#ElasQueLutam! Jornalista e jovem liderança indígena vem pautando a democratização da comunicação e a experiência amazônica na equipe de transição do governo federal
Foi na adolescência, aos seus 14 anos, que Ariene Susui “despertou” para a vida política e para a luta do seu povo, os Wapichana. Começou na escola, frequentada na Terra Indígena Truaru da Cabeceira (RR), onde parte do currículo diferenciado incluia a participação dos jovens em assembleias, reuniões e atos do movimento indígena.
“[Nesses momentos], as nossas lideranças perguntavam: ‘cadê a juventude?’ E eu comecei a observar que a gente estava ali, mas pouco se interessava pela participação direta, por realmente discutir, colocar nossas ideias”, lembra. “Aquilo mudou a minha vida”.
Ariene entendeu que era necessário qualificar debates com a experiência e o conhecimento indígenas e preparar os mais novos para darem continuidade aos processos e lutas pelos direitos originários. Cada vez mais atenta e participativa, ela chega agora a um lugar inédito: o Grupo de Trabalho de Comunicação na equipe de transição para o novo governo presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, o qual foi convidada a integrar no começo de dezembro.
“Quando eu tinha 14 anos, eu queria debater, me formar politicamente. Eu olho para aquela menina e passa um filme na minha cabeça, de toda a trajetória para chegar até aqui e estar hoje no corpo técnico, entendendo o que as pessoas estão falando, [mas também] tendo a oportunidade de colocar propostas”, explica. “Sou muito grata aos meus ancestrais e a todas as minhas lideranças que me possibilitaram falar das nossas vozes, das nossas dificuldades e o que queremos para a comunicação no país”.
Mais do que somar à sua história de ativismo, a indicação de Ariene ao GT mostra que pessoas indígenas têm todas as condições de contribuir com qualquer discussão relevante para a sociedade e as necessidades do Brasil e do mundo.
“Quando a gente se forma, a gente não se forma apenas para uma questão dos povos. Claro que vamos falar da nossa vivência, mas estamos preparados para assumir outras funções,” pontua. “Ir para um GT de Comunicação sendo uma jornalista indígena, mestre em Comunicação, que estuda sobre comunicação indígena na Amazônia, para mim traça um caminho de dizer que a gente pode ocupar todos os espaços”.
É justamente essa sabedoria que ela tem compartilhado com os demais membros do GT, onde vem destacando pautas como o direito à comunicação, democratização da informação, o combate às fake news e a regulamentação das mídias sociais, com especial atenção para a Amazônia e as diferentes realidades dos povos que habitam o bioma.
“Eu pude falar sobre as minhas inquietações e fui muito bem aceita. [Quero] colocar a Amazônia como ponto central, como uma linha de trabalho explícita que deve se desenvolver ao longo dos anos”.
Juventude de luta
O convite para integrar o GT da Comunicação é somente a mais recente etapa de uma longa e potente trajetória traçada por Ariene para defender direitos e garantir participação política para os seus.
Ainda na adolescência, ao ouvir o chamado das lideranças Wapichana para a juventude, ela decidiu ingressar de vez na luta do movimento indígena. De início, assumiu a coordenação da frente de jovens do seu território e, alguns anos depois, ajudou a construir o Núcleo de Juventude do Conselho Indigena de Roraima, organização que reúne os povos e associações do estado.
Foi na comunicação, porém, que escolheu seguir caminho. “Eu começo com algumas formações de comunicadores, ainda muito timidamente, mas já [na perspectiva de] discutir nossas próprias pautas, falar da nossa realidade, [de maneira] mais voltada para os territórios”, lembra. “E então, eu vou me interessar pelo campo da comunicação no nível acadêmico”.
“[Eu entendi] que para ajudar ainda mais na [nossa] visibilidade, na luta pela nossa sobrevivência, eu precisava ocupar outros espaços,” ela afirma sobre o período em que ingressou na Universidade Federal de Roraima (UFRR) para cursar Jornalismo – via vestibular específico para pessoas indígenas, destaca.
Foi uma época desafiadora, principalmente em relação à convivência e compreensão de termos e tecnologias do universo acadêmico, porém ela logo se colocou como comunicadora-ativista, pautando debates sobre os contextos comunicacionais indígenas da Amazônia e, inclusive, ganhando prêmios universitários - caso da série Pymydy - polinizando conhecimentos, eleita a melhor produção laboratorial em audiojornalismo no Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Norte de 2018.
Depois de formada, Ariene regressou ao Conselho Indigena de Roraima (CIR), agora como coordenadora do Departamento de Comunicação. Foi ali, também, que ajudou a fundar a Rede de Comunicadores Wakywai. “Eu acredito que quando você tem conhecimento, você deve emancipá-lo. Tudo o que eu aprendi na universidade dava para ser aplicado dentro do movimento e das organizações indígenas, [respeitando] nossos conhecimentos tradicionais obviamente”, comenta.
Mais tarde, a Rede Wakywai foi seu objeto de estudo no Mestrado em Comunicação da UFRR, que ela finalizou em agosto de 2022, tornando-se uma das primeiras indígenas mestras em comunicação do Brasil. “Eu trago essa experiência de resistência, de acreditar que nossos conhecimentos técnicos têm que estar atrelados com aquilo que a gente luta no movimento indígena”.
Segundo Ariene, sua escolha pela área da comunicação parte de um forte senso de justiça que sempre moldou seus passos, ou ainda, de uma rejeição ao modo como a mídia e as pessoas não-indígenas tratavam seu povo. “Eu lembro de ler matérias absurdas, que falavam que nós éramos um zoológico humano, que as pessoas estavam morrendo de fome”, conta. “Eu vou [para a comunicação] com muita raiva. Eu precisava ter as nossas narrativas, não queria que falassem sobre nós sem a nossa participação”.
É, para ela, uma estratégia de luta, uma arma para os povos indígenas poderem mostrar para o mundo o que está acontecendo em seus territórios, desde ameaças até a divulgação de suas culturas e diversidades.
“Precisamos estar por dentro [desses espaços] para desconstruir algumas narrativas que são postas, principalmente pelas mídias convencionais. Hoje, a gente tem a oportunidade de escrever sobre nós, pautar os jornais, [apontar] o que não nos representa”, afirma. “Claro que ainda precisa avançar, [mas] você tem um contraponto”.
Engajamento político
O mesmo senso de justiça que despertou Ariene para a importância da comunicação lhe mostrou que a efetiva participação política, inclusive em espaços institucionais, era algo a se buscar. Por isso, parte considerável da sua trajetória ativista incluiu a luta para que mais jovens, em especial as mulheres, pudessem compreender o contexto político brasileiro e para que mais pessoas indígenas conseguissem acessar os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
“Aos 16 anos, meu primeiro voto foi indígena, e até hoje eu luto para que mais indígenas ocupem [esses lugares]”, assinala. “Eu sabia que vinham dali as políticas públicas [importantes para os indígenas] e falava: ‘só paro quando vir meus representantes no Congresso Nacional’”.
Desde 2014, ela atua em campanhas de candidatos indígenas na Amazônia, tendo apoiado a candidatura de Joenia Wapichana, eleita deputada federal por Roraima em 2018, e, mais recentemente, em 2022, de Vanda Witoto e Maial Kaiapó para deputadas pelo Amazonas e Pará, respectivamente. Além disso, integra a Executiva Nacional do partido Rede Sustentabilidade e frequentemente colabora com formações políticas para jovens e mulheres.
“Quando a Joenia ganhou, foi [um sentimento] de que nada é impossível. A gente mostrou que era possível ter indígenas no Congresso”, lembra.
Em 2020, ela própria se candidatou a vereadora pela cidade de Boa Vista (RR), como parte de um processo de educação política. “Para eu poder contribuir com outras candidaturas, eu precisava entender como era uma candidatura. Foi para isso: entender todo o campo técnico, as partes burocráticas, conhecer os espaços políticos”, comenta.
“Essas minhas vivências de movimento indígena, da academia e da política me levam a estar mais tranquila ao colocar minhas propostas. Eu sei do que estou falando, do processo político que existe hoje no Brasil e estou ali para contribuir”.
Sobre o atual momento, ela avalia que é positivo para a ampliação do diálogo com os povos originários, porém, há riscos. Ainda que mais indígenas tenham sido eleitos, com destaque para Sonia Guajajara e Célia Xakriabá, a composição de assentos no Congresso segue majoritariamente anti-ambiental e anti-indígena. “[Além disso], a gente está vindo de um momento em que várias políticas estão muito fragilizadas, de uma série de violências e violações de direitos”, adiciona.
Mesmo assim, Ariene nunca foi de desistir diante de desafios, e não é agora que vai começar.
“Quando você trata de ser mulher, ser indígena, ser jovem e ser jornalista, você tem um grande espectro para diversos ataques. Mas eu sempre assumi com muita responsabilidade e acreditando que é preciso [ir à luta], ou daqui a pouco tem uma outra geração que vai ficar com medo de se impor”, diz.
Desde o fim do ciclo eleitoral de 2022, ela tem se dedicado a ingressar no doutorado e a construir projetos de educação política para pessoas da Amazônia, em especial mulheres e jovens. “O que me move são sonhos. Sonhos dos nossos povos serem respeitados, para que haja menos genocídio, menos preconceito, para que a nossa geração não seja tão violentada como foram nossos ancestrais”, conclui.
#ElasQueLutam é a série do ISA sobre mulheres indígenas, quilombolas e ribeirinhas e o que as move. Acompanhe no Instagram!