Dados inéditos indicaram que Nordeste e Amazônia Legal abrigam a maioria das pessoas quilombolas, que representam 0,65% da população brasileira
Um milhão, trezentos e vinte e sete mil, oitocentos e dois (1.327.802). Esse é o número de pessoas identificadas como quilombolas pelo Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pela primeira vez na história do Brasil, essa população foi incluída na pesquisa que acontece há 150 anos e apresenta o retrato demográfico, geográfico e socioeconômico do país.
Os dados foram apresentados no evento de divulgação dos resultados do Censo 2022 “Brasil Quilombola: quantos somos, onde estamos?”, nesta quinta-feira (27/07), no auditório do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Estavam presentes representantes de órgãos e de ministérios do governo, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e de organizações da sociedade civil.
“Hoje o Brasil sabe quantos são os quilombolas”, disse o presidente interino do IBGE, Simar Pereira, que durante sua fala destacou que o Censo quilombola, especificamente, foi realizado por meio de um treinamento diferenciado dos recenseadores e contou com a participação de guias das próprias comunidades.
“Para chegar a esse número o Censo quilombola foi feito seguindo convenções importantes. Seguiu a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que recomenda consulta às lideranças em todas as etapas do processo de pesquisa”. O presidente citou ainda a frase de uma importante liderança do movimento quilombola, Maria Rosalina dos Santos, sobre esse momento histórico: “Quando somos parte do processo, as coisas acontecem e saem com a nossa identidade”.
Voz quilombola
Pessoas quilombolas que foram contadas também puderam compartilhar sua experiência nesse momento histórico. “Pra gente foi de extrema importância falar ‘estamos contando quilombolas’. Tocou muita gente. Pessoas que na cidade foram pra lá pra trabalhar, que não estavam lá [na comunidade] há um tempinho, ao ouvir ‘Você se considera quilombola?’ Aí pôde afirmar, pôde dizer quem era, pôde de certa forma tomar seu lugar e ser contado. A gente se sente privilegiado e nem deveria, mas a gente se sente, e a gente é muito grato por isso. A gente sabe que esse 1 milhão vai bem mais além”, disse Dandara Mendes, do quilombo Conceição das Crioulas, do município de Salgueiro (PE).
Assim como Dandara, Gisely Cordeiro dos Santos, do município de Boa Vista, do território de Alto Trombetas (PA), pôde compartilhar o orgulho que sentiu ao fazer parte de uma comunidade que foi contabilizada. “Essa participação vai trazer muito orgulho pra minha comunidade. Nós quilombolas podemos estar onde nós quisermos. Essa luta continua. Apesar dos números, eu acredito que eles se estendem, eles estão muito além. Nós como quilombolas precisamos que políticas públicas sejam criadas pra atender as nossas necessidades”, destacou.
Políticas públicas para quilombolas
“Ei meu pai quilombo eu também sou quilombola! A nossa luta é todo dia e toda hora” foi assim, cantando, que Maria Rosalina dos Santos, da Coordenação Executiva da Conaq do Piauí, iniciou sua fala. “Esse refrão é só pra dizer pra nós quilombolas que hoje é um marco histórico em nossas vidas, nas vidas de nossos quilombos, porque se nós já vínhamos na luta, agora nós temos que multiplicar essa luta em busca da efetivação de políticas públicas para essa população. Para nós”.
Rosalina também mandou um recado para as autoridades presentes: “Até então não efetivavam políticas públicas para quilombolas porque não sabiam onde estávamos. A partir desse resultado, ele não é só pra nos tirar da invisibilidade, mas ele é realmente para dizer que não podemos mais lidar com políticas públicas com quilombola no imaginário. É preciso tratar políticas públicas para quilombolas com quilombolas e para quilombolas. Aqui nós não provamos, porque nós não precisamos provar nada, mas nós estamos revelando que nós somos capazes de ajudar a construir um país onde cabe todo mundo. Um país de inclusão e de oportunidade para todos”.
Secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Ciganos, do Ministério da Igualdade Racial (MIR), Ronaldo dos Santos destacou que é preciso uma reparação do Estado brasileiro para com os quilombolas e enfatizou a necessidade do desenvolvimento da política de regularização fundiária no país.
“Está evidenciado quantos nós somos, quem nós somos, onde nós estamos. E eu acho muito importante que isso seja comunicado dessa maneira em todos os ministérios estratégicos. Mas o que fica evidenciado também, e eu acho que precisa ser pauta do governo brasileiro nos próximos ciclos, é que menos de 5% dos quilombolas do Brasil vivem em territórios demarcados. E isso altera significativamente o desafio do Brasil no que diz respeito à política de regularização fundiária, que é um dos pontos mais estratégicos do programa Aquilomba Brasil.”
A pesquisa mostrou que, apesar da quantidade de quilombolas recenseados, os que se encontram em territórios oficialmente delimitados ainda são poucos: 494 no total. Para o Censo, foram considerados aqueles que apresentavam alguma delimitação formal no acervo fundiário do Incra ou dos órgãos com competências fundiárias nos estados e municípios na data de 31 de julho de 2022 (delimitado, estudo técnico, relatório técnico de identificação e delimitação, portaria, decreto, título). Portanto, de população residente nos territórios quilombolas oficialmente delimitados, o resultado apontou 203.518 mil pessoas, sendo 82,56% delas (167.202) quilombolas.
As regiões com maior número de pessoas quilombolas em territórios oficialmente delimitados são Nordeste, com 89.350 mil e Norte com 52.012 mil. Em seguida a região Sudeste com, 14.796 mil, Centro-Oeste com 7.208 mil e Sul, com 3.836 mil.
As regiões com maior número de pessoas quilombolas fora de territórios quilombolas oficialmente delimitados seguem o mesmo padrão dos territórios oficialmente delimitados. Nordeste: 816.065 mil; norte: 114.057 mil; sudeste: 167.509 mil; centro-oeste: 37.749 mil e sul: 25.220 mil.
A soma dos quantitativos de pessoas quilombolas fora de territórios quilombolas na Bahia e no Maranhão (616.336) é superior à soma das pessoas quilombolas nessa mesma situação em todas as demais unidades federativas (544.264).
“É um momento da gente olhar realmente para a política pública, para o nosso orçamento, para as nossas escrituras e pensar como que o Estado se compromete realmente com essa demanda, que é uma demanda histórica e produzida pelo próprio Estado, porque o processo de escravização foi o Estado que implementou. Então, agora, o Estado precisa fazer essa reparação”, concluiu o secretário.
“É muito importante quando a gente destaca por exemplo a questão territorial, é muito importante a gente reconhecer que temos um atraso significativo. E que esse atraso é fruto do racismo fundiário existente no país. Quando houve a abolição da escravatura, o nosso povo não teve acesso à terra. Titular os territórios quilombolas é um avanço significativo pra dar direito a essas comunidades quilombolas. Esperamos que a partir desses dados possamos avançar na regularização desses territórios”, enfatizou Biko Rodrigues de Moraes, da coordenação executiva da Conaq.
O Censo é uma importante ferramenta demográfica de caracterização da população brasileira. Apresenta dados sobre fecundidade, natalidade, mortalidade, pirâmide etária, migração e deslocamentos, condições habitacionais, saneamento básico, acesso à água encanada, acesso à internet, entre tantas outras informações. Todos esses dados servem de insumo para dar visibilidade a populações vulneráveis, diagnosticar se estão sendo assistidas de forma adequada pelo Estado e, a partir disso, construir políticas públicas.
“Além disso, o questionário tem perguntas sobre deficiência, educação, acesso ao mercado de trabalho, rendimento, que nos permitem também caracterizar socioeconomicamente a população como um todo e, no caso, também nos permitem pra todos esses tipos de perguntas que são feitas saber a diferença entre a população quilombola e a população não quilombola, e verificar se a gente tem uma demografia diferenciada, um processo migratório diferenciado, acesso diferenciado à educação, mercado de trabalho, saúde, condições de moradia. Então são perguntas muito importantes pra gente conhecer, não só quantos são os quilombolas, onde estão, mas, também, como vivem”, comentou a coordenadora do Censo de Povos e Comunidades Tradicionais, Marta Antunes.
“Esses dados que foram coletados com muita dificuldade vão servir pra Fundação Cultural Palmares, pro MIR, pro MDA, pro Ministério da Educação, pro Ministério da Saúde e pra todos os ministérios que atuam com a política quilombola pra poder fazer alavancar e chegar de fato a esses territórios.”, afirmou Biko.
“Os dados são importantes, mas a gente tem que formular a política pública e garantir recursos pra que essa política pública consiga chegar no território. Somos mais que números e a cada número desse bate um coração. Bate um coração que tem toda a sua história, toda a sua trajetória e trajetória essa de resistência. Nós somos parte do povo brasilieiro que os livros de história não contam”.
Amazônia também é quilombola
A pedido de representantes das comunidades quilombolas, o IBGE também realizou o Censo na região da Amazônia Legal – que envolve todos os estados da região norte, o estado do Mato Grosso, e boa parte dos estados do Maranhão e do Tocantins.
Foi verificado que quase 430 mil pessoas quilombolas residem em municípios da Amazônia Legal, número que corresponde a 32,11% do total da população quilombola residente no Brasil, ou seja, quase ⅓ da população quilombola de todo o país está na Amazônia Legal.
Além disso, a pesquisa também mostrou que o número de quilombolas residentes na região representa 1,60% de sua população, superando a marca nacional de 0,65% de quilombolas no Brasil.
“Quando a gente compara o número de pessoas quilombolas residindo na Amazônia Legal com o número de pessoas quilombolas nas outras regiões, nós verificamos que a participação dos quilombolas na Amazônia Legal é bastante expressiva e isso denota tanto a importância da população quilombola da Amazônia Legal pro conjunto da população quilombola, mas também a enorme contribuição da população quilombola para a conservação da Amazônia”, disse Fernando Souza, do IBGE.
“Você se considera quilombola? Qual o nome da sua comunidade?”
Para a realização do Censo, o IBGE fez um mapeamento das comunidades quilombolas do país, monitoramento em tempo real da qualidade da coleta e treinamento diferenciado dos recenseadores, que contou com guias das próprias comunidades quilombolas, como no caso da Joelita Bittencourt, da comunidade Ricão dos Negros (RS).
“Foi um grande prazer como recenseadora, não somente assistir, mas também participar da grande contagem dos quilombolas do nosso Brasil. Pra mim, foi uma grande emoção, porque é a primeira vez, eu, com 52 anos, ser a primeira vez que fui recenseadora nesse grande evento que foi contar os quilombolas. Então acho que estou aqui representando muito bem o Rio Grande do Sul. É uma grande alegria saber que a gente também está nessa contagem”.
Contar com recenseadores das próprias comunidades quilombolas foi apenas uma das etapas do Censo 2022. Cartografia censitária, planejamento logístico, sensibilização das lideranças comunitárias quilombolas, aplicação da pergunta de identificação étnico quilombola, treinamento dos recenseadores e testes para ver se tudo estava funcionando também fizeram parte da metodologia aplicada. Todo esse processo contou com a participação constante da Conaq, do Incra, da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR), da Fundação Cultural Palmares e da ONU.
De acordo com Antunes, o processo foi realizado em quatro etapas de consultas nacionais, duas em 2018 e duas em 2019. Também no início de 2022 foi feito um seminário estadual por unidade de federação, onde foram reunidos quilombolas e suas lideranças, e explicada toda a metodologia construída.
Simar Pereira alertou para a realização também do Censo Agro, em 2026. “É muito importante que a gente consiga fazer isso pra que a gente possa colocar esses outros grupos étnicos no mapa. E esse ensaio que a gente acabou de fazer com os quilombolas, é muito importante”. O presidente interino enfatizou que fazer a contagem em 2025 é se preparar para um Censo melhor em 2026.
Escute episódio do podcast Copiô, Parente! sobre o Censo Quilombola: