Manchetes Socioambientais
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O trabalho do ISA no monitoramento de "pressões e ameaças" parte do entendimento de que "pressão" é um processo de degradação ambiental (desmatamento, roubo de madeireira, garimpos, incêndios florestais etc) que ocorre no interior de uma área legalmente protegida, como Terra Indígena, Território Quilombola e Unidade de Conservação, como Parques e Florestas Nacionais, levando a perdas de ativos e serviços socioambientais. Ou seja, "pressão" é um processo que pode levar à desestabilização legal e ambiental de determinada área protegida. Já "ameaça", por sua vez, é a existência de risco iminente de ocorrer alguma degradação ambiental no interior de uma área protegida.
Tomadas cumulativamente, as pressões e ameaças podem gerar impactos socioambientais negativos de magnitude e alcance suficientes para desencadear o colapso no funcionamento dos ecossistemas e dos modos de vida das populações locais - e impactos negativos nas cidades. Os povos indígenas e populações tradicionais, como comunidades quilombolas e ribeirinhas, são diretamente atingidos pelas pressões e ameaças por terem seus territórios invadidos, suas florestas desmatadas e seus rios desviados e contaminados.
Aqui no ISA, o trabalho de monitoramento das pressões e ameaças é feito por pesquisadores especializados em antropologia, direito socioambiental, modelagem de uso da terra e avaliação de políticas públicas. A equipe diretamente responsável pelo monitoramento de áreas protegidas do ISA atua na conexão entre pesquisadores, formuladores de políticas públicas e tomadores de decisão. As áreas de atuação desse time abrangem o desenvolvimento de pesquisas científicas e aplicações em sistemas de informação geográfica e ferramentas de monitoramento da situação jurídica, demográfica e projetos governamentais que impactam as áreas protegidas.
O monitoramento de áreas protegidas do ISA possui conhecimento acumulado no monitoramento de pressões e ameaças desde a década de 1980 como um dos primeiros programas da sociedade civil no Brasil a construir uma plataforma organizada de sistemas de informação socioambiental, antes mesmo que setores governamentais. Esse trabalho iniciou-se no antigo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), em 1983, com o monitoramento de Terras Indígenas no Brasil. Em 1992, ainda no Cedi, foi iniciado o monitoramento das Unidades de Conservação na Amazônia e outras áreas públicas. Seu Sistema de Informação de Áreas Protegidas (SisArp) é um sistema Web com 15 módulos de dados por temas específicos, incluindo o módulo de pressões e ameaças. O SisArp alimenta sites institucionais que disponibilizam dados, mapas, imagens, vídeos, notícias, publicações e análises temáticas. Alguns sites estão listados abaixo, confira!
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Em formato de enciclopédia, é considerado a principal referência sobre o tema no país e no mundo |
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A mais completa fonte de informações sobre o tema no país |
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Versão especial da Enciclopédia PIB para a educação infantil; |
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o primeiro produto web de referência neste tema, lançado em junho de 2007 |
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painel de indicadores de consolidação territorial para as Terras Indígenas |
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painel de informações sobre o estado das florestas e alertas de pressões e ameaças que impactam as áreas protegidas. |
Estudo liderado pela Fiocruz identificou a presença do metal tóxico em amostras de cabelo de cerca de 300 pessoas analisadas no Alto Rio Mucajaí, na Terra Indígena Yanomami
Uma pesquisa realizada com indígenas do povo Yanomami, do subgrupo Ninam, de nove aldeias localizadas em Roraima, mostrou que todos os participantes estão contaminados por mercúrio. Os maiores níveis de exposição foram detectados em indígenas que vivem nas aldeias localizadas mais próximas aos garimpos ilegais de ouro.
O estudo 'Impacto do mercúrio em áreas protegidas e povos da floresta na Amazônia: uma abordagem integrada saúde-ambiente' foi conduzido pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), em parceria com a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que contou com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA).
Os pesquisadores identificaram a presença do metal pesado em amostras de cabelo de cerca de 300 pessoas analisadas, incluindo crianças e idosos.
“Esse cenário de vulnerabilidade aumenta exponencialmente o risco de adoecimento das crianças que vivem na região e, potencialmente, pode favorecer o surgimento de manifestações clínicas mais severas relacionadas à exposição crônica ao mercúrio, principalmente nos menores de 5 anos”, explica o coordenador do estudo, Paulo Basta, médico e pesquisador da Ensp/Fiocruz.
O estudo realizou as coletas na região do Alto Rio Mucajaí, em outubro de 2022. O local é alvo do garimpo ilegal há décadas, o que vem causando destruição ambiental, insegurança, violência e prejuízos à saúde dos indígenas.
“O garimpo é o maior mal que temos hoje na Terra Yanomami. É necessário e urgente a desintrusão, a saída desses invasores. Se o garimpo permanece, permanece também a contaminação, devastação, doenças como malária e desnutrição e isso é o resultado dessa pesquisa, é a prova concreta!”, enfatiza o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY), Dário Vitório Kopenawa.
Das 287 amostras de cabelo examinadas, 84% registraram níveis de contaminação por mercúrio acima de 2,0 µg/g. Já 10,8% ficaram acima de 6,0 µg/g, índice considerado alto, que requer atenção especial e investigação complementar.
Nas duas faixas de contaminação, é necessário notificar os casos ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), a fim de se produzir estatísticas oficiais sobre o problema na região.
Os pesquisadores destacam que indígenas com níveis mais elevados de mercúrio apresentaram déficits cognitivos e danos em nervos nas extremidades, como mãos, braços, pés e pernas, com mais frequência.
Conforme orienta a Organização Mundial da Saúde (OMS), níveis acima de 6 microgramas de mercúrio por grama de cabelo (μg.g-1 ) podem trazer sérias consequências à saúde, principalmente a grupos vulneráveis. Assim, não há limite seguro para exposição ao Hg.
Além da detecção do mercúrio, a pesquisa fez exames clínicos para identificar doenças crônicas não transmissíveis, como transtornos nutricionais, anemia, diabetes e hipertensão.
Ao cruzar os dados, foi observado que, nos indígenas com pressão alta, os níveis de mercúrio acima de 2,0 µg/g são mais frequentes do que nos indígenas com pressão arterial normal.
Também foram realizados testes para estimar a prevalência de doenças infecciosas e parasitárias, incluindo malária e infecções sexualmente transmissíveis (IST) como HIV/AIDS, Sífilis, e Hepatites B e C.
Mais de 80% dos participantes relataram ter tido malária ao menos uma vez na vida, com uma média de três episódios da doença por indivíduo. Em 11,7% dos indivíduos testados, foi possível identificar casos de malária vivax e falciparum sem manifestações clínicas evidentes, características comuns em áreas de alta transmissão da doença.
Mais de 25% das crianças menores de 11 anos tinham anemia e quase metade apresentaram desnutrição aguda. Além disso, 80% apresentaram déficits de estatura para idade, o que sugere, de acordo com os parâmetros da OMS, um estado de desnutrição crônica.
Outro dado alarmante é referente à cobertura vacinal: Na região do estudo, apenas 15,5% das crianças estavam com as vacinas do calendário nacional de imunização em dia.
O estudo também analisou 47 amostras de peixes, 14 de água e sedimentos do rio Mucajaí e afluentes. Todas as amostras de peixes apresentaram algum grau de contaminação por mercúrio, sendo as maiores concentrações detectadas em peixes carnívoros, em espécies muito apreciadas na Amazônia, tais como o mandubé e piranha.
A análise do risco atribuível ao consumo de pescado revelou que a ingestão diária de mercúrio excede em três vezes a dose de referência preconizada pela Agência de Proteção Ambiental do governo estadunidense (U.S.EPA).
A análise das amostras de água não revelou contaminação por mercúrio. Por outro lado, duas amostras de sedimentos apresentaram níveis de mercúrio acima do nível 1 da resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que trata do tema.
Os pesquisadores fazem uma série de recomendações com base no cenário encontrado durante os estudos. Como ações emergenciais, mencionam interrupção imediata do garimpo e do uso do mercúrio, desintrusão de invasores e a construção de unidades de saúde em pontos estratégicos da Terra Indígena Yanomami.
“Não é a primeira vez que a Fiocruz faz uma pesquisa na Terra Yanomami e que comprova que os nossos parentes estão contaminados pelo mercúrio. Isso é muito grave! As nossas crianças estão nascendo doentes. As mulheres estão doentes, os nossos velhos estão doentes! O nosso povo está morrendo por causa do garimpo”, analisa Dário Kopenawa.
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Como ações estruturais, propõem que haja atualização da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), que seja assegurada a presença regular de profissionais de saúde e que se invista na formação continuada de agentes indígenas de saúde.
Além disso, o estudo também indica como necessárias ações específicas para as populações expostas e potencialmente expostas ao mercúrio, tais como: rastreamento de comunidades cronicamente expostas ao mercúrio, para a realização de diagnósticos laboratoriais tempestivos a fim de avaliar pessoas com quadros sugestivos de intoxicação por mercúrio já instalados, elaboração de protocolos e rotinas apropriadas para diagnóstico e tratamento de pacientes com quadro de intoxicação por mercúrio estabelecido e criação de um centro de referência para acompanhamento de casos crônicos e/ou com sequelas reconhecidas.
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Áreas afetadas por incêndios tornam-se menos úmidas e nascentes devem produzir menos água que chegaria aos rios nos próximos anos
Áreas de florestas e serras em Roraima estão sendo afetadas por megaincêndios - fogo de grandes proporções, com larga quilometragem e com impactos econômicos, ambientais e sociais, incluindo a saúde pública. A situação pode ser considerada um desastre ambiental em andamento e suas consequências podem alterar ecossistemas no estado com florestas úmidas tornando-se cada vez mais secas e prejudicando até a sobrevivência da fauna.
Conforme Haron Xaud, doutor em sensoriamento remoto e pesquisador na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e professor da Pós-graduação em Recursos Naturais da UFRR, à medida que as áreas são repetidamente afetadas por incêndios, elas se degradam e podem afetar até mesmo nascentes de água de Roraima.
Xaud explica que os serviços ambientais ficam cada vez mais negativamente impactados: biodiversidade, proteção do solo, geração de água etc. “As serras de Roraima, principalmente as de cobertura vegetal florestal, têm muitas nascentes de água que dependem da vegetação estar saudável e conservada. Se você tem uma intensa mudança degenerativa na vegetação, para uma mesma quantidade de chuva que caia, você vai ter mudanças na capacidade de captação, infiltração, velocidade de passagem da água pelas bacias hidrográficas afetadas”.
Conforme o especialista, a consequência esperada é que o estado sofra com crises hídricas mais intensas em períodos mais curtos, com extremos mais intensos tanto para épocas de cheias, quanto para épocas de secas.
“A degradação contínua da cobertura vegetal, principalmente em relevos mais inclinados, tende a aumentar ainda a erosão dos solos mobilizando sedimentos para os rios tributários e para os grandes rios de Roraima, o que potencializará também estes períodos de cheias e de estiagem, e o resultado de médio e longo prazos vai ser percebido nos diversos rios, inclusive no rio Branco”, resume.
Roraima enfrenta uma severa estiagem, intensificada pelo El Niño, e o Rio Branco, seu principal abastecedor de água potável, chegou ao nível negativo de -0,39m, se aproximando do ponto mais baixo de sua história. Conforme a Companhia de Águas e Esgotos de Roraima (Caer), a situação compromete em 30% o abastecimento da capital, Boa Vista, enquanto em Mucajaí o comprometimento do serviço já chega a 70%.
Em sua pesquisa de doutorado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Xaud analisou 50 parcelas em áreas de floresta em Roraima. De 1997 a 2010, ele monitorou a quantidade de incêndios e como eles modificavam áreas monitoradas, considerando cinco cenários: florestas não atingidas por fogo, atingidas uma vez com baixo impacto, atingidas uma vez com alto impacto, atingidas duas vezes e atingidas três vezes. Leia o trabalho aqui.
“Existe uma progressão da degradação quanto maior for a recorrência. Observei o aumento de determinadas espécies de plantas que ocorrem tipicamente em florestas secundárias, que não são comuns para florestas conservadas. À medida que há um incêndio, começa a haver alteração da biodiversidade e há maior ocorrência de indivíduos que são considerados de florestas perturbadas”, explica sobre as mudanças.
Ainda conforme Xaud, as espécies que ocupam os espaços após o fogo podem ser chamadas de pioneiras. Elas têm funções importantes na recuperação dos ecossistemas pois permitem que a vegetação original destas áreas, que depende de mais sombra e umidade, chamadas de espécies clímaxes, retornem aos poucos.
No entanto, quanto mais afetadas pelo fogo, mais as florestas se modificam, pois perdem biomassa e estatura, assim o sol direto e ventos adentram mais e deixam o local mais quente e mais seco, o que por sua vez, torna as áreas menos adequadas para as espécies que são comuns a ambientes úmidos e mais propício para as pioneiras, como a embaúba.
“Muda toda a biodiversidade, toda a composição da floresta. Espécies que eram típicas são substituídas por outras. A alta biodiversidade de florestas tropicais é simplificada, reduzida, passando a apresentar maior homogeneização de espécies em áreas muito impactadas com incêndios”, afirma Xaud.
O especialista explica que com todas essas mudanças, também é perdida a volumetria em madeira de espécies de maior valor econômico e ocorre grande emissão de carbono para a atmosfera. Além disso, a cada novo evento, a área se torna mais vulnerável a novos incêndios.
“Algumas espécies rasteiras invasoras, como capins, começam a tomar conta da parte rasteira sendo mais aptas a queimar, mais rápido e mais intensamente. Dessa forma, toda a floresta se torna progressivamente mais vulnerável ao fogo”, detalha.
Não só a vegetação é impactada, como a fauna também. De acordo com o pesquisador, outras pesquisas na Amazônia revelam que desde invertebrados a grandes mamíferos, todos são afetados de diferentes formas. De uma forma geral, quanto mais próximas ao topo da cadeia alimentar, mais prejudicadas pela situação é a espécie animal, com tendência a terem dificuldades para se alimentar e reproduzir.
Megaincêndios e fome na Terra Indígena Yanomami
Roraima acumula 3.973 focos de calor em 2024. O Estado é o líder nacional com acúmulo de 28.3% do total de focos de calor do país. Em fevereiro, houve recorde histórico de 2.057. Em março, já foram registrados 1.312 e em janeiro, 604.
A capital Boa Vista atingiu um nível de poluição do ar considerado perigoso neste domingo (24), conforme o monitor de qualidade do ar Gaia. O nível de partículas PM2,5 - um dos poluentes atmosféricos mais nocivos - chegou a 414. Conforme Xaud, é o pior índice já registrado na história de Boa Vista.
Segundo Ciro Campos, analista do Instituto Socioambiental (ISA) em Roraima, ainda é cedo para comparar a situação com o megaincêndio de 1998, que foi uma tragédia ambiental sem precedentes. No entanto, ele acredita que o problema ainda pode aumentar muito se a estiagem se prolongar durante o mês de abril.
"Do jeito que a vegetação está seca e os ventos estão fortes, se não chover logo, podemos novamente ter um cenário de desastre em Roraima", alerta.
Duas Florestas Nacionais (Flonas) no estado, Anauá e Roraima, estão sofrendo com megaincêndios, e o fogo também já se aproxima da Flona Parima. A Flona Roraima começou a queimar em 05 de fevereiro e em cerca de um mês o fogo atingiu 30 km de norte a sul e 13 km de leste a oeste. Enquanto a Flona Anauá iniciou incêndio em 04 de março e em cerca de uma semana teve 14 a 15 km de área queimada em orientação norte a sul.
“O que caracteriza um megaincêndio é uma série de coisas, como impacto econômico, impactos ambientais, dimensão em área dos incêndios, importância das áreas incendiadas e as populações que são atingidas. São vários fatores de análise para podermos dizer que estamos diante de megaincêndios. Eles têm danos que chegam a ser irreversíveis”, principalmente, se houver recorrência nos próximos anos, explica Xaud.
Hutukara Associação Yanomami denuncia impactos da seca na Terra Indígena Yanomami:
Na Terra Indígena Yanomami, uma das grandes frentes de incêndio começou em 09 de fevereiro próximo às áreas incendiadas na Flona Roraima e se expandiu rapidamente em todas as direções, chegando a atingir nos primeiros 30 dias cerca de 32 km de extensão na direção norte sul e cerca de 17 km na direção Leste-Oeste. As frentes de incêndio da Flona Roraima e da TI Yanomami desta região, acabaram se encontrando e continuam ativas até o momento.
Conforme o monitoramento de Xaud, outra importante área afetada na Terra Indígena Yanomami está na região da Missão Catrimani, que começou a queimar mais tarde, mas se mantém ativa ainda até o momento.
As associações Hutukara Yanomami (HAY) e Wanasseduume Ye’kwana (Seduume) enviaram um ofício sobre alerta de insegurança alimentar causada pelo fogo em três regiões às autoridades em 19 de março. Conforme o documento, os incêndios seguem destruindo roças e as poucas plantações que sobram acabam atacadas por pragas.
Duas regiões já haviam relatado problemas causados por fogo em fevereiro através do Sistema de Monitoramento da Terra Indígena Yanomami. Neste mês, moradores do Apiaú usaram a ferramenta para pedir cestas básicas, pois a perda das roças resultou em estado de escassez e fome na região.
Em Waikás, as comunidades tentaram deter o fogo sem sucesso e quatro roçados foram destruídos. As chamas também atingiram o plantio de cacau de três anos, que faz parte de um projeto de comercialização das amêndoas para produção do Chocolate Yanomami, resultando em prejuízo à economia da região.
A região da Missão Catrimani sofre com um dos quadros mais críticos: quase todos os roçados foram destruídos, mais duas casas foram queimadas em março e as plantações restantes sofrem ataques de lagartas.
Para Estêvão Benfica Senra, geógrafo e analista do ISA, o manejo de fogo para renovação de pastagem tem ligação direta com as chamas que atingem o território Yanomami. Ele afirma, ainda, que a ação humana com o fogo também é feita para expansão de pastagem nestas áreas.
“Existe uma maior concentração de focos de calor nas áreas dos assentamentos e na zona de transição floresta-lavrado, onde está o limite leste da Terra Indígena Yanomami. O Apiaú, por exemplo, está em uma área de expansão da fronteira agrícola, onde o fogo é utilizado para renovação da pastagem, limpeza do terreno e grilagem de terra”, diz.
Ele conta que a região já sofreu com incêndios diversas vezes e o fogo se repete todas as vezes em que o El Niño se manifesta. A situação empobrece a vegetação a cada nova queimada e fica mais suscetível a queimar de forma descontrolada durante as tentativas de limpeza.
“A ocupação de áreas de floresta para uso agropecuário, na borda da terra indígena, aumentou muito desde o megaincêndio de 1998, assim como aumentou o desmatamento e o uso do fogo para formação de roçados e pastagens. Este cenário de expansão desordenada da fronteira agrícola, aliado à uma seca extrema, criou as condições para o surgimento de incêndios ao longo de uma faixa de centenas de quilômetros, de controle difícil e consequências imprevisíveis”, complementa Ciro Campos.
O ISA apoia as organizações da Terra Indígena Yanomami com o monitoramento dos focos de calor e a qualificação de informações territoriais sobre os impactos dos incêndios nas comunidades, além de realizar doações de alimentos e materiais diversos (redes, roupas, panelas, ferramentas agrícolas, etc.) para as famílias afetadas nas regiões do Médio Catrimani e Apiaú.
Serra Grande e reflorestamento
Com uma distância aproximada de 60 km da capital Boa Vista, a Serra Grande é um dos principais pontos de ecoturismo de Roraima. Localizada no município do Cantá, esta serra tem 850m de altura e seu cenário mescla a floresta amazônica com o lavrado roraimense em áreas próximas. No entanto, a diversidade que encanta os turistas está ameaçada de profunda mudança em razão do fogo.
“A própria Serra Grande, não é a primeira vez que está incendiando, ela já incendiou outras partes e nesse histórico que vemos hoje, dela estar sendo incendiada em todos os lados de forma crescente, a mudança vai ser maior. Se temos áreas repetidamente incendiadas nas serras, que não foram mapeadas em detalhes, isso vai ter todos os impactos já mencionados na flora, na fauna e nas nascentes, além de eminente efeito de queda de árvores, que ficarão mais vulneráveis à erosão e desestruturação de encostas nos períodos de chuvas”, explica Xaud.
Conforme o pesquisador, a atual situação vai exigir forte mobilização em restauração florestal a fim de recuperar a complexidade vegetal da Serra Grande e das demais serras. “Isso é um ponto crucial. O fogo da forma que está hoje vai exigir das instituições um intenso programa para restauração destas áreas de forma acelerada, senão elas não vão conseguir se recuperar”.
Rede de Sementes em Roraima
O ISA implementou a iniciativa da Rede de Sementes em Roraima neste ano. O objetivo do projeto é coletar vários tipos de sementes nativas, fazer uma muvuca (mistura das sementes) e promover a restauração ecológica em áreas degradadas.
Segundo Emerson da Silva Cadete, biólogo e técnico responsável pela Rede de Sementes no estado, os povos da Terra Indígena Serra da Lua devem ser os primeiros parceiros para as coletas. Inicialmente, a muvuca será usada para reflorestar áreas indicadas pelos próprios indígenas no território.
“Estamos em um processo de ajuda às comunidades que participam deste processo por conta das queimadas. Se queimar toda a floresta não tem sementes e se não tem sementes, não tem restauração”, afirma Cadete.
Para apoiar comunidades indígenas da Região Serra da Lua no combate aos incêndios florestais e à seca, o ISA faz doações de alimentos, combustível e ferramentas (bombas costais, terçados, luvas, óculos de proteção, perneiras entre outros).
Os próximos passos da Rede de Sementes em Roraima envolvem o diálogo com governos federal e estadual, prefeituras, agricultores e fazendeiros para a restauração ecológica em outras áreas afetadas pelo fogo, como a Serra Grande, ou que tenham sofrido com outro tipo de degradação no Estado.
“Vamos buscar compradores, que podem ser pessoas do governo para atingir o objetivo de restaurar áreas de proteção e reservas legais. Também faremos isso com donos de lotes, produtores rurais e donos de fazenda, pois são obrigados por lei a restaurarem se ultrapassarem áreas de reserva legal.
Cadete explica que o diferencial da Rede de Sementes para outras formas de restauração é a simplificação do processo, pois existe menor demanda de trabalho, como a preparação do solo, mas a dispersão de sementes é mais fácil. Além disso, o projeto gera renda para as comunidades de coletores que vendem as sementes para outros atores que necessitam fazer a restauração.
Para Xaud, aliar todas as instituições e seu conhecimento sobre os impactos dos incêndios florestais em Roraima, bem como sua prevenção e controle, em articulação com as ações de redes de sementes e programas de restauração florestal, será de suma importância para todas as dimensões de ações de conservação e desenvolvimento do estado de Roraima, uma vez que em todas as atividades produtivas e de qualidade de vida das populações, os recursos naturais e, em especial a água, só se manterão disponíveis nos atuais níveis tanto no meio ambiente e quanto para nosso uso, caso haja efetivo controle destes grandes desastres ambientais, cada vez mais intensos e frequentes.
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Edinho Batista, coordenador do Conselho Indígena de Roraima, alertou para os graves problemas gerados pela forte estiagem no Estado
Roraima, o Estado mais ao norte do Brasil, bateu recorde histórico de focos de calor em fevereiro, com 2057 registros. No mesmo mês, o Rio Branco, seu principal abastecedor de água potável, chegou ao nível negativo de -0,15m.
Enquanto os não indígenas seguem a rotina na capital Boa Vista - coberta por fumaça desde meados de fevereiro - os Yanomami, Macuxi, Wapichana e povos de outras etnias vêem suas casas e roças serem destruídas por incêndios e, em quatro municípios, comunidades indígenas têm à disposição para beber água que mais parece lama.
Para a Defesa Civil, a situação deve se estender por cerca de mais 60 dias, quando há a previsão do inverno começar no estado. Durante os próximos dois meses, a densidade de fumaça deve aumentar, assim como a quantidade de focos de calor e incêndios, que na avaliação do Corpo de Bombeiros são causados em 100% dos casos pela ação humana.
“A certeza que temos é que Roraima está queimando, Roraima está pegando fogo”, diz Edinho Batista, coordenador do Conselho Indígena de Roraima, sobre a situação do Estado que enfrenta uma severa estiagem intensificada pelo fenômeno El Niño, conforme relatório da Defesa Civil.
“Sabemos que 90% da população depende da água do Rio Branco e sabemos que essas pessoas precisam olhar para isso como uma consequência dos impactos da soja, do garimpo e grandes empreendimentos. Isso tem afetado a todos nós. Precisamos acordar, porque se continuar com falta de água, fumaça e incêndios, não é só o indígena que vai morrer, vai morrer todo mundo”, ponderou Batista.
Conforme monitoramento da Companhia de Águas e Esgotos de Roraima (CAER), o Rio Branco começou fevereiro com o nível de 0,20m e às 15h do dia 15 atingiu o nível negativo pela primeira vez no ano. Ao fim do mês, o nível estava em -0,15m.
Quando Edinho foi entrevistado, em 27 de fevereiro, relatou que cerca de 50 mil indígenas que vivem em comunidades estavam sem água potável porque 50 poços artesianos já haviam secado. No entanto, ele deixou o alerta de que até, a publicação desta reportagem, o número aumentaria. Para estas pessoas terem acesso a água é preciso caminhar 5km e até escolas indígenas ficaram desabastecidas.
“Não queremos revoltar as pessoas, mas sensibilizar sobre qualidade de vida que não se dá só no mundo material, mas também no espiritual. É preciso entender que a água, as plantas, os animais e as pessoas são importantes e a vida não pode ser colocada abaixo do mercado. O capitalismo influencia as pessoas a se contentarem com que recebem e não com o que têm e ficará para o futuro”, refletiu o coordenador do CIR.
Em quatro municípios, há comunidades indígenas bebendo água sem tratamento que pode ser comparada à lama, conforme o Diretor Executivo de Proteção e Defesa Civil, Coronel Cleudiomar Ferreira. Ele afirma que existe um esforço das prefeituras na distribuição de água, mas que não há garantia de que haja tratamento adequado, apenas que é menos prejudicial que a água suja de pequenos riachos.
“Nos municípios de Amajari, Pacaraima, Uiramutã e Normandia as comunidades indígenas estão bebendo lama, uma água de riacho sem tratamento e por não saberem da gravidade estão fazendo isso há muito tempo e durante a estiagem isso se agrava”, declarou Cleudiomar.
As queimadas e escassez de água atingem diversas regiões como Raposa Serra do Sol, Serra da Lua e São Marcos. Além de também ter chegado a Terra Indígena Yanomami, onde há relatos de crianças e idosos prejudicados pela fumaça, além de casas e roças destruídas por incêndios e falta de água potável.
Rotina na fumaça
A contadora Márcia Iully sai da casa para o trabalho, em uma rota de 9,6km, e diz que tem a impressão de que Boa Vista está sob uma neblina. Não fossem pelos sintomas de rápido cansaço e dificuldade para respirar, ela poderia ser enganada pela fumaça.
Como trabalha em uma sala fechada com ar-condicionado, Márcia quase chega a esquecer do intenso calor, da fumaça e da fuligem por algumas horas, mas basta cruzar a porta de saída do trabalho e é lembrada da real situação de Boa Vista.
Na primeira noite em que percebeu o excesso de fumaça, em 20 de fevereiro, pensou que a casa dela havia queimado. “Eu cheguei do trabalho, desci do carro e pensei: ‘minha casa pegou fogo’. Eu saí correndo e dei voltas pelo terreno para tentar entender de onde o fogo vinha, até que percebi que não era minha casa. Depois soube que houve alguns incêndios e que há queimadas no estado”, relatou.
Veja os registros de @vistaboavistarr:
Todos os 51 bairros da capital de Roraima estão tomados por fumaça, fuligem e cheiro de queimado há mais de uma semana. Boa Vista também é o 9º município com mais focos de calor em todo o Brasil neste ano. Outras oito cidades do estado integram o top 10, conforme o monitoramento do Programa Queimadas do do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
Desde que 2024 começou, Roraima já registrou 2661 focos de calor, liderando o ranking nacional com quase o dobro de Mato Grosso do Sul, que ocupa a segunda posição com 1710 focos de calor. Do total de focos deste ano em Roraima, 2057 foram apenas em fevereiro, chegando a um recorde histórico desde que o monitoramento do Inpe começou em 1998. O maior número para o mês pertencia ao ano de 2007, quando houve 1.347 registros.
“A diferença do foco de calor para o incêndio é que o foco é o momento que o satélite passa e identifica a alta temperatura, pode ser só algo que tenha passado ou uma chama que tocou e apagou imediatamente, mas podemos dizer que 90% é fogo”, explica o Coronel Cleudiomar.
Ainda conforme Cleudiomar, todos os incêndios no Estado são resultados de ações humanas – seja com ou sem intenção. Ele exemplifica com caminhões que soltam faíscas pelo escapamento (involuntário) e limpezas de roças e terrenos (voluntários), sendo este último o que representa o maior número de casos.
“Não existe incêndio espontâneo, é muito difícil. A causa disso que estamos vivendo é 100% de ação humana. Também está em investigação os incêndios criminosos de pessoas que colocam fogo propositalmente e fogem do cenário, mas o mais comum são queimas de roças por agricultores e em nível menor em comunidades indígenas”, afirma.
Para lidar com a situação, o governo de Roraima decretou situação de emergência no dia 24 de fevereiro em nove dos 14 municípios do Estado após recomendação da Defesa Civil em um parecer técnico que afirma que Roraima enfrenta escassez de água, prejuízos à agricultura e pecuária, incêndios florestais e problemas de saúde como impactos negativos da estiagem. O que caracteriza uma situação de desastre nível II.
Apesar do alto número de focos de calor, Boa Vista não entrou na lista de emergência do governo estadual. Os municípios em situação de emergência decretada, que agora possuem dispensa de licitação para compras e contratações relacionadas a situação climática do estado, são:
- Amajari;
- Alto Alegre;
- Cantá;
- Caracaraí;
- Iracema;
- Mucajaí;
- Pacaraima;
- Normandia;
- Uiramutã.
Conforme a Defesa Civil, a estiagem está atrelada ao El Niño, fenômeno associado ao aquecimento das águas do Oceano Pacífico. Ainda conforme a Defesa, uma longa faixa de águas quentes pôde ser observada no Oceano Pacífico Equatorial a partir de junho de 2023.
A Defesa diz ainda que os efeitos foram intensificados a partir de setembro “culminado na configuração de uma forte estiagem, o qual tem desencadeado uma série de repercussões adversas tanto para as comunidades, quanto para os ecossistemas”.
Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o sul de Roraima pode ter chuvas de até 50mm acompanhadas de raios, rajadas de ventos e trovoadas de 26 de fevereiro até 04 de março. Com as chuvas no Amazonas, o Rio Uraricoera foi beneficiado e a Defesa Civil espera que parte desta água eleve o nível do Rio Branco.
Caminho da fumaça
É do Nordeste para o Sudoeste por onde os ventos sopram predominantemente em Roraima. Dessa forma, o que queima em Amajari e ao Norte de Alto Alegre, joga fumaça para dentro da Terra Indígena Yanomami.
Os incêndios em Mucajaí, cidade também coberta por fumaça segundo a Defesa Civil, sopram consequências para a calha do Rio Negro, incluindo a região do Demini, que é a casa do xamã e liderança Davi Kopenawa na Terra Indígena Yanomami.
Já Boa Vista está coberta principalmente por fumaça produzida na própria capital, mas também recebe dos municípios em seu entorno como Cantá, Bonfim e Normandia – sendo este último com uma influência muito fraca.
“Não tem o que fazer, só aguardar. A fumaça persiste até três ou quatro dias após o combate aos incêndios dos Bombeiros. A incidência de fumaça vai crescer até que o inverno comece”, disse o Coronel Cleudiomar acrescentando que o inverno deve começar em cerca de 60 dias.
Fogo destrói casas e roças na Terra Yanomami
Áreas de florestas vitais da Terra Indígena Yanomami têm sido atingidas por incêndios que estão destruindo casas comunitárias e roçados dos indígenas. O Sistema de Monitoramento da Hutukara Associação Yanomami (HAY) recebeu dois relatos das regiões Missão Catrimani e Apiaú em fevereiro.
Moradores de Apiaú relataram que o fogo começou em uma região externa da Terra Indígena Yanomami, em locais onde existem fazendas para criação de gado. Ao adentrar no território indígena, o fogo atingiu áreas de floresta vitais para a economia das comunidades.
Já na região da Missão Catrimani, os moradores relatam que a casa comunitária de Manopi e Bacabal foi destruída após uma queima de roças, iniciada em 19 de fevereiro, sair do controle. Redes e outros objetos pessoais também foram destruídos após as lideranças tentarem apagar o fogo sem sucesso. As lideranças relatam ainda que quase todas as 22 comunidades da região estão com seus roçados queimados.
Em ambas as regiões, houve queixa de problemas respiratórios causados pela fumaça, principalmente em crianças e idosos. A severa estiagem em Roraima também é percebida pelos Yanomami, que relatam falta de acesso à água potável após rebaixamento do nível do Rio de Apiaú.
Na região de Waikas, onde vive o povo Ye’kwana, uma roça de cacau, que seria usada na produção do chocolate yanomami deste ano, também foi atingida e destruída por um incêndio.
Para controlar a situação e apoiar as comunidades, a Hutukara pediu em ofício enviado à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que:
- - Sejam acionadas as brigadas de incêndio com urgência;
- - Que o Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana (DSEI-YY) recupere os sistemas de abastecimento de água das comunidades Serrinha, Hatyanai e Natureza em Apiaú;
- - Um planejamento de oficinas sobre boas práticas de manejo de fogo para as comunidades;
- - Que o DSEI-YY redobre as ações de vigilância nutricional e de prevenção e tratamento de doenças respiratórias.
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Ajude as comunidades indígenas de Roraima
Casas também foram destruídas por incêndios que atingiram a mata da Terra Indígena São Marcos, em Pacaraima. Em um vídeo gravado pelos moradores e divulgado pelo Conselho Indígena de Roraima, uma família deixa a residência enquanto é alertada para salvar apenas os próprios documentos.
“Hoje, em Normandia e Pacaraima, temos bastante comunidades que estão sendo afetadas pelo fogo. Deixamos uma orientação para a população em geral: antes de fazer algum tipo de queimada, seja de roçado ou lixo de residência, ou até se for jogar um cigarro em beira de estrada, para que tenha a consciência de que não fazer isso durante este período, pois sabemos que está bastante seco e você pode estar contribuindo para ter mais focos de incêndios”, orientou O coordenador de campo das Brigadas Comunitárias, Jabson Nagelo Macuxi.
Para apoiar as comunidades afetadas, o CIR mobiliza esforços e pede doações que serão direcionadas a ajudar as famílias prejudicadas pelos incêndios. Saiba como doar AQUI.
Através do projeto de Produção de sementes nativas e restauração ecológica em Roraima, o Instituto Socioambiental (ISA) apoia comunidades indígenas da Região Serra da Lua no combate a incêndios florestais e à seca com doações de alimentação, combustível e ferramentas (bombas costais, terçados, luvas, óculos de proteção, perneiras entre outros).
Com três brigadas comunitárias geridas pelo CIR, o Instituto apoia desde 2019 com materiais de consumo, equipamentos, apoios locais e fardamento. O trabalho envolve 36 brigadistas de 8 terras indígenas em Roraima. Eles são formados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovavéis (Ibama) em parceria com o CIR.
O ISA também apoia as organizações da Terra Indígena Yanomami com o monitoramento dos focos de calor e a qualificação de informações territoriais sobre os impactos dos incêndios nas comunidades, além de realizar doações de alimentos e materiais diversos (redes, roupas, panelas, ferramentas agrícolas, etc.) para as famílias afetadas nas regiões do Médio Catrimani e Apiaú.
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Relatório mostra que garimpo ampliou área e já devastou mais de 5,4 mil hectares dentro da Terra Indígena Yanomami
Um ano após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visitar Roraima e declarar uma Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) na Terra Indígena Yanomami, um novo relatório da Hutukara Associação Yanomami (HAY) aponta que o garimpo persiste no território e promove um estrangulamento dos serviços de saúde.
Lançado nesta sexta-feira (26/1), o documento, que recebeu apoio técnico do Instituto Socioambiental (ISA) e do Greenpeace Brasil, tem endosso também da Associação Wanassedume Ye’kwana (Seduume) e da Urihi Associação Yanomami.
De acordo com o novo relatório, o garimpo desacelerou em 2023, mas ainda teve a sua área ampliada em 7%. A área total devastada já acumula 5.432 hectares e impacta 21 das 37 regiões existentes. O ano teve registro de 308 mortes de Yanomami e Ye’kwana sem que servidores da saúde conseguissem atender comunidades vulneráveis por medo dos garimpeiros ilegais. Dessa forma, mortes por doenças tratáveis seguiram ocorrendo em escala semelhante à dos últimos anos.
“Os dados demonstram que embora o atual governo tenha se mobilizado para combater o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (TIY) em 2023, os esforços foram insuficientes para neutralizar a atividade na sua totalidade. De fato, houve uma importante redução no contingente de invasores, o que pode ser verificada na desaceleração das taxas de aumento de área degradada, mas o que se verificou ao longo de 2023 é que, ainda que em menor escala, o garimpo permanece produzindo efeitos altamente nocivos para o bem-estar da população Yanomami”, diz o relatório.
O líder Yanomami e presidente da HAY, Davi Kopenawa, pediu para que o governo federal reforce as ações de saúde em toda a Terra Indígena Yanomami, mantendo um trabalho coordenado que garanta a assistência para todos os Yanomami e Ye’kwana.
“Já completou um ano. Agora em 2024, vamos começar de novo? Eu queria conversar com o Exército e com os militares porque eles estão lá para proteger a floresta nacional, a floresta Amazônica, mas não estão protegendo. Só protegem os quartéis e o território Yanomami precisa de proteção porque essa floresta é uma proteção para o Brasil”, disse Davi Kopenawa.
Novas áreas
Mesmo sob intervenção federal, a Terra Indígena Yanomami registrou abertura de novas áreas de garimpo em 2023. Foram registradas, entre janeiro e dezembro do ano passado, 1127 alertas de novas áreas de desmatamento associadas ao garimpo, que somaram 238,9 hectares. Os meses que mais registraram alertas foram janeiro (310), março (193) e outubro (119). Chama atenção o fato de que em março e outubro o território já estava sob intervenção, com presença de forças de segurança na região.
Mapa comparativo da degradação da floresta pela atividade garimpeira no entorno do Rio Couto Magalhães entre julho de 2023 e janeiro de 2024
Este levantamento foi feito através da interpretação de imagens de satélites de 4,7 metros de resolução da Planet. Foram utilizados os mosaicos mensais e, em algumas situações, os diários, para identificação de novas áreas de desmatamento abertas pela atividade garimpeira.
Relatos
Estima-se que até 80% dos invasores tenham sido retirados nos primeiros seis meses. No entanto, durante o segundo semestre, houve retorno massivo. Os indígenas da região de Palimiú relatam acordar todos os dias com o barulho de motores de alta potência furando um bloqueio improvisado com cabos de metais no Rio Uraricoera.
“Tenho muito medo. Eles passam, depois de uma semana eu já esqueci um pouco, mas eles passam de novo e todos nós sentimos medo. Meus filhos estão com medo. Eles atrapalham nosso sono, tenho medo de que eles venham atirar na gente, por isso eu não durmo direito. Nós vivemos bem na beira do rio, por isso quando eles passam eu fico com muito medo”, relatou uma liderança da comunidade Walomapi.
A região do Rio Uraricoera, onde vive a liderança do relato, foi a terceira mais impactada pelo garimpo em 2023, tendo 32 hectares desmatados. As regiões dos rios Couto Magalhães e Mucajaí tiveram 78 e 55 hectares devastados, respectivamente, sendo as duas mais afetadas.
Mapa comparativo da degradação da floresta pela atividade garimpeira no entorno do Rio Mucajaí entre janeiro e outubro de 2023
Mapa comparativo da degradação da floresta pela atividade garimpeira no entorno do Rio Uraricoera entre janeiro e maio de 2023
Novas estratégias
Além de Palimiú, o Sistema de Alertas da Terra Indígena Yanomami confirmou a presença de garimpeiros ilegais em Alto Catrimani, Alto Mucajaí, Apiaú, Auaris, Homoxi, Kayanau (Papiu), Maturacá, Missão Catrimani, Papiu (Maloca Papiu), Uraricoera, Waikás, e Xitei.
Para burlar as operações, os grupos criminosos traçaram novas estratégias, como a mudança de centros logísticos para a Venezuela (Alto Orinoco, Shimada Ocho, Alto Caura, Santa Elena), adoção de novas tecnologias de comunicação para se antecipar às operações, resistência armada, exploração noturna e descentralização de canteiros com uso de pontos mais distantes dos rios.
Pistas clandestinas
Em julho de 2023, o Exército chegou a inutilizar a pista do Rangel, usada para o pouso de aeronaves clandestinas. No entanto, os invasores, que não foram retirados, voltaram ao local para recuperar a pista, que logo se tornou o local de maior movimentação ao longo do Rio Couto Magalhães.
“Ao longo do segundo semestre, a Hutukara recebeu diversas denúncias sobre a movimentação de garimpeiros nessa zona. E, embora a associação tenha chamado a atenção para a necessidade de se reocupar rapidamente o posto de saúde do Kayanaú com apoio de forças de segurança, com a morosidade da resposta do Estado, a estrutura do posto foi incendiada após um conflito local”, aponta o relatório.
O documento reconhece que a base de Proteção no Rio Mucajaí foi importante para inibir o assédio de garimpeiros, mas diz haver relatos de furos do bloqueio. Um dos exemplos de falha foi o episódio que resultou na morte de dois Ninam da comunidade Uxiu, depois de uma emboscada de garimpeiros.
No Rio Uraricoera, as pistas Espadinha e Mucuim foram desativadas no primeiro semestre, mas, já no fim do ano, quando as operações locais diminuíram, elas foram reativadas e contam agora com intensa movimentação. As lideranças relatam até três voos diários em direção a Mucuim, sendo o primeiro pela manhã, às 6h, para evitar fiscalização.
Saúde afetada pelos invasores
Das 308 mortes de Yanomami em 2023, 129 foram por doenças infecciosas e parasitárias (21%) e doenças respiratórias (21%). Casos destes tipos seriam facilmente tratáveis se o modelo de estrutura de atenção à saúde Yanomami funcionasse de forma plena. No entanto, o novo relatório aponta que o garimpo intimida servidores da saúde e impede que esses profissionais atuem em comunidades mais vulneráveis, e por isso não podem realizar ações preventivas e de promoção à saúde com a regularidade necessária.
Com o retorno dos invasores, armas de fogo seguiram entrando ilegalmente no território e o Sistema de Alertas da Terra Indígena Yanomami registrou relatos de ataques e ameaças de “seguranças do garimpo” no Xitei, além de conflitos armados entre diferentes grupos da exploração ilegal. Um cenário descrito como “estado de guerra” pelo novo relatório.
“Devido ao clima de insegurança e conflito nessas zonas, os profissionais de saúde têm evitado realizar visitas em muitas aldeias, com sérias implicações para a realização de ações fundamentais de atenção básica, como vacinação, busca ativa de malária, pré-natal, etc. Foi exatamente esse mecanismo que ajudou a produzir a crise, que atingiu seu ápice em 2022”, afirma trecho da nota técnica.
Vacinas
A baixa mobilidade no território yanomami, ligada à permanência do garimpo, impacta também na cobertura vacinal de crianças. Conforme dados do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Ye’kwana (DSEI-YY), menos da metade de crianças de até um ano, em 29 polos de saúde, recebeu todas as vacinas. Na faixa de 1 a 4 anos, 14 polos tiveram menos da metade das crianças totalmente vacinadas.
Na região do Xitei, onde profissionais de saúde estão impedidos de visitar casas-coletivas em razão do garimpo, a vacinação abrangeu apenas 1,8% das crianças de até 1 ano, e 4,2% das crianças de 1 a 4 anos.
A malária também é um dos problemas ainda não solucionados. Mesmo sem a disponibilização dos dados de novembro e dezembro de 2023, o ano acumulou mais de 25 mil casos, tendo uma média de quase dois mil casos para 12 meses. Relatos indicam que a situação se mantém assim pelos seguintes motivos:
- - Ausência de ações de controle de vetor nas comunidades;
- - Ações de busca ativa insuficientes;
- - Problemas de diagnóstico, com ocorrência de muitos falsos negativos;
- - Demora no início do tratamento, seja pelo problema de diagnóstico, seja pelo desabastecimento da farmácia;
- - Problemas no tratamento supervisionado, sendo que muitos indivíduos interrompem o tratamento antes de concluí-lo.
Em 2023, os dois polos mais afetados pela malária foram Auaris e Palimiú. Juntos, esses polos concentraram 37% de todos os casos da Terra Indígena Yanomami, ou seja, mais de 9 mil casos. Em ambas as regiões, sabe-se da influência do garimpo como principal vetor da doença.
Em conclusão, as associações Yanomami recomendam uma série de ações importantes para as próximas etapas de enfrentamento da emergência sanitária, como desintrusão dos garimpeiros, elaboração de um plano territorial, apoio no reassentamento de comunidades que desejam mudar de local em razão dos impactos do garimpo e ajustes na resposta à crise sanitária.
Recomendações na íntegra:
- A retomada urgente de operações de desintrusão de garimpeiros no Território;
- Fortalecer a articulação entre as ações setoriais e planejar o desenvolvimento das ações de maneira integrada, através de uma coordenação operacional e intersetorial da emergência Yanomami;
- Elaboração de um Plano de Proteção Territorial, que considere:
a) soluções para reduzir a vulnerabilidade das outras calhas de rio que dão acesso à TIY;
b) soluções para o efetivo bloqueio fluvial e controle do espaço aéreo da TIY;
c) mecanismos que garantam uma rotina de patrulhamento nos rios, em caráter no mínimo mensal;
d) planos de ação regionalizados para regiões sensíveis que combinem em um único cronograma ações de neutralização do garimpo, apoio emergencial, promoção à saúde, reocupação das UBSIs com apoio de forças de segurança, e desenvolvimento de atividades de recuperação socioeconômica das comunidades;
e) plano de capacitação de indígenas para o seu envolvimento nas ações de vigilância nas calhas de rio; f) monitoramento remoto contínuo da TIY como respostas rápidas a novos alertas por parte das forças de segurança;
g) ações regulares de fiscalização no entorno de pistas de pouso, portos e postos de combustível;
- Desenvolver um plano para estimular o desarmamento voluntário nas regiões sensíveis;
- Apoiar o reassentamento de comunidades afetadas pelo garimpo que manifestam o interesse de mudar-se para um novo local por não ter condições mínimas de permanência, com apoio logístico, ferramentas, infraestrutura para atendimento à saúde e acompanhamento próximo durante sua instalação;
- Promoção de ajustes na resposta à crise sanitária, observando a necessidade de: i) reformas nas estruturas destinadas a atender os Yanomami, bem como nas pistas de pouso que atendem os estabelecimentos de saúde; ii) investimento na mobilidade dos funcionários dentro de território; iii) criação de novas unidades de saúde e que iv) sejam seguidas as recomendações do relatório da Transparência Internacional de forma a garantir o controle social dos orçamentos do DSEI-YY;
- Criação de uma força tarefa para o controle da malária na TIY;
- Ampliação das parcerias e cooperações técnicas com organizações especializadas em saúde que possam subsidiar soluções práticas capazes de responder à crise sanitária na Terra Indígena Yanomami;
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O estribilho da Salgueiro, que nesse Carnaval homenageia o povo Yanomami, é uma verdade ameaçada: um ano depois da declaração de emergência sanitária, as mortes continuam, com 308 óbitos em 2023, mais da metade deles de crianças com menos de cinco anos
*Artigo originalmente publicado em Sumaúma no dia 11 de janeiro de 2024.
No dia 11 de fevereiro, domingo de Carnaval, os Yanomami serão homenageados na Sapuc-aí pela Escola de Samba Acadêmicos da Salgueiro, uma das mais tradicionais e respeitadas do Rio de Janeiro. Com o tema “Hutukara”, que faz referência ao céu ancestral que desabou sobre a terra nos primórdios, formando a floresta que (virtualmente) cobre o nosso planeta hoje, o samba-enredo do Salgueiro é possivelmente uma dos mais belos e tocantes hinos de carnaval dos últimos tempos, e para todos aqueles que acompanharam de perto a escalada da crise humanitária na Terra Indígena Yanomami, é, nada menos do que, uma música para lavar a alma.
No refrão, os salgueirenses entoam: “Ya temi xoa, aê, êa! Ya temi xoa, aê, êa!”; o que pode ser traduzido como “eu ainda estou vivo” na língua Yanomae, uma das seis línguas da família Yanomami. A palavra “Temi”, por sua vez, refere-se não apenas à condição de estar vivo, mas também ao estado de boa saúde, tanto física, quanto mental e emocional. Assim, a força do estribilho reside no fato de que ele ressalta a imensa resistência do povo Yanomami e a sua capacidade de lutar contra o projeto genocida que lhe tem sido imposto há décadas pela sociedade não indígena. Uma guerra permanente, desde o contato, que ganhou contornos ainda mais dramáticos com a ascensão da extrema direita ao poder nos últimos anos.
Com um ano da declaração da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) na TI Yanomami, a expectativa, em 2024, era de que este refrão, finalmente, pudesse ser entoado também para celebrar a abertura de um novo ciclo de bem viver e prosperidade entre este povo, com a efetiva proteção da floresta e a plena recuperação do quadro sanitário das famílias Yanomami e Ye’kwana (povo indígena que habita a Venezuela e o território Yanomami no Brasil). Infelizmente, porém, este ainda não é o caso.
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Os últimos dados apresentados pelo governo sobre a situação de saúde na Terra Indígena Yanomami não deixa dúvidas: o governo fracassou em sua promessa de resgatar a dignidade no território Yanomami. O boletim de dezