em locais estratégicos e operações regulares para desativar os focos de garimpo”, aponta.
Segundo ela, essas ações devem incluir a inutilização de toda a infra-estrutura associada, como pistas clandestinas, estradas e a destruição completa do maquinário utilizado na extração de ouro.
Fiscalização e persistência
O garimpo tem se mostrado persistente mesmo após sucessivas operações feitas pelo Ibama, que tem intensificado as ações desde a mudança do governo. No garimpo do "Manelão", por exemplo, uma operação feita em abril destruiu equipamentos avaliados em R$ 304.500, segundo informações do próprio Ibama. Mesmo assim, novas cavas de exploração foram detectadas no primeiro semestre de 2023.
O Manelão, situado na Terra Indígena Trincheira Bacajá, foi aberto pela primeira vez ainda na década de 1970, e reativado em meados da década passada. Entre 2018 e 2022, foram detectados mais de 85 hectares de floresta derrubadas.
Situação similar ocorre na Terra Indígena Apyterewa, do povo Parakanã. O Ibama realizou a operação em 2023, mas o problema persiste. “Ainda existe garimpeiro. A aldeia Kaete fica muito próxima dos pontos de garimpo e os indígenas que moram nessa aldeia escutam até a zoada do motor”, afirma Wenathoa Parakanã, liderança e presidenta da associação Tatooa.
O garimpo já havia sido um problema no passado, foi combatido e voltou a assolar o território dos Parakanã em 2017. Durante os anos do governo Bolsonaro, o garimpo se expandiu, financiado por pessoas ligadas à grilagem de terras, um problema estrutural no território.
Em 2018, um novo garimpo conhecido como Pista Dois foi aberto ao norte da TI no afluente do igarapé Bom Jardim. Em 2019 e 2020, novos focos também surgiram. A região já atingiu a marca de mais de 208 hectares derrubados pela exploração garimpeira entre 2018 e 2022. Em 2023, dados de satélite confirmam a situação relatada por Wenathoa: a atividade segue em garimpos que haviam sido abertos em anos anteriores.
“O risco para nós, Parakanã, é sobretudo a poluição da água, que tá ficando suja, que é o garimpo que fica lá para cima, e tem várias aldeias no Rio Bom Jardim, a Kaeté, a Kanaã, Tivé, Itaeté, Catu, Paranapiana. O peixe pode estar contaminado e a gente não sabe”, diz ela. Além disso, os Parakanã são constantemente ameaçados pelos garimpeiros.
Wenathoa se refere à contaminação por mercúrio. O metal pesado é utilizado no processo de garimpagem, para amalgamar o ouro. Depois, ele é queimado, restando apenas o metal nobre. Sua queima gera emissões tóxicas na atmosfera, que contaminam o solo e a água. Quando despejado em rios e lagos, o mercúrio se converte em sua forma mais tóxica, o metilmercúrio, que é consumido pelos peixes e por outros animais aquáticos.
Estudo de contaminação do mercúrio em peixes lançado em 2023 pelo ISA, em parceria com o Iepé e Greenpeace, mostrou índices de consumo de mercúrio acima dos níveis considerados seguro para a saúde nos centros urbanos de São Félix do Xingu e Altamira, cidades no entorno dos territórios ameaçados do Xingu.
Dados alarmantes também foram encontrados em outro estudo, feito em 2018, com base nos peixes dos rios Curuá e Baú, que abastecem a Terra Indígena Baú. “Uma criança que foi gestada e se desenvolveu tendo acesso a altos índices de mercúrio pode ter problemas de desenvolvimento, motores, neurológicos e isso é pro resto da vida. Muito mais que longo prazo”, afirma Estevão Senra, pesquisador do ISA.
A degradação e fragilidade da Apyterewa exigem esforços permanentes, articulados entre vários órgãos, além da completa desintrusão dos ocupantes não-indígenas na área “A solução é que tire todas as pessoas que tão lá dentro da nossa TI Apyterewa, antes que fazendeiros tirem todas as árvores e poluam toda água. É da floresta que a gente tira o nosso alimento, a água. Se não tiver água limpa, não conseguimos sobreviver, como os animais. Queremos água pura e a floresta em pé para podermos respirar o oxigênio puro”, exige Wenathoa.
Outro caso de constante preocupação é o da Terra Indígena Baú, que sofreu com a intensificação do garimpo ilegal nos últimos anos e com sucessivas ameaças contra lideranças e comunidades. Operações da Polícia Federal e do Ibama em 2022 conseguiram desativar grande parte dos garimpos e de suas estruturas no território. Mesmo assim, a partir de imagens de satélite foi possível identificar a retomada de atividade em dois garimpos: o Pista Velha e o Jurandi. Trata-se de um exemplo na prática de que esse tipo de crime exige constante atenção das autoridades.
No dossiê, Rodrigues também detalha como o combate deve contar com o apoio de agências reguladoras para garantir a desarticulação da logística, com a fiscalização das redes de comunicação (Anatel), da operação irregular de aeronaves (Anac) e do controle da venda de combustível (ANP).
“É importante pensar na conscientização e no estímulo a uma cadeia econômica sustentável nessas regiões. A economia da região amazônica precisa se apoiar na sociobiodiversidade, de forma que as comunidades locais tenham uma renda obtida de forma sustentável, não ilícita e não predatória, que garanta os recursos naturais para as próximas gerações”, conclui.
Estrago deixado pelo garimpo ilegal
Entender a dimensão da destruição provocada pelo garimpo ilegal na Bacia do Xingu é importante porque, mesmo com a recuperação da fiscalização ambiental em 2023, as consequências da falta de controle dos anos passados devem perdurar por décadas.
Hoje, a garimpagem na Amazônia é feita de forma mecanizada e com alto investimento. Nesse tipo de exploração, o meio ambiente é destruído, e o dano pode permanecer por muitos anos.
“O garimpo, como é feito hoje, remove a cobertura do solo todo. Você praticamente não tem mais estrutura de solo para que uma vegetação mais diversa possa colonizar essa área. Depois de 30 anos, uma área destruída pelo garimpo ainda não tem a floresta recuperada, apenas uma vegetação muito pobre e escassa em recursos”, explica Senra.
Com grandes mangueiras, às margens do rio são convertidas em lama, que passam por outras máquinas para a extração de ouro. Nesse processo, cursos d’água menores, como igarapés são destruídos e tornam-se lagos estéreis. Em consequência, os rios maiores são assoreados por essa lama. Esse é outro tipo de impacto que ficará marcado no ambiente por décadas.