Determinação aponta abusos da União, incluindo as Forças Armadas. É a primeira vez que o Estado brasileiro é condenado internacionalmente por violações contra quilombolas

Com informações da Justiça Global
Em uma decisão histórica, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorIDH) condenou o Brasil por violar direitos fundamentais de quilombolas durante a instalação e operação da base militar de lançamento de foguetes de Alcântara (MA). É a primeira vez que o Estado brasileiro, inclusive as Forças Armadas, é condenado internacionalmente por medidas e políticas contra essas populações.
As violações envolvem os direitos à titulação coletiva do território, à moradia, à livre utilização e circulação na área, à consulta “livre, prévia e informada”, entre outros. A CorIDH considerou que o conjunto dessas ações comprometeu o “projeto de vida coletivo” de 171 comunidades.
Como reparação e compensação, a Corte determinou que o governo titule os 78,1 mil hectares do território tradicional em até três anos e pague US$ 4 milhões às associações dos moradores. A administração federal também deverá fazer a consulta “livre, prévia e informada” sobre as medidas que os afetem, um ato público de reconhecimento de sua responsabilidade e a instalação de uma “mesa de diálogo permanente” com os quilombolas.
Resumo da decisão (em português)
Decisão na íntegra (em espanhol)
A instalação militar foi construída no início dos anos 1980. Mais de 300 famílias de 32 comunidades foram expulsas de suas casas. Ao longo de quatro décadas, o governo apresentou vários planos e tomou medidas para expandir o centro aeroespacial, em prejuízo das comunidades. A gestão de Jair Bolsonaro chegou a celebrar um tratado com os EUA, em 2019, para o uso comercial da base.
Localizado na região metropolitana de São Luís, Alcântara tem mais de 18 mil habitantes e a maior população quilombola do país em termos proporcionais: quase 85% do total, segundo o Censo do IBGE de 2002. No total, são 3,3 mil famílias, distribuídas em mais de 170 comunidades, vivendo sobretudo de agricultura de pequena escala e da pesca artesanal. A ocupação remonta ao século XVIII.

Sentença histórica e acordo
“No geral, a sentença está muito boa. É uma sentença histórica”, avalia Danilo Serejo, cientista político e assessor do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), uma das organizações responsáveis por entrar com a ação na CorIDH em 2001. “Agora a gente entra naquela fase que é de conseguir fazer com que o Estado cumpra a sua tarefa de implementar essa sentença”, complementa. Ele reforça que a decisão proíbe a expansão do centro aeroespacial.
“Não é uma recomendação, não é uma manifestação, não é uma sugestão. É uma determinação que vem do sistema interamericano para que o Estado brasileiro cumpra”, reforça Melisanda Trentin, coordenadora do programa de Justiça Socioambiental da Justiça Global, outra das organizações responsáveis pela ação (leia mais no quadro ao final da reportagem).
“O Brasil respeita o sistema interamericano de direitos humanos e tomará as medidas necessárias para atender ao que foi estabelecido na decisão”, afirmou o advogado-geral da União, Jorge Messias, em nota da Advocacia-Geral da União (AGU). O governo teria conseguido demonstrar que a “implementação de muitas das determinações da Corte já está em curso”, de acordo com ele.

“A AGU agora analisará os diversos aspectos da sentença quanto a eventual cabimento de pedido de esclarecimentos à Corte IDH, no prazo disponível de 90 dias. Também elaborará um Parecer de Força Executória (PFE) para comunicar aos órgãos competentes o teor da decisão e indicar a necessidade de seu cumprimento, de acordo com as obrigações assumidas internacionalmente pelo Estado brasileiro”, continua o texto.
Em setembro, o governo fechou um acordo com os quilombolas que estabeleceu as condições formais para o início da titulação do território e cancelou o plano de expansão do centro aeroespacial. A criação do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) que viabilizou o entendimento ocorreu em abril de 2023, às vésperas da realização da audiência do julgamento concluído agora. Na avaliação de organizações da sociedade civil que acompanham o caso, a administração federal acelerou e fechou as tratativas sob pressão do processo.
Na audiência em 2023, em Santiago do Chile, o governo brasileiro já havia reconhecido parte de sua responsabilidade e feito um pedido de desculpas. Pouco depois, as organizações responsáveis pela ação alegaram que a manifestação era incompleta e que a gestão federal não propôs medidas efetivas para a imediata titulação e reparação dos quilombolas.
Em julho de 2024, em outra decisão histórica, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) já havia recomendado que o Brasil titulasse as terras e respeitasse o direito à consulta das comunidades. Também foi a primeira vez na história que o órgão decidiu sobre um caso de populações tradicionais afrodescendentes no mundo.

Como funcionam as decisões da CorIDH?
Os países que subscrevem a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) são obrigados a cumprir as decisões da CorIDH, mas não há previsão legal de sanções concretas, com maiores consequências, se não o fizerem, como no caso de multas impostas pelo Judiciário nacional, por exemplo. O descumprimento dessas determinações implicaria, porém, um desgaste diplomático relevante.
“A ausência de mecanismos jurídicos internacionais que obriguem os Estados signatários da Convenção Americana de Direitos Humanos a cumprir com as decisões da CorIDH não significa que eles não estão obrigados a cumpri-las”, diz o advogado popular do Instituto Socioambiental (ISA) Fernando Prioste.
“A assinatura de convenções e tratados internacionais em direitos humanos pressupõe a boa-fé e o interesse dos Estados em cumpri-los, incluindo a necessidade de cumprir decisões da CorIDH”, prossegue.
Prioste acrescenta que essas decisões também são uma referência importante para julgamentos de casos semelhantes no Judiciário brasileiro. Além disso, podem ser usadas como ferramentas para transformações estruturais que efetivem os direitos quilombolas, por exemplo, para alterar, corrigir ou propor políticas públicas.
