Ao longo de três dias, milhares de quilombolas e representantes de organizações parceiras discutiram em Brasília agricultura familiar, saúde, educação e políticas públicas
Enegrecer a mente e aquilombar o chão. Foram essas as palavras, cantadas pelo grupo de rap Realidade Negra, do quilombo Campinho (Paraty/RJ), que moveram mais de três mil quilombolas de todo o país até Brasília para o Aquilombar, primeiro ato político organizado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
Nos dias de encontro, representantes dos quilombos do Vale do Ribeira puderam apresentar, a nível nacional, quais atividades têm desempenhado nos territórios. Segurança alimentar e nutricional foram as principais pautas.
Nas plenárias em Brasília, a céu aberto e em rodas, quilombolas de diversas comunidades apontaram práticas de agricultura familiar em suas comunidades – consumo, comercialização, turismo de base comunitária – e puderam conversar e trocar experiências.
“Um desafio muito grande é ter a juventude trabalhando na agricultura. Então, é importante que pais e mães incentivem seus filhos para estarem com eles dando continuidade no trabalho da agricultura em suas comunidades”, apontou Rozembergue Dias, quilombola e advogado de Kalunga (Cavalcante/GO), durante a plenária sobre agricultura familiar e segurança alimentar nutricional.
Ao longo da conversa, cada quilombola foi apresentando uma forma de se trabalhar com a terra, tendo como objetivo comum mostrar que o modelo de agricultura familiar quilombola não é predatório para a natureza.
As comunidades usam técnicas agroecológicas que, há séculos, mostram que esse tipo de cultivo não é danoso para os biomas devido à rotatividade para se criar as roças. "Mesmo que cada um tenha a sua forma de plantar, a gente não está destruindo a natureza. Estamos trabalhando junto com ela para alimentar mais pessoas”, observou João da Mota, agricultor do quilombo Nhunguara (Eldorado-SP) e cooperado da Cooperativa de Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale).
Desde o período colonial, o foco da agricultura familiar quilombola é o plantio de diversidade de espécies visando harmonia com o meio ambiente e a segurança alimentar das famílias negras, como aponta o historiador Décio Freitas em seus estudos.
Em oposição à produção quilombola, a monocultura visava lucro para poucas pessoas através da exportação de commodities principalmente com os ciclos econômicos da cana de açúcar, algodão e café e que hoje se assemelha com o agronegócio.
E mesmo que a agricultura familiar quilombola seja vista pelo coletivo como ideal, ela não é incentivada porque não visa exclusivamente o lucro.
O processo de plantio faz parte da rotina de muitos quilombolas que estão em contexto rural e isso impacta diretamente em suas vidas.
“Quando se fala do processo de agricultura e segurança alimentar, envolve um processo da vida do quilombola. Existem situações de quilombolas ficarem desanimados e até depressivos por se dedicarem ao seu plantio e receberem uma negativa das secretarias quando vão nas cidades”, contou Francisco Chagas, do Quilombo Caboclo (Nova Santa Rita/PI) e membro da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq).
Uma das formas de pleitear políticas públicas para a agricultura familiar quilombola apontadas por quilombolas e parceiros presentes na conversa é fazer parte dos conselhos municipais, estaduais e nacionais destacando a necessidade de criar políticas específicas para Povos e Comunidades Tradicionais.
“Faço parte do conselho do município de Pedra Branca há 10 anos e é importante nós estarmos nesses lugares acompanhando porque é onde saem as decisões. Se os quilombolas não estiverem nos conselhos, nós vamos ser ignorados”, afirmou Severina de Carvalho, do quilombo Poço do Angico, na Paraíba.
ISA e parceiros
As pautas abordadas nas plenárias durante o Aquilombar se estenderam no encontro do coletivo, onde técnicos do Instituto Socioambiental (ISA) do Vale do Ribeira puderam comentar a experiência da agricultura e segurança alimentar desenvolvidas pela Cooperquivale.
Um dos temas foi o Plano Emergencial, que ajudou a mitigar a insegurança alimentar em 11 cidades do Estado de São Paulo durante um período da pandemia, e o Quilombo&Quebrada – iniciativa de comercialização dos produtos das roças quilombolas na periferia da cidade de São Paulo.
Além disso, foi destacada a importância da Catrapovos – Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos –, estratégia que torna possível a compra de alimentos produzidos e processados pelas comunidades para serem introduzidos na merenda escolar, principalmente das escolas dentro das comunidades.
“É preciso lembrar que inserir o alimento quilombola na merenda escolar é uma forma de salvaguarda do Sistema Agrícola Tradicional e da cultura alimentar quilombola. São várias camadas onde o Catrapovos pode atuar, então é importante pensar em como fazer um diálogo entre gestores públicos e a realidade alimentar quilombola”, comentou Adriana Rodrigues, historiadora e técnica do ISA que tem acompanhado a pauta junto às comunidades do Vale do Ribeira.
O que foi o Aquilombar?
O Aquilombar, que aconteceu em 10 de agosto, foi um encontro nacional organizado pela Conaq e teve como principais pautas a luta pelo direito à titulação de seus territórios, segurança alimentar e nutricional, educação, saúde, assim como políticas públicas específicas para esse grupo étnico.
Junto a apoiadores da causa, quilombolas marcharam até o Congresso Nacional para denunciar as violações de direitos das comunidades, dentro e fora de seus territórios. O ato também foi uma convocatória para apoiadores de todo o país conhecerem e divulgarem as principais demandas dessa população. Segundo a Conaq, são seis mil comunidades em 24 estados do país.
A manifestação buscou denunciar os desmontes nas políticas públicas, convocar a população a conhecer e engajar com a pauta quilombola, denunciar as violências e violações contra a população quilombolas dentro e fora de seus territórios e a dar visibilidade à importância dos quilombolas para o debate político, socioeconômico e climático do país.
“Essas estruturas destruidoras de direitos e vidas quilombolas não estão somente em Brasília. Também estão nos nossos estados. E nós precisamos sair daqui abastecidos e comprometidos para a gente destruir essas estruturas”, destacou Maria Rosalina dos Santos, do quilombo Tapuio (Queimada Nova/PI).
Para ela, o ato chamou à continuidade da luta, agora com a esperança renovada após o grande encontro. “Em 2023, nós vamos voltar à Brasília para o segundo Aquilombar! Mas não mais para cobrar, mas para a gente celebrar. O Aquilombar de 2023 vai ser uma grande celebração de resistência, conquistas e vitórias do povo quilombola”, exclamou a coordenadora executiva e co-fundadora da Conaq.
Encontro de quilombolas e parceiros advogados
Nos dias posteriores ao Aquilombar, quilombolas e não quilombolas que atuam no Direito realizaram o encontro do Coletivo Jurídico Joãozinho de Mangal, onde puderam debater sobre o atual cenário das pautas quilombolas.
Dentre os temas, o coletivo passou por questões como terra e território, direito à consulta, saúde, educação quilombola, segurança alimentar e agricultura familiar, onde ouviram demandas dos territórios e experiências realizadas por organizações parceiras.
O coletivo surgiu em 2016 como uma iniciativa quilombola durante o acompanhamento do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3239, aproveitando essa experiência exitosa de articulação e luta em defesa do Decreto Federal nº 4887/03.
Ele carrega o nome de João da Conceição Santos, o Joãozinho do Mangal, liderança da comunidade quilombola de Mangal, no município de Sítio do Mato, Bahia.
Joãozinho era estudante de Direito na Universidade Estadual da Bahia, mas teve sua vida interrompida em 2017, aos 37 anos. Ele estudou e lutou por direitos quilombolas na área da educação, assistência técnica, extensão rural e saúde e hoje o coletivo é uma continuidade de sua luta, que é também a de outras comunidades quilombolas.
Dentre os encaminhamentos determinados para essa pauta, que dialoga também com educação quilombola, o grupo irá pensar em medidas para possibilitar a formação de quilombolas sobre acesso a políticas públicas e a continuidade do levantamento e sistematização de informações nos estados para começar a iniciativa junto a instituições parceiras locais.
“Como instituições parceiras, o nosso papel é fortalecer as comunidades e fiscalizar os conselhos municipais e estaduais para levantar essas pautas”, contou Luiza Viana Araújo, assessora jurídica na Conaq e da Equipe de Conservação da Amazônia (Ecam), que desenvolve uma série de materiais sobre o assunto.
Por parte da Conaq, a proposta é participar de espaços públicos que discutem a pauta e incentivar que pessoas das comunidades façam parte dos conselhos municipais de agricultura familiar para inserir a pauta da agricultura familiar quilombola.