Diálogos entre indígenas das bacias dos rios Tiquié e Içana aconteceram no âmbito da Cooperação e Aliança no Noroeste Amazônico (Canoa)
Por meio do fortalecimento cultural e uma agenda territorial transfronteiriça, os encontros da Cooperação e Aliança no Noroeste Amazônico (Canoa) tem como propósito promover cuidados relacionados ao ecossistema e à biodiversidade cultural da região norte do Rio Amazonas. Para isso, torna-se fundamental o diálogo e troca de experiências entre as comunidades indígenas no Rio Tiquié e no Rio Içana, na fronteira entre Brasil e Colômbia.
Em maio de 2024, depois de mais de uma década, aconteceu o reencontro da Canoita no rio Tiquié, em que a pauta da violência contra as mulheres indígenas surgiu antes mesmo de chegarmos em Bellavista, comunidade colombiana que sediou o encontro.
No encontro da Canoa, realizado em Punta Tigre em 2023, no Rio Içana, surgiu a demanda de realizar um encontro de mulheres Koripako e Baniwa, que aconteceu em julho de 2024, na comunidade Camanaus, fronteira entre Brasil e Colômbia. Nesse encontro, o intercâmbio de experiências e conhecimentos entre as mulheres indígenas foram relacionados ao artesanato, a saúde e bem estar das mulheres do Rio Içana.
Pauta de violência contra a mulher na Bacia do Rio Tiquié
Durante a subida no Rio Tiquié para a realização da Canoita na comunidade Bellavista, no período de 16 e 20 de maio de 2024, escutamos diversas histórias — narradas por homens indígenas — sobre casos de violências físicas contra mulheres naquela região. Alguns casos ganharam maior destaque nas narrativas pela percepção de brutalidade e gravidade explicitada pelos interlocutores.
A primeira história contada foi narrada por um viajante, indígena da região, que relacionou dois casos de violência física contra mulheres e um caso de suicídio de uma jovem com o uso exagerado de bebidas alcoólicas. Durante a conversa, foi mencionado que, ao contrário da Colômbia, no Brasil esses casos ficam sem resoluções.
A comparação deve-se a um caso recente de feminicídio, em investigação, que aconteceu em comunidade indígena colombiana no Rio Tiquié. Também ressaltou que os profissionais de saúde do Polo Base, localizado na área de abrangência em que tais violências ocorreram, realizaram palestras sobre o enfrentamento da violência contra a mulher, mas que os agressores não compareceram.
Alguns homens que comentaram a respeito das violências sofridas pelas mulheres no percurso do Tiquié acreditam que as mulheres indígenas se sentem amparadas pela Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha e, por isso, “querem ser mais que os homens”, e que também “cometem violências contra os homens”. Outros entendem que as próprias mulheres se alcoolizam e, por isso, são violentadas.
Já em Bellavista, no igarapé Abiu, afluente do Alto Tiquié, as mulheres brasileiras ressaltaram a demanda para falar e estudar, de forma contínua, a questão de violências contra as mulheres nos encontros das Canoitas, para que juntas possam conhecer melhor as leis que devem protegê-las.
Em um segundo momento de atividade, junto com as companheiras colombianas, a maioria concorda que essa temática é fundamental, tendo em vista os acontecimentos frequentes em ambos os países, nos territórios das mulheres presentes.
Bem-estar da mulher indígena e convivência comunitária na Bacia do Içana
Para além das diferenças socioculturais, a subida pelo Içana para a realização do I Encontro de Mulheres Koripako e Baniwa, no período de 22 a 24 de julho, foi completamente diferente que a do Tiquié. Foram poucos os encontros com viajantes e moradores das comunidades. Desse modo, também foram poucas as conversas e relatos sobre o território do Içana.
O I Encontro de Mulheres Koripako e Baniwa teve três momentos para abordar as temáticas de interesse das mulheres indígenas: i. práticas e conhecimentos associados à produção de artesanatos no que se refere à proteção e revitalização do trabalho da mulher no manejo do território; ii. saúde e bem-estar das mulheres com o objetivo de valorizar as práticas culturais e conhecimentos tradicionais das mulheres; iii. bem-estar das mulheres e a boa convivência comunitária, que objetivou a promoção de reflexões das próprias mulheres indígenas sobre seu bem-estar, cuidados com a vida comunitária e violências no território.
Durante a atividade, uma liderança indígena fala sobre “violência intrafamiliar”. A fala chamava a atenção para a importância de falar sobre o tema e convidava os homens a estarem presentes para ouvir o que as mulheres têm vivenciado no território. Também tivemos conhecimento sobre casos de violência sexual contra crianças e agressões físicas contra mulheres indígenas, além da violência psicológica que apareceu nos grupos de trabalho.
