Mais de 1,3 mil Guarani Kaiowá esperam ampliar roças tradicionais e obter apoio para recuperar áreas degradadas após acordo que garante posse de Terra Indígena
*Com a colaboração de Luiza de Souza Barros
O acordo para retirar e compensar os invasores da Terra Indígena (TI) Ñande Ru Marangatu (MS) fechado no STF, no dia 25/9, em uma audiência promovida pelo ministro Gilmar Mendes, encheu de esperança mais de 1,3 mil Guarani Kaiowá. Após décadas de resistência e sofrimento, eles terão afinal garantido o direito de ocupar todo o seu território, em Antônio João, no sudoeste do Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai.
Depois da saída definitiva dos fazendeiros, a comunidade espera ampliar suas roças tradicionais e obter apoio para comercializar sua produção e recuperar áreas degradadas pelo agronegócio. Espera ainda poder ver as crianças crescerem em paz, com acesso à educação e boas perspectivas de vida.
“Nosso futuro jovem já não vai passar mais isso em Ñande Ru Marangatu, nossas crianças que estão crescendo agora e que nascerão depois deste ano de 2024 já não vão passar mais por esse conflito todo”, aposta a liderança indígena Kuña Rendy'i. “Daqui a alguns anos, vou ficar velha e quero ver nossos alunos terminando a faculdade”, complementa.
“Lá vai ter nova criança, novo jovem, nova família, junto com todos os seres que [foram] expulsos de lá. Vamos trazer todo mundo de novo”, diz uma carta dos indígenas endereçada a Mendes.
Acordo
Segundo o acordo firmado no STF, as ações judiciais sobre a TI serão extintas em todas as instâncias, inclusive a liminar de 2005 que suspendeu o decreto de homologação da área assinado pelo presidente Lula, meses antes. Mendes promoveu o entendimento na qualidade de relator desse processo (leia mais ao final da reportagem).
O governo federal terá de fazer o “pagamento imediato” de R$ 27,8 milhões pelas benfeitorias realizadas de boa-fé pelos fazendeiros. Eles receberão ainda R$ 102,1 milhões pela terra nua na forma de precatórios (um tipo de requisição judicial reconhecida como dívida do Estado). O governo de Mato Grosso do Sul discordou da obrigação de arcar com parte da indenização da terra, mas aceitou depositar em juízo R$ 16 milhões que podem vir a ser usados para esse fim.
Ainda conforme a tratativa, os invasores terão 15 dias para deixar a área após receberem pelas benfeitorias. Só depois, os indígenas poderão, então, reocupá-la. “Estamos ansiosos, sim, para quando chegarem esses 15 dias. Eu tenho certeza que quero estar no meio das pessoas, para a gente estar pulando de alegria, de choro, de tristeza [pelas mortes e o sofrimento que enfrentamos], mas principalmente pensando no futuro das crianças”, completa Rendy'i.
Polêmica
O acordo preocupa parte do movimento social em função de seus termos e da incerteza sobre suas consequências para as demarcações não concluídas em todo país. A polêmica está no fato de o governo federal ter concordado em abrir mão de confirmar a validade dos títulos de terra em mãos dos fazendeiros.
Segundo decisão do STF do ano passado que considerou inconstitucional o chamado “marco temporal” das demarcações, essa indenização cabe apenas no caso de documentos legítimos. A determinação é uma novidade: a Constituição diz que apenas as benfeitorias feitas de boa-fé devem ser indenizadas. O marco temporal não está em questão no caso de Ñande Ru Marangatu.
Trata-se de uma interpretação jurídica ruralista que restringe os direitos indígenas e pode inviabilizar as demarcações. De acordo com ela, os povos originários só teriam direito às terras que estavam em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, precisariam comprovar a disputa jurídica ou material sobre o território. A tese desconsidera o histórico de expulsões e violências contra essas populações.
A ata da audiência de conciliação realizada no STF no dia 25 diz que a União aceita pagar pela terra, “apesar de não concordar com o dever” de fazer isso. Os representantes da Advocacia-Geral da União (AGU), do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) presentes na audiência consentiram com a solução negociada em razão da escalada de violência em Ñande Ru Marangatu nos últimos meses.
“Se o presidente tem terras, se o governador do MS tem terras, então que dê a estes que nos invadiram, que estão destruindo nosso teko marangatu, e os tirem de uma vez por todas de nosso tekoha”, afirma carta enviada pelos indígenas a Mendes. “Já tem um histórico de muita violência, não aguentamos mais. Está insustentável viver esta vida”, diz o texto.
A audiência foi requerida pela própria administração federal em função da gravidade da situação. Em menos de duas semanas, dois indígenas morreram: um levou um tiro de um policial e outro foi encontrado atropelado em uma estrada (leia mais abaixo).
O acordo foi homologado pelo plenário do STF, no dia 27/9, por unanimidade. Os ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia reforçaram que Ñande Ru Marangatu não pode servir como referência para outros casos.
Fachin destacou que o entendimento não tem “aptidão para gerar precedente”. “Concordo, excepcionalmente, com acordo nesse caso específico, principalmente diante da concordância da comunidade Indígena em resolver questão que se arrasta há tantos anos; não se trata, porém, de solução generalizada para cumprir a Constituição e respeitar as decisões deste Tribunal”, frisou.
Fazendo referência à decisão da Corte do ano passado, Cármen Lúcia disse que seu posicionamento “não significa revisão de tese que acompanhei sobre a interpretação e aplicação das normas constitucionais sobre a matéria”.
Escalada da violência
Há quase 20 anos os Guarani Kaiowá esperam por uma solução que assegure a posse efetiva de suas terras. Cansados da omissão do governo e do Judiciário, eles conseguiram reocupar cerca de 80% da área.
Relembre: Jovem indígena é assassinado no MS em meio a escalada de violência em Terras Indígenas do povo
Mesmo estando em sua terra de ocupação tradicional, cujo reconhecimento já foi realizado pelo Estado, os Guarani Kayowá enfrentaram inúmeros atos de hostilidades e violência armada, inclusive ações policiais sem mandado judicial.
No dia 18, embora existisse determinação judicial apenas para “policiamento”, houve tentativa de reintegração de posse e um ataque da PM. O indígena Neri Ramos da Silva, 22 anos, foi assassinado com um tiro na nuca. O próprio governador do Mato Grosso do Sul, Eduardo Riedel (PSDB), admitiu que a bala partiu de um dos policiais.
Ainda resultado do acordo firmado no STF, a comunidade guarani kaiowá teve acesso liberado à área ainda invadida pelos fazendeiros, no dia 28, para realizar um ritual mortuário em homenagem ao jovem indígena. Com proteção da Força Nacional, eles fizeram o chamado “batismo da cruz” de Neri no local de sua morte.
Ainda no dia 23, o jovem Guarani Kaiowá Fred Souza Garcete, de 15 anos, foi encontrado morto às margens rodovia MS-384, limítrofe à TI. Como já aconteceu em outros casos no Mato Grosso do Sul, existe a suspeita de que ele possa ter sido atropelado deliberadamente como uma forma de disfarçar um assassinato.
Pelo menos mais seis indígenas foram assassinados em 40 anos no mesmo território. Há ainda casos que podem guardar relação com os conflitos pela terra, como o de suicídios. “A terra tradicional de Ñande Ru Marangatu é a memória de cada lideranças que foram expulsas”, lamenta Kuña Rendy’i.
Ocupação de séculos
Em 2001, os 16 invasores da TI entraram com uma ação na Justiça Federal, contestando a demarcação em curso, sob a alegação da inexistência de ocupação tradicional indígena e de que fazendas estariam ali desde meados do século XIX.
Segundo o relatório de identificação e delimitação da Funai, no entanto os Guarani Kaiowá e Ñandeva habitam a região "literalmente há séculos" e nunca se afastaram de lá. Ainda de acordo com o documento, o processo de expropriação dos indígenas e de titulação dos colonos não indígenas pelo governo estadual começou nos anos 1920 e intensificou-se nos anos 1950.
A TI Ñande Ru Marangatu foi homologada por decreto presidencial em março de 2005. Poucos meses depois, em mandado de segurança, o então ministro do STF Nelson Jobim suspendeu a demarcação. Jobim aposentou-se da Corte em 2006 e o processo foi assumido por Gilmar Mendes. Na decisão final que homologa o acordo de agora, o ministro revoga a liminar de 2005, julga extinto o processo original e restabelece os efeitos do decreto presidencial que homologa a demarcação.
Terra guarda biodiversidade e memória guarani kaiowá
Garantir a demarcação da TI Ñande Ru Marangatu é importante também pelo papel que a área desempenha na conservação da biodiversidade e na salvaguarda do patrimônio cultural do povo Guarani Kaiowá.
Com 9.317 hectares, a terra está localizada no bioma Cerrado, na Bacia do Rio Apa, que compõe as cabeceiras do Pantanal. Sua paisagem é marcada por matas de galeria, nascentes, rios e morros.
“[Essa é uma] ecorregião de Cerrado muito importante, porque a fitofisionomia dela tem muitas formações florestais, diferente do restante dos cerrados que a gente encontra no restante do Brasil”, explica o pesquisador Gustavo Costa do Carmo, da Rede de Apoio e Incentivo Socioambiental (RAIS). Em sua avaliação, o relevo montanhoso e as formações florestais densas dificultaram o avanço da agricultura mecanizada na região, nos anos 1960 e 1970, tipo de atividade que acabou prevalecendo no restante dos territórios guarani kaiowá e ñandeva por meio das invasões.
Ainda assim, Ñande Ru Marangatu sofre com o desmatamento e a degradação provocados pelos fazendeiros. Também é pressionada pelo arrendamento de terras e o narcotráfico. No primeiro semestre de 2024, a área foi uma das TIs que mais sofreu com as queimadas no estado, com mais de 1,6 mil hectares destruídos, o equivalente 18% de sua área total, segundo dados do MapBiomas.
O território é considerado um dos centros cosmológicos do povo Guarani Kaiowá. “Cada morro tem um nome em Guarani, que nossos anciãos chamavam. O Ñande Ru Marangatu é mesmo [um] memorial para nós”, explica Kuña Rendy’i.
Junto de outras sete TIs na mesma região, Ñande Ru Marangatu integra um amplo território guarani chamado de Cerro Marangatu que no passado estendia-se por cerca de 400 mil hectares (ou 560 mil campos de futebol), segundo estimativas de Carmo.
“Antes dos anos 1950, existiam várias aldeias ao redor do Cerro Marangatu”, conta ele, lembrando a conexão da área com a região de Yvy Pyte, o “umbigo do mundo” do povo Guarani, localizado do outro lado da fronteira, no Paraguai. Cerro Marangatu dá nome também a uma montanha que os indígenas descrevem como a casa de um poderoso “espírito-dono”, Ava Popiry, e o lugar onde são guardados seus instrumentos xamânicos.
Hoje, mesmo cercado pelo agronegócio, esse conjunto de TIs conectadas protege aproximadamente 14 mil hectares, abrigando ainda formações geológicas e sítios arqueológicos importantes. É o caso da montanha Isyka, em Ñande Ru Marangatu, onde são encontradas inscrições rupestres e cerâmicas que, segundo pesquisas, permitem estimar uma presença indígena de 800 anos.