E a injustiça climática nos atravessou. Leia artigo exclusivo de Vanda Witoto e Juliana Radler sobre os impactos da seca recorde no Norte do País
Estamos emergindo da pior estiagem da história no maior Estado do Brasil, o Amazonas, cujo território tem 1.559.255, 881 km² — o equivalente às áreas da França, Espanha, Suécia e Grécia somadas. Esse gigante que abriga a maior parte da Amazônia no Brasil sofreu intensamente em 2023 os efeitos da emergência climática.
O ano entra para a História porque os maiores rios da Bacia Amazônica atingiram marcas recordes de seca, deixando os 62 municípios do Amazonas em estado de emergência. Também foi o ano em que Manaus apresentou a terceira pior qualidade do ar no mundo devido às queimadas ilegais e à secura impulsionada pelo fenômeno climático El Niño, pelas mutações do clima e pelas armadilhas do ser humano contra si mesmo, como definiu o filósofo francês Bruno Latour.
Diante da catástrofe, nós, mulheres indígenas e socioambientalistas, levamos à frente iniciativas para prover alimentos para quem ficou isolado e sem ter como pescar. Também nos dedicamos aos animais que sofreram com as queimadas, fumaça, calor intenso e com a devastação das florestas. E, principalmente, denunciamos e levamos informações para todo o mundo, pois a invisibilidade do Norte é assustadora e mata.
Sommelier de fumaça
Na briga de empurra dos políticos locais para se isentar da responsabilidade pela insalubridade, o manauara, como é nomeado quem nasce em Manaus, se especializou em cheirar fumaça e a identificá-la pela intensidade do odor. “Essa é fresca, vem de perto, se viesse do Pará não cheirava assim”, disse o motorista de Uber abrindo a janela para testar a fumaça como um sommelier. Ninguém nunca tinha visto nada igual, Manaus escondida pela fumaça e a população sem respostas sobre os culpados.
Se esse tempo foi difícil para quem mora na cidade, foi muito mais para os povos que vivem às margens dos rios, que dependem do rio para sua subsistência. Foi um impacto generalizado: na forma de se relacionar, na espiritualidade oriunda do mergulho nas águas e no consumo do alimento, vindo do rio, da floresta e das roças comunitárias.
Em novembro, visitamos a comunidade de Inhãa-Bé, no entorno de Manaus, para levar alimentos e conversar com a professora Yrá Tikuna, de 44 anos, uma das líderes da aldeia, que reúne 25 famílias de seis etnias. Localizada as margens de um igarapé afluente do rio Tarumã Açu, a comunidade ficou isolada e só era possível chegar lá caminhando alguns quilômetros sob o sol a pino. Nunca, na memória dos moradores, eles ficaram sem acesso fluvial à comunidade em outras estiagens.
Yrá nos contou que “ninguém chegou lá para ajudá-los”, mesmo estando em uma região bem próxima à cidade e conhecida área turística e de lazer. No Inhãa-Bé, nome Sateré Mawé que se refere a um chocalho amarrado no pé no ritual da tucandeira, houve evasão escolar, mais casos de malária do que de costume e o peixe, base do alimento da aldeia, sumiu. As pessoas só não passaram fome porque quem tem uma fonte de renda divide o que tem com todo mundo, como está na base da cultura indígena.
Os apoios recebidos vieram de amigos distantes, de artistas e da sociedade civil organizada. Para Yrá, o comportamento omisso e negligente dos governantes com as comunidades indígenas e povos ribeirinhos não surpreendeu. “Já nem esperávamos receber nenhuma ajuda, nem sequer a visita da Defesa Civil”. Enquanto isso, Mutchiaücü, menino Tikuna de 4 anos, perguntava com seu papagaio na mão: “Cadê o rio? Para onde foram os peixes?”
Desigualdade climática
Quando falamos de emergência climática, nós sabemos que ela não se dará da mesma forma para todas as pessoas. A forma como se governa coloca os povos indígenas, as populações ribeirinhas, os agricultores, as mulheres e as crianças em estado de vulnerabilidade. Indígenas vivem em estado de emergência há muito tempo, em estado de vulnerabilidade histórica. Mesmo sem a crise climática, nunca tiveram direitos fundamentais garantidos ou respeitados e até os territórios já demarcados vivem em constante ameaça.
A Amazônia é uma região onde ainda perdura o olhar colonial. Um olhar que enxerga uma paisagem que precisa ser explorada. Essa exploração é muito trágica e nos coloca, como habitantes deste lugar, sujeitos a uma completa violência. À medida que se olha para a Amazônia apenas com um olhar capitalista neoliberal, cresce a destruição das vidas desse ecossistema, que por sua vez é fundamental para a manutenção das vidas dos povos. Sentimos os impactos cotidianamente por morar em uma região extremamente sacrificada por esse pensamento neocolonial.
Conceitos como racismo ambiental e justiça climática refletem sobre a violência que este território vivencia: uma região extremamente violenta que mata seu jovem, que mata suas mulheres. É a região onde em pleno século 21 avança o crime organizado, o desmatamento e as queimadas para dar lugar à economia do latifúndio, do garimpo, da retirada de madeira ilegal e da pesca predatória, que degradam esse ecossistema tão importante para nossas vidas.
Precisamos buscar formas menos devoradoras de existir. Enfrentamos, hoje, uma "policrise", uma série de crises interconectadas e que se reforçam entre si. Com a crescente perda de credibilidade das instituições e das democracias liberais, precisamos nos reinventar. Já percebemos que aumento do PIB sozinho não traz felicidade coletiva. Ao mesmo tempo, a ideia de decrescimento, para florescer aqui, precisa estar associada ao pensamento da decolonialidade.
Manaus acaba de atingir a quinta posição no ranking de municípios mais ricos do País, com um PIB municipal de R$ 103,3 bilhões, ficando atrás apenas de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte. A economia manauara expandiu 86% nos últimos 10 anos (de 2012 a 2021). Os dados são do estudo do IBGE sobre o PIB municipal de 5.570 cidades brasileiras. Mas, como isso tem se refletido na qualidade de vida da população? Qual é a nossa perspectiva amazônica de crescimento?
Reconhecimento
O mundo precisa reconhecer, o Estado brasileiro precisa reconhecer, os poderes políticos precisam reconhecer e a sociedade precisa reconhecer a importância dos conhecimentos ancestrais dos povos indígenas. É necessário o reconhecimento do modo de vida destes povos para a sustentabilidade do ecossistema. O reconhecimento dos territórios indígenas como o princípio essencial para o enfrentamento das mudanças climáticas. A ciência em diálogo com os saberes dos povos indígenas do mundo são centrais para a resolução dos problemas globais que vivenciamos.
Acreditamos também no poder político para este enfrentamento. Uma das estratégias é colocar mulheres indígenas, quilombolas e ligadas à preservação ambiental em espaços de poder político. Precisamos eleger mais mulheres líderes climáticas para serem senadoras, governadoras, deputadas federais etc. Para conseguirmos criar mecanismos estruturantes na política do nosso país para esse enfrentamento das mudanças climáticas, é fundamental termos a força do feminino na política. Nossas vozes historicamente silenciadas e marginalizadas dos processos de decisão precisam ocupar estes espaços, só assim teremos um novo caminho sustentável.
Não é a Amazônia que precisa ser salva, somos nós.
Da conversa entre nós duas quando pensávamos a distribuição de alimentos para as comunidades na severa estiagem no Amazonas surgiu a ideia deste escrito de fim de ano. Nas vésperas do seu embarque para a Conferência do Clima de Dubai, Juliana perguntou a Vanda se ainda dá tempo de salvar a Amazônia. Essa reflexão fica na íntegra:
“Não é Amazônia que precisa ser salva. A natureza tem a capacidade de se regenerar. Nós seres humanos estamos à beira da extinção. Nós que estamos nos extinguindo. Portanto, nós precisamos nos salvar e para isso somos nós que temos que tomar medidas de proteção da natureza porque a nossa vida depende deste ecossistema. Se não tiver terra, nós não temos alimentos, se não temos rio vivo, também não temos como tomar água. Nós nos afastamos da nossa natureza. Nós não nos reconhecemos mais na natureza. Nós nos sentimos superiores à natureza. Esta humanidade se sente superior à natureza e se acha no direito de violentá-la, de destruí-la, de contaminá-la, de explorá-la. E não sou tão otimista quanto ao nosso fim. Mas sigo contando histórias e recontando nossas histórias ancestrais. Porque para nós, Witoto, ao morrer nós nos tornamos formigas, sementes de tabaco, sementes de coca. Somos macaxeira doce ou nos tornamos uma árvore. Portanto para nós indígenas morrer não é o fim. Mas sim o recomeço da vida. Agora não sei vocês, para onde vocês irão.”
A mensagem para o fim deste ano de 2023 vem do povo Witoto: “Que os maracás indígenas, os cantos sagrados, as danças, as raízes, as sementes, a fumaça do breu e o alimento sagrado sigam em movimento nos territórios, nas florestas, que seguem vivos sustentando esse planeta”. Cabe a nós todos cuidarmos da nossa casa comum.
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Agradecemos a Thaís Kokama, Flávia Abtipol e Paulo Desana pelo apoio na produção da visita à comunidade do Inhãa-Bé. Também agradecemos a Yrá Tikuna, Gleicieli Ferreira Marques, do povo Mura, e a Pure Munã, do povo Tikuna e Sateré Mawé, por nos guiar até a comunidade durante a seca.