Como observação inicial, percebe-se que as mulheres Koripako e Baniwa compreendem que a boa convivência comunitária as deixam felizes, evidenciando um cuidado com o coletivo para o bem-estar das mulheres. O acesso à comida no território, a aproximação dos filhos e a união entre os indígenas são alguns dos exemplos apresentados pelas mulheres.
Nessa mesma perspectiva, porém, a falta de união e de saúde na comunidade as deixam tristes. Além disso, compartilharam que, quando o marido não ajuda no trabalho da roça e com a produção dos artesanatos, também há o sentimento de tristeza.
Parcerias e trabalhos do movimento de mulheres indígenas do Rio Negro
A dificuldade em abordar nos territórios as violências vivenciadas pelas mulheres ainda é um grande desafio. Compreender o contexto cultural, a língua indígena falada pelas mulheres, bem como as relações de aliança, parentesco, organização social e poder são fundamentais para os estudos sobre (formas de lidar com) violências de gênero contra as mulheres indígenas. Nesse sentido, torna-se necessário mais estudos e pesquisas sobre a temática, tendo em consideração as especificidades de cada povo e comunidade.
Em São Gabriel da Cachoeira, o Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (DMIRN/FOIRN) vem desenvolvendo um trabalho consistente de pesquisas, conversas e oficinas no enfrentamento às violências contra as mulheres indígenas, em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e o Observatório da Violência de Gênero no Amazonas da Universidade Federal do Amazonas (OVGAM/UFAM).
Para compreender melhor essa temática de violência, o DMIRN apoiou e participou do desenvolvimento de um processo de pesquisa que inclui trabalho de campo etnográfico, entrevistas, rodas de conversas, levantamento e sistematização de notícias, trabalhos colaborativos com instituições locais e, especialmente, parcerias com pesquisadoras e professores das universidades mencionadas.
Os trabalhos realizados envolvem dados quantitativos e qualitativos relacionados a Boletins de Ocorrência com vítima mulher na Delegacia Interativa de São Gabriel da Cachoeira, como apresentado no relatório Tecendo a vida sob braços fortes: caracterização da violência contra mulheres na cidade de São Gabriel da Cachoeira/AM, produzido em 2023 pelo OVGAM/UFAM.
Segundo dados desse relatório, referentes ao período de 2010 a 2019, vemos que 66,9% das violências são cometidas por homens. Além disso, 98,8% das vítimas não tiveram sua etnia/raça informada, o que demonstra uma falta de dados sobre estas especificidades.
A caracterização da violência contra mulheres reportada e registrada na delegacia da cidade de São Gabriel da Cachoeira pode ser visualizada na tabela abaixo.
É importante mencionar que esses dados não correspondem à realidade quantitativa de violências vivenciadas pelas mulheres indígenas do município de São Gabriel da Cachoeira, porque não estão registrados os episódios de violência no interior do município.
Sempre vale ressaltar que tanto processos de alcoolização quanto a violência contra mulheres não ocorrem apenas nos territórios e com povos indígenas. No entanto, no Brasil, há uma invisibilidade das violências contra as mulheres indígenas quando olhamos para os dados oficiais.
Na pesquisa “De documentos, cactos e vírus: violência sexual, mulheres indígenas e Estado em São Gabriel da Cachoeira” (2022), podemos ver um Estado tecnicamente precário quando se trata de casos de feminicídios e violências sexuais contra mulheres indígenas. Um exemplo é a ausência de um médico legista na cidade que atue frente a casos recorrentes de “afogamento” e “estrangulamento” de mulheres que, muitas vezes, são lembrados por parentes e moradores da cidade como sendo mortes que envolvem violência sexual. Geralmente, a violência sexual não é registrada nas Declarações de Óbitos, por exemplo.
Para além da falta de registro da violência, também ocorre a falta de informação sobre raça e etnia nos documentos, o que dificulta a realização de trabalhos especializados e diferenciados no Rio Negro. A diversidade étnica e linguística, a subnotificação de casos de violência contra a mulher e a falta de documentação pessoal para registros nas instituições do Estado são aspectos relevantes em São Gabriel da Cachoeira.
De acordo com informações do Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (DSEI-ARN), no primeiro trimestre de 2024, sete mulheres que residem nas comunidades indígenas do Tiquié estão sendo acompanhadas devido às situações de violências. Os dados mostram ainda que, no mínimo, 40 casos de violência contra a mulher no Rio Tiquié foram notificados nos anos de 2021 e 2022 pelo DSEI-ARN. Além dessas informações, nos dados disponibilizados pela instituição consta que 12 pessoas estão sendo acompanhadas pela equipe de saúde devido ao uso prejudicial de bebidas alcoólicas.
Já no Içana, no primeiro semestre de 2024, são quatro os casos de violência contra a mulher que estão em acompanhamento pelo DSEI-ARN. Em 2021 e 2022, nove casos sobre violências contra a mulher foram notificados e, apesar dos relatos frequentes sobre o pouco consumo de bebidas alcoólicas na região, o DSEI-ARN registrou que há o acompanhamento de 20 pessoas que estão em situação de uso abusivo do álcool.
Esses dados são importantes para evidenciar as situações de violências que as mulheres indígenas vêm vivenciando dentro de seus territórios. Violências que recorrentemente aparecem nos discursos e relatos de homens e mulheres, jovens e adultos, na cidade e nas comunidades indígenas. Observamos que tal como o alto indíce de violências, o processo de alcolização também tem se tornado um problema grave de saúde pública no Brasil, e no Rio Negro não é diferente.
Para além das pesquisas e trabalhos de caráter mais quantitativo, o Departamento de Mulheres Indígenas também desenvolveu trabalho colaborativo que apresenta informações em uma linguagem acessível sobre os procedimentos envolvidos em casos de violências contra a mulher, a criança e o adolescente, que é a cartilha Violência doméstica e violência sexual em tempos de pandemia – redes de apoio e denúncias: você não está sozinha!
Para além dos acessos jurídicos do Estado, a cartilha orienta as mulheres a recorrerem às redes de alianças com amigas e parentes, bem como com recursos mais evidentes na própria cultura, como a realização de benzimentos e o uso de determinadas plantas.
Em 2021, o DMIRN, junto com o ISA, a FSP/USP e o OVGAM/UFAM, desenvolveu o primeiro módulo de formação de Promotoras Legais Populares Indígenas que teve como objetivo formar as mulheres sobre seus direitos, Estado, Leis, documentos e, também, que pudesse proporcionar trocas de experiências e conhecimentos para se pensar e construir estratégias comunitárias de enfrentamento às violências que sofrem.
No inicío de 2024, o Departamento de Adolescentes e Jovens Indígenas do Rio Negro (DAJIRN) da FOIRN, junto com o ISA e o DMIRN, produziu com instituições locais a cartilha Cuidados com o uso de bebidas alcoólicas na região do Rio Negro, com o objetivo de oferecer orientações sobre os prejuízos do consumo exagerado de bebidas alcoólicas industrializadas, problemática que aparece em diversos relatos interseccionada com as violências contra as mulheres, casos de suicídios e acidentes na região do Alto e Médio Rio Negro.
Apesar dos esforços do movimento de mulheres indígenas do Rio Negro em articular trabalhos com instituições locais e de pesquisa, as violências são experiências cotidianas na vida delas. Assim, elas questionam constantemente sobre a proteção que o Estado deveria proporcioná-las.
Diferenciam-se de mulheres não indígenas que, às vezes, conseguem ter seus direitos garantidos, como trouxe uma das participantes durante a primeira atividade em grupo na Canoita em Bellavista: “Essa lei Maria da Penha serve para quê? É só para as mulheres brancas e não serve para as indígenas? Vemos vários tipos de violências e não sabemos como resolver, e nunca é discutido nas reuniões [...] Acho que é um bom tema para ser trabalhado, não só com as mulheres, mas com os homens e as crianças também. Às vezes falam que é porque estão bêbados, mas conscientes mesmo fazem essas coisas.”
Para atender algumas das demandas apresentadas durante as atividades no Tiqué, as mulheres indígenas solicitaram a realização de encontros de mulheres no âmbito da Canoita. O intuito desses encontros seria proporcionar trocas de experiências, conhecimentos e saberes entre elas, para aprender sobre culinária, comidas típicas, novas técnicas de produção de artesanatos e, especialmente, para abordar e conhecer os direitos das mulheres indígenas para o enfrentamento das violências.
Já no I Encontro de Mulheres Koripako e Baniwa, as mulheres demonstraram interesse nos saberes sobre a saúde e bem-estar da mulher, bem como na troca de conhecimentos relacionados à produção de artesanatos, em especial a cerâmica, e também ao processo de comercialização desses produtos locais.
Observamos que intercâmbios como estes fortalecem as mulheres e podem ser boas estratégias de cuidado e troca de experiências e conhecimentos entre elas. Além disso, apresentam-se como uma estratégia fundamental para que o movimento de mulheres indígenas se aproxime cada vez mais das mulheres que estão nos territórios mais distantes, para que adquiram e produzam conhecimentos para fomentar ainda mais os trabalhos de enfrentamento às violências no Rio Negro e o bem-estar das mulheres indígenas.