Apesar de sua importância, há morosidade significativa do Estado brasileiro em garantir o direito a territórios titulados para a população quilombola
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Símbolo de concretização da luta política quilombola, o Decreto 4.887/2003, que “regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, completa duas décadas neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.
Para Vercilene Dias, advogada da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), o decreto “traz conceitos importantes sobre a política quilombola, sobre quem são os quilombolas”.
“[São] Direitos que são reconhecidos também em tratados internacionais, como o direito à autodeterminação, à autonomia das comunidades. Uma outra questão que é muito marcante no decreto é que ele rompe com a lógica do direito capitalista, ou seja, o direito ao território é coletivo, o direito à propriedade é coletivo. No direito civil só existe a propriedade individual, então ele rompe essa lógica do capital, da terra-mercadoria e traz a terra-coletividade”.
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“Uma outra questão que é muito marcante no decreto é que ele rompe com a lógica do direito capitalista, ou seja, o direito ao território é coletivo, o direito à propriedade é coletivo. No direito civil só existe a propriedade individual, então ele rompe essa lógica do capital, da terra-mercadoria e traz a terra-coletividade.”
Direito em xeque
Desde antes de ser instituída formalmente, até se tornar o Decreto 4.887 propriamente dito, a política de titulação foi questionada várias vezes em diversas instâncias. Primeiramente na forma do Decreto 3.912/2001, do presidente Fernando Henrique Cardoso. O problema com esse decreto era que ele estabelecia um marco temporal para o reconhecimento das comunidades quilombolas.
“Como entrar em um marco temporal se a gente estava na terra, mas não tínhamos o direito de ter o documento dela? Não era permitido dar título e nem regularizar cartorialmente as terras das comunidades quilombolas”, conta Sandra Andrade da coordenação executiva da Conaq.
O Decreto 3.912 foi revogado passando a vigorar o 4.887, que foi a primeira legislação feita por um governo com a participação das comunidades quilombolas.
“Acho que é uma das legislações construídas no Brasil mais legítima para a população quilombola até hoje. Acho que para construir um instrumento os destinatários devem participar da discussão da construção desse instrumento e acho que o decreto inova nesse sentido”, comenta Vercilene.
Apesar da construção coletiva e favorável às comunidades quilombolas, alguns setores continuaram a deslegitimar o 4.887. Na época, o partido Democratas (DEM), antigo Partido da Frente Liberal (PFL), entrou com a Ação de Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239 no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade do decreto.
“Assim que foi publicado, eles entraram com a inconstitucionalidade do decreto, o que nos deixou muito revoltados, porque quem pediu o decreto foram eles. E aí, no mesmo ano, entrou no STF e ficou por 15 anos. Foram 15 anos de muita luta e sofrimento, mas o movimento estava unido e firme na garantia de proteção desse decreto que daria condições para implementação da política nas comunidades quilombolas”, relembra Andrade.
Um ponto específico levantado pela ADI 3.239 foi a conceituação de quem eram os remanescentes de comunidades quilombolas e os requisitos para a autodeterminação desses povos.
“O decreto traz o critério da auto identificação coletiva. E aí eles questionavam se todo mundo que dissesse que era quilombola poderia ser reconhecido enquanto quilombola. Não é assim. Tem os critérios estabelecidos ali no artigo 2 e as comunidades quilombolas, que vão decidir se o indivíduo que se declarar quilombola é quilombola ou não”, explica Dias.
Além disso, foi questionada também a formalidade, sob o argumento de que o decreto não era o instrumento que deveria regulamentar o artigo 68 do ADCT, que deveria ser feito por meio de lei.
Consolidação do marco jurídico
Em 2018, a ADI 3.239 foi julgada e rejeitada pela maioria dos ministros do STF que entendeu que o Decreto 4.887 era constitucional e estava de acordo com o que diz o artigo 68 do ADCT.
Apesar de todas as complicações e dos questionamentos de direitos quilombolas, Vercilene considera que todos os entraves vividos no sistema de justiça colaboraram para dar visibilidade a um povo excluído que precisava ter seus direitos reconhecidos e garantidos
“Eu acho que a gente teve avanços significativos do ponto de vista de reconhecimento do sujeito quilombola enquanto sujeito de direito, avanço na política pública em geral para a população quilombola. No entanto, acho que um dos principais direitos escritos nesse decreto, que é o direito ao território coletivo titulado das comunidades, pouco avançou nesses 20 anos”, pondera.
Titulação de territórios no Brasil
Segundo dados do último censo demográfico do IBGE, o Brasil possui mais de 1,3 milhão de quilombolas, dos quais menos de 5% estão em territórios demarcados. São quase 6 mil comunidades quilombolas espalhadas pelo país e apenas 147 tiveram seu título emitido.
“20 anos da política, uma política totalmente desestruturada, que não teve recurso, não teve investimento, teve apagamento das políticas públicas em relação aos territórios. Agora, a gente tá vivendo um processo de reconstrução, mas dentro desse processo é importante pensar que a gente não reconstrói nada se não tiver dinheiro, se não tiver infraestrutura, não tiver servidores competentes pra trabalhar naquela pauta”, aponta Biko Rodrigues, coordenador nacional de articulação da Conaq.
“Essa não regularização tem causado muitos conflitos com mortes, com assassinatos. Tudo isso é parte dessa morosidade do Estado, que não regulariza aquilo que tá na Constituição, que não garante terra às comunidades quilombolas.”
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Principais desafios
Biko acredita que um dos grandes problemas para a efetivação da política de titulação é o sucateamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), autarquia ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e responsável por executar a reforma agrária, realizar o ordenamento fundiário nacional e emitir títulos de territórios quilombolas.
“Ao longo desses anos o Incra não se capacitou, não se profissionalizou para dar conta da demanda dos territórios quilombolas e isso é uma das grandes dificuldades. Há um certo engessamento da política quilombola dentro do Incra”.
Para o assessor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA) Fernando Prioste, o “Estado brasileiro precisa elaborar e colocar em prática um plano nacional de titulação dos territórios”. Para o advogado, se não houver uma noção mais precisa da demanda por titulação e dos gargalos existentes, não será possível avançar de forma significativa. “Mas apenas o plano não adianta, é preciso enfrentar o racismo dos ruralistas, que historicamente impede a titulação quilombola”, complementa.
O Incra foi perguntado sobre os principais desafios em relação à titulação de territórios quilombolas no Brasil e como os Três Poderes e o Estado podem colaborar para facilitar e dar celeridade a esse processo. Entretanto, até o momento, nenhuma resposta foi dada.