Implementação das determinações das COPs, no entanto, ainda depende de fontes asseguradas de financiamento
Realizada em Cali, na Colômbia, a COP16 da Biodiversidade foi marcada por dois acordos históricos e algumas indefinições.
Povos indígenas serão incluídos em futuras negociações e decisões sobre a conservação da natureza por meio de um órgão subsidiário. Além disso, uma cláusula passou a reconhecer - pela primeira vez - a importância do papel dos afrodescendentes na proteção da natureza. Ambos refletem o avanço nas discussões do artigo 8 (j) da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB).
O artigo indica a necessidade de que os países respeitem, preservem e mantenham o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica, com a devida participação e repartição dos benefícios oriundos desses saberes e práticas.
As decisões foram comemoradas pelos povos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais. Permanece, no entanto, a indefinição das fontes de financiamento para ações práticas. A COP16 foi suspensa por falta de quórum antes da aprovação de alguns itens e será retomada em 2027, na Armênia.
Repercussões e aprendizados
Nas redes sociais, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara comentou como a posição brasileira foi fundamental no processo de articulação com os países que se colocaram contra a criação do grupo subsidiário.
“Conseguimos essa conquista que representa a participação e o protagonismo dos povos indígenas na orientação dos acordos e negociações sobre a biodiversidade”, disse.
Johnny Martins, presidente da Associação Nacional de Quilombos para Cooperação e Desenvolvimento Sustentável Rural - Negra Anastácia, celebrou a inclusão dos povos afrodescendentes.
“Considerando que nós somos um dos povos da América Latina que mais preservam os territórios, é importantíssimo também que a Convenção da Diversidade Biológica possa valorizar isso. Então ter esse trabalho, fazer com que de fato tenha o nome ‘afrodescendentes’ nos tratados internacionais, tenho certeza que mudará o processo de como a Convenção olha, e também de como os estados vão olhar para as suas comunidades afro e, em especial, no Brasil, para as comunidades quilombolas”, afirmou ao ISA.
“A criação do órgão subsidiário e a inclusão dos afrodescendentes no texto da Convenção são avanços importantes para que se consolide o entendimento da relevância desses povos e comunidades na conservação da biodiversidade”, avaliou Adriana Ramos, secretária-executiva adjunta do ISA.
“Mas ao mesmo tempo em que avança nesse sentido, a Convenção trava na questão dos recursos financeiros, fundamentais para a implementação das determinações das COPs. Esse cenário só demonstra que a Convenção vem avançando muito naquilo em que a sociedade organizada tem a oferecer e muito pouco no que depende de mudança de postura seja de governos, seja do setor privado”, considera.
O artigo 8 (j)
A discussão sobre o artigo 8 (j) veio a partir de uma recomendação do Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas em fazer a distinção entre “povos indígenas” e “comunidades locais”. Para esses grupos, a necessidade da distinção é uma resposta à postura colonialista do órgão, que não leva em consideração as diferentes lutas e reivindicações de cada um.
Para os povos indígenas, após a inclusão de sua categoria no artigo, depois de anos de luta, era fundamental que se instituísse a criação de um órgão subsidiário, ou seja, uma espécie de comitê que dê insumos e aportes que irão embasar as decisões da Convenção.
Já para os povos afrodescendentes, o objetivo era justamente a inclusão do termo “afrodescendentes” no documento final da COP16 e do Quadro Global da Biodiversidade (Global Biodiversity Framework - GBF), como forma de reparação histórica e de reconhecimento do seu papel para a conservação da biodiversidade.
“O compromisso com a reparação histórica deve abordar a justiça ambiental, a importância da diáspora africana e dos cuidados que têm os afrodescendentes com a biodiversidade”, declarou a ministra do Meio Ambiente da Colômbia, e também presidente da Convenção, Susana Muhamad, durante o primeiro Fórum Internacional Afrodescendente, que aconteceu durante a CDB.
Há ainda muitos desafios a serem vencidos para a concretização dos acordos estabelecidos, entre eles a definição das formas de financiamento para ações que promovam a proteção da diversidade de espécies e o protagonismo dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
As negociações se encerraram sem a definição de um novo fundo mais amplo para a biodiversidade, o que traz a questão das formas de implementação do Marco Global de Biodiversidade Kunming-Montreal (KMGBF), acordado na COP15 da Biodiversidade. Um dos desafios da COP16 era justamente definir as formas de colocar em prática o marco.
O ISA na COP16
O ISA esteve na COP16, acompanhando principalmente as pautas da sociobioeconomia, restauração, quilombolas e mineração ilegal, na perspectiva do protagonismo dos povos e comunidades tradicionais.
Participaram e contribuíram com as discussões Raquel Pasinato, assessora do ISA; Jeferson Straatmann, especialista em sociobiodiversidade; Danielle Celentano especialista em restauração ecológica; e Daniela Nakano, advogada no Programa Rio Negro do ISA em Roraima.
O Fundo Cali
Outro ponto importante para os povos e comunidades tradicionais foi a criação de um fundo, o Fundo Cali, para a repartição dos benefícios derivados das informações de sequências digitais (DSI - sigla em inglês).
Muitas dessas informações são usadas em produtos como medicamentos e cosméticos, gerando lucros que dificilmente chegam a comunidades e povos que manejaram e mantiveram esse patrimônio genético e detêm o conhecimento sobre as espécies e seus usos.
“Os povos indígenas e as comunidades tradicionais, que incluem os coletivos de povos afrodescendentes, são os verdadeiros guardiões dos nossos ecossistemas. Por isso, merecem participação mais efetiva na Convenção, especialmente nas decisões sobre o reconhecimento e a repartição justa e equitativa nos benefícios derivados do uso do patrimônio genético. Isso inclui os direitos decorrentes do acesso às informações de sequências digitais (DSI)”, disse a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Brasil, Marina Silva, em discurso durante o evento.
Participação Yanomami e Ye'kwana
Vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, Dário Kopenawa integrou na COP16 debates sobre temas como a conectividade na Amazônia - a floresta está em oito países mais a Guiana Francesa -, com foco na invasão garimpeira e a crise humanitária Yanomami.
“É importante a gente estar trazendo esses problemas e também compartilhando as nossas ideias, como podemos proteger o nosso planeta Terra e também a mudança climática”, afirmou.
“A gente tem que colocar na prática, no papel das autoridades pra gente contribuir as nossas preocupações, nossas estratégias que não é essa destruição, não é desmatamento, não é negociar o nossos territórios no Brasil e outros fora também e isso a gente tá querendo falar, mas as autoridades não abrem esses espaço público”, continuou.
Diretor da Hutukara Associação Yanomami, Maurício Ye’kwana destacou a importância da presença de povos indígenas na COP16. “Acho que é a maior participação dos povos indígenas na história, num espaço desse. Tem muitos povos participando, a luta é a mesma, não só do Brasil, mas de outros países que estão aqui. Isso é muito importante para a gente, que nós mesmos povos indígenas falemos o que a gente vê, as coisas que temos que mostrar”, disse.