“Muita gente passando fome e nós perdendo por falta de um acesso”, lamenta liderança; comunidade luta para permanecer no território tradicional e preservar a Mata Atlântica
**Essa notícia faz parte da série ‘O Caminho pro Quilombo’, que traz reportagens sobre os desafios e as belezas da vida no Quilombo Bombas. Acompanhe toda semana no site do ISA.
Há três séculos, a população quilombola no Vale do Ribeira (SP) pratica um modo de vida que é essencial para manter a floresta em pé. As comunidades mantêm sua tradição em uma região altamente preservada por meio do uso sustentável da natureza e da proteção do território contra invasores.
“Hoje, a comunidade de Bombas usa 20% do seu território. Nós tem as áreas de capoeira, capoeirão e capoeirinha. O capoeirão já é mata virgem, então essa área nós não mexe, porque é de preservação”, explica Edmilson Furquim, coordenador da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas.
Acompanhe a série completa:
'O Caminho pro Quilombo': em SP, quilombolas lutam por estrada que garanta acesso a direitos básicos
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As áreas de mata em estágios inicial ou médio de regeneração, tradicionalmente denominadas de capoeira e capoeirinha, são os locais autorizados pela Lei da Mata Atlântica para o manejo das roças. Já as áreas de mata em estágios avançados de regeneração, são manejadas de outras formas. O cuidado com a floresta é um conhecimento que pertence às comunidades do Vale do Ribeira há séculos.
Esse território abriga um dos maiores maciços de Mata Atlântica preservada do país, sustentada pelas mãos de um povo que vive a coletividade e sabe que a floresta em pé beneficia a todo mundo.
“Esses quilombolas estão aí plantando há tempos. Tem muitas árvore no mato que os quilombolas plantaram, não só pra própria sobrevivência, como de qualquer tipo de animais. Sempre vamos manter essa mata de pé, porque nós somos assim: nós não faz só para nós”, diz a liderança.
Na trilha que dá acesso à comunidade de Bombas é possível ver que os frutos desse trabalho são duradouros. A jabuticabeira, plantada há mais de 100 anos por uma antiga moradora do quilombo, é memória viva de uma tecnologia ancestral de manejo da vegetação.
As roças de coivara das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira são feitas pelo manejo da vegetação para viabilizar o plantio de diversas culturas que coabitam o mesmo pedaço de terra. Após alguns anos, esses locais são abandonados e ficam em regime de pousio para que a floresta se regenere. “Sempre que nós roçamos, tivemos esse cuidado de não prejudicar a natureza, não roçar as cabeceiras [dos rios]”, ressalta Edmilson.
Até o ano passado, as agricultoras e agricultores quilombolas precisavam de uma licença ambiental para fazerem suas roças. Esse procedimento muitas vezes demorava, comprometendo a época correta de plantio e colheita dos alimentos e, consequentemente, a soberania alimentar das famílias.
Entenda: Você sabe o que é a roça de coivara dos quilombolas do Vale do Ribeira (SP)?
Em 2022, após muita luta e articulação política, algumas comunidades quilombolas do Vale do Ribeira conquistaram uma autorização prévia para a realização das roças. A Resolução SIMA nº 098/2022 permite aos quilombolas realizar livremente o manejo da vegetação para implantação das roças tradicionais, devendo informar ao Estado, no ano seguinte, onde foram realizadas e por quais pessoas. Mas, infelizmente, esse direito não foi assegurado a todas as comunidades quilombolas da região.
Por ser um território com sobreposição de uma Unidade de Conservação, o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR), o Quilombo Bombas ainda precisa adotar o procedimento original para licenciamento das roças junto à Fundação Florestal. Além disso, a dificuldade de transporte dos alimentos produzidos no quilombo prejudica — quando não impede por completo — sua comercialização. O problema se resume à falta de estrada de acesso e à existência de uma trilha de difícil transposição como único acesso à comunidade.
Apesar de serem associadas à Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale) desde 2012, os agricultores e agricultoras do Quilombo de Bombas ficaram anos sem conseguir entregar os alimentos. A retomada só ocorreu em abril deste ano.
A Cooperquivale viabiliza a venda dos alimentos, gerando um complemento de renda para as comunidades quilombolas, inclusive na comercialização desses produtos em mercados institucionais, a exemplo do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e do Programa de Aquisição de Alimento (PAA). A associação com a cooperativa também ajuda a manter os saberes tradicionais de cultivo sustentável das roças.
“Se tivesse uma estrada boa, com certeza eles teriam potencial para bastante quantidade de produtos, mas eles ficam limitados por causa do acesso. [...] Eles não querem perder essa tradição, querem continuar essa tradição quilombola que eles têm da plantação”, explica Sueli Oliveira da Silva Almeida, agricultora do Quilombo Nhunguara e Coordenadora dos Produtos de Diversidade na Cooperquivale.
Na entrega mais recente, realizada no dia 26 de julho, a comunidade de Bombas conseguiu comercializar apenas um terço do seu potencial produtivo. Edmilson Furquim conta que muitos alimentos estragaram no trajeto de saída do quilombo e caixas com limões precisaram ser descartadas na própria trilha.
“O mundo tá precisando, muita gente passando fome e nós perdendo por falta de um acesso”.
Confira o relato do Edmilson Furquim, coordenador da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas. “Sem o acesso, como nós vamos sobreviver dessa maneira? Com tanto produto perdendo, tanta coisa jogada fora, sendo que nós tem pra tirar para o nosso próprio sustento”, afirma. pic.twitter.com/spIAokRtHb
— socioambiental (@socioambiental) August 7, 2023
Segundo os moradores, cerca de 1.500 Kg de alimentos poderiam ser destinados à cooperativa, mas apenas 625 kg foram de fato comercializados porque muitas variedades de frutas e legumes chegam machucadas à cidade após longas horas de transporte no lombo de animais, e não podem ser vendidas à cooperativa.
“O arroz eles mandaram para nós, o chuchu, a laranja, o limão. Só que eles não conseguem mandar outras coisas. Alface eles têm pra 300 cabeças para tirar. A mandioca, se eles mandarem, vai chegar toda machucada no final do trajeto”, completa Suely.
A dificuldade de comercializar os produtos do quilombo e as multas ambientais altíssimas colocam muitas famílias em situação de vulnerabilidade e dificultam a permanência no território. “Eles não vêm aqui para multar 200 reais, já falam de 20 mil em diante. A comunidade não tem como pagar e você não vai poder usar o território naquela parte que você foi multado. E eles continuam oprimindo dessa maneira para arrancar o quilombola de cima da terra”, relata Edmilson.
Nos trechos do território onde os órgãos ambientais não permitem o manejo tradicional da vegetação, já é possível ver a predominância de algumas espécies vegetais invasoras. O coordenador da associação destaca que o conhecimento ancestral dos povos quilombolas no manejo da vegetação e no cultivo das roças também ajuda a conter pragas e manter o solo fértil. “Por isso a importância de preservar a cultura dos antigos. Porque lá no futuro nós vamos precisar muito”.
A precariedade da trilha íngreme e sinuosa que dá acesso à comunidade e a dificuldade de fazer as roças na época adequada levaram muitas famílias a deixar o território. Hoje, o Quilombo Bombas possui 24 casas, mas já contou com mais de 90 famílias.
Em alguns trechos da trilha, o barro se acumula, tornando o caminho ainda mais perigoso|Júlio César Almeida/ISA
Em 2015, uma decisão judicial obrigou a Fundação para Preservação e Conservação Florestal a construir uma estrada para o Quilombo Bombas, mas o processo de licenciamento ambiental do projeto segue em ritmo lento.
Em outubro de 2021 a Fundação Florestal apresentou o Relatório Ambiental Preliminar (RAP), para a execução da obra, mas em agosto de 2022 a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB) pediu que fossem realizados novos estudos.
Comunidade de Bombas recebe representantes do Estado no quilombo
No último sábado (05/08), a Secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (SEMIL) do Estado de São Paulo, Natália Resende, assim como o Diretor Executivo da Fundação Florestal, Rodrigo Levkovicz, estiveram na comunidade de Bombas.
A visita se deu em função de pedidos anteriormente formulados por quilombolas do Vale do Ribeira à secretária, uma vez que as comunidades têm diversas pautas de luta que são de competência da SEMIL.
Cumprindo com a promessa de dialogar com as comunidades, a secretária percorreu os seis quilômetros de trilha que levam à comunidade quilombola de Bombas e lá conversou com as representações políticas das comunidades. A secretária afirmou que a construção da estrada de Bombas já é uma prioridade da sua gestão, e que em breve deverão apresentar um cronograma para licenciamento ambiental e execução da obra.
Além disso, a secretária ainda se comprometeu a se reunir de forma periódica com as representações quilombolas para debater outros temas, mas nenhuma data foi definida para o próximo encontro.
Dentre os assuntos a serem discutidos estão licenciamento ambiental de roças, Cadastro Ambiental Rural (CAR), democratização na gestão da Fundação Florestal, fiscalização ambiental nas comunidades, sobreposições de Unidades de Conservação a territórios tradicionais e a possibilidade das comunidades tradicionais terem uma vaga no Conselho Estadual de Meio Ambiente, entre outras agendas.
* Por Fernando Prioste, advogado popular no Instituto Socioambiental
Enquanto a estrada não sai do papel, os coletores e coletoras da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, responsáveis pela comercialização de sementes florestais da Mata Atlântica para a recuperação de áreas degradadas, precisam se arriscar no trajeto existente carregando os sacos de sementes no lombo de animais.
Em 2022, a comunidade de Bombas entregou mais de 220 Kg de sementes para a Rede. Somente em uma única entrega, feita em março deste ano, 40 kg de sementes foram transportados por burros na trilha precária.
“Eu acredito que se fosse para beneficiar o parque, ou sei lá, até mesmo uma mineradora, eles fazia estrada até por cima das árvores, por debaixo da terra. Eles estão cada vez mais oprimindo nós, para que nós venha a desistir. Só que nós não vai desistir”, diz Suzana Pedroso do Carmo, coletora do Quilombo Bombas.
Sem possibilidade de usar o próprio território para a produção de alimentos e para o turismo de base comunitária, Edmilson diz sentir-se à margem das ações do Estado na região. “Outro dia me mandaram uma foto no celular dizendo ‘nossa aí como ficou bonito o PETAR’ e eu coloquei ‘Tem uma comunidade morrendo lá por falta de acesso’. Eles colocaram uma ponte bonita só para o turista, e para a comunidade tradicional que vive há 350 anos aqui não fazem nada”.
João Fortes, outra liderança do quilombo Bombas, ressalta que a construção da estrada não é uma ameaça à Mata Atlântica, mas uma forma de garantir a permanência de uma comunidade que resiste ao racismo ambiental e trabalha pela preservação do bioma.
“A estrada para nós aqui é uma das principais coisas, até para melhoria da natureza. Tem que ter estrada, porque daí se torna mais fácil até você proteger a natureza. Aqui tá preservado, desde a antiguidade já foi assim, e ainda acham que nós somos os destruidor”.
Porque o racismo ambiental atropela as vidas negras no Vale do Ribeira?
Todo processo de construção da legislação de proteção ambiental no Vale do Ribeira foi constituído por pessoas brancas, dentro de um modelo de pensamento eurocêntrico e colonial.
O olhar e o comportamento tutelar daqueles que se intitulam protetores das florestas atropela o modo de viver dos verdadeiros guardiões das matas: os povos originários, povos tradicionais e quilombolas.
Por essa herança colonial é que se pensa que, se construir uma estrada para os quilombolas lá onde criaram um Parque, o PETAR, eles vão destruir a biodiversidade e exaurir os recursos naturais.
Usando essa lógica de pensamento, desconsideram que esses povos trazem da diáspora, desde a chegada dos ancestrais escravizados, outras visões de mundo, e valores que pressupõe a proteção da floresta para manutenção do seu bem viver, da coletividade entre as pessoas e do ubuntu*.
O desafio aqui é a decolonialidade. Quilombolas podem e sabem conservar as florestas!
O movimento ambientalista e o Estado precisam expandir o pensamento e o olhar para o contexto histórico da colonialidade, assumindo uma postura antirracista socioambiental para que o racismo ambiental possa ser superado de forma estrutural na nossa sociedade.
* Por Raquel Pasinato, assessora técnica do Instituto Socioambiental
*filosofia africana que trata da interdependência entre os seres e do respeito e empatia como parte natureza da humanidade
* Até o fechamento desta reportagem, no dia 07/08/23, a Fundação Florestal não respondeu aos contatos feitos pelo Instituto Socioambiental.
Feira de sementes e mudas
Para garantir a preservação da Mata Atlântica e a variabilidade de espécies nativas, as comunidades da região realizam anualmente a Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira.
Além de compartilharem sementes e conhecimentos sobre os plantios, quilombolas também fazem apresentações culturais e comercializam alimentos típicos, como a banana chips, a farinha de mandioca e a rapadura. Este ano, o evento acontece entre os dias 11 e 12 de agosto no centro de Eldorado (SP).
Confira a programação completa aqui.