Cerimônia marcou acordo inédito entre governo estadual e indígenas para gestão de área sobreposta com parque

Erguida pela força do canto guarani, a placa “Terra Protegida” finalmente foi fincada em solo tradicional. Na tarde de quinta (08/05), o povo Guarani pôde enfim comemorar a delimitação física da Terra Indígena (TI) Jaraguá, na zona oeste da capital paulista.
“O povo Guarani existe e resiste neste lugar e hoje se concretiza ‘o Jaraguá é Guarani’”, declarou Karai Djekupe, uma das lideranças da TI Jaraguá. A cerimônia foi realizada no mesmo dia na aldeia Tekoa Pyau.
Agora, a área oficial da TI abrange oito aldeias em 532 hectares, ou 760 campos de futebol. Em 1987, a TI foi homologada com apenas 1,7 hectares, o que a qualificava como a menor TI do país. Para que o processo de demarcação chegue ao final, fica pendente apenas a homologação, a ser feita pela presidência da República, e o registro no cartório de imóveis e na Secretaria de Patrimônio da União (SPU).
“Hoje representa o último ato antes da homologação. É um ato realmente muito importante para gente acreditar que vai ser possível assinar, sim, a homologação deste território guarani ainda no nosso governo do presidente Lula”, afirmou a ministra dos Povos Indígenas Sonia Guajajara.
Acordo inédito
O ato celebrou não apenas a delimitação física da área, mas também o restabelecimento da sua declaração de posse de 2015 e a assinatura de um acordo inédito entre a comunidade, o governo do estado de São Paulo e a Fundação Florestal, órgão responsável pela gestão do Parque Estadual (PES) do Jaraguá, que possui cerca de 308 hectares sobrepostos à TI.
Sobreposição entre a Terra Indígena Jaraguá e o Parque Estadual do Jaraguá.
O acordo firmado definiu regras para a gestão compartilhada da área sobreposta entre as duas partes; a livre circulação de indígenas na área; o uso sustentável dos recursos naturais; a proibição da caça; autorização para captar água para abastecimento das aldeias; e a continuidade das capacitações para monitores e brigadistas florestais indígenas.
O pacto coloca fim ao impasse histórico que impediu a demarcação da TI, conforme determina a Constituição e reitera o entendimento de que “não há ninguém melhor do que os indígenas para preservar os territórios”, conforme afirmou Natália Resende, secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do estado de São Paulo.
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Em razão do impasse com o governo paulista, em 2017, o ministro da Justiça de Michel Temer, Torquato Jardim, publicou uma portaria anulando a declaração de posse permanente da TI Jaraguá. Na época, Karai Djekupe, Sonia Ara Mirim, Patricia Soares Pará Mirim, Natalício Karai e outras lideranças convocaram a população a se manifestar para pressionar pela revogação da portaria de “des-demarcação” de Torquatto.
Foi somente em 2024, sete anos depois, que tratativas garantiram que a portaria caísse, a declaração de posse fosse restaurada, e um novo acordo com o governo estadual fosse assinado, envolvendo diversas instituições, como Ministério Público Federal (MPF), a comunidade guarani TI Jaraguá, a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP), Ministério da Justiça (MJ), Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Advocacia-Geral da União (AGU), Procuradoria Regional da União na 3ª Região (PRU3) e a Fundação Florestal.
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Primeira delimitação da Terra Indígena Jaraguá e a atual
Evento
O evento reuniu lideranças indígenas tanto da TI Jaraguá quanto de outras terras do povo Guarani no litoral norte de São Paulo e no Paraná. Além da ministra Sonia Guajajara, estiveram presentes representantes de órgãos federativos e estaduais como Sheila de Carvalho, secretária de Acesso à Justiça no Ministério da Justiça; Natália Resende, secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo; e integrantes da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai); do Ministério Público Federal (MPF); da Advocacia Geral da União (AGU); e do Tribunal Regional Federal (TRF).
Para a ministra Sonia Guajajara, estados e municípios precisam estar alinhados na sua corresponsabilidade de assegurar uma vida digna aos povos indígenas. Ela destacou ainda que a demarcação física da TI Jaraguá só foi possível porque existe a memória dos espaços percorridos pelo povo Guarani. “E não é o fato de estar em uma grande metrópole que apaga essa memória e também não tira esse direito. Os povos indígenas estão inseridos neste cenário que é a cidade de São Paulo e seu direito segue preservado nesse espaço”, concluiu.
Sheila de Carvalho falou sobre o desafio de fazer com que a sociedade entenda que o reconhecimento e a proteção de Terras Indígenas é um direito que deve ser reconhecido. “Se a gente não defende e não protege as Terras Indígenas, toda a humanidade está em risco”, alertou.
Ivanildes Kerexu, coordenadora da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) e liderança da TI Boa Vista do Promirim, celebrou junto aos seus parentes: “Hoje a gente está fazendo essa grande comemoração de uma conquista do movimento indígena e estamos aqui com essa grande vitória”. A TI Jaraguá foi considerada uma das prioritárias na campanha #DemarcaYvyrupa, promovida pela organização indígena desde o início do governo Lula.
Laura Kerexu relembrou as lideranças que vieram antes na luta pelo território como a dona Jandira, José Fernandes, seu pai, Alísio, e seu avô José Fernandes. “Com muito orgulho, eu levo a luta deles. Com muito orgulho, a gente vai seguir a luta deles e vamos caminhar todos juntos. Vamos pegar nas mãos, vamos olhar pelas crianças, porque essa terra aqui, do Jaraguá, não é só de uma pessoa, é de todos. A gente tá lutando por todos, para todos sobreviverem aqui na terra, porque a terra-mãe cuida de nós. Então, por isso que a gente tá aqui. E a nossa luta não acaba aqui”, finalizou.

Terra Indígena Jaraguá
A Terra Indígena Jaraguá, localizada nos municípios de São Paulo e Osasco, é habitada pelo povo Guarani Mbya. Com aproximadamente 532 hectares, a área foi inicialmente demarcada, sem estudos antropológicos, em 1987 pelo Decreto nº 94.221 com apenas 1,7 hectare. Somente em 2001, após anos de luta, a comunidade foi ouvida e foi instituído um grupo técnico para realizar o estudo que daria início ao processo de demarcação.
Posteriormente, em 2013, a Funai reconheceu e delimitou uma extensão maior, desta vez baseada na comprovação da ocupação tradicional e da importância da região para a manutenção do nhandereko, o modo de vida guarani, além de incluir todas as oito aldeias no perímetro.
A TI está inserida na Mata Atlântica, um dos mais diversos e o mais ameaçado do país. Segundo dados de relatório recente do Instituto Socioambiental (ISA), a TI juntamente com a TI Tenondé Porã, no extremo sul da cidade de São Paulo, soma-se a mais de 16 mil hectares, o equivalente a mais de 20 mil campos de futebol, de áreas essenciais para a manutenção da biodiversidade do bioma. O estudo aponta que desde o reconhecimento de seus limites, em 2015, não foram registrados alertas de desmatamento, destacando o importante papel do rito demarcatório na preservação e recuperação dos territórios (saiba mais).
A ocupação Guarani na região remonta ao século XVII, vinculada ao antigo aldeamento de Barueri, e foi marcada por resistências contra tentativas de remoção forçada. Atualmente, a população da TI Jaraguá é de aproximadamente 574 pessoas, segundo dados do Censo de 2022 do IBGE, que moram em aldeias como Tekoa Ytu e Tekoa Pyau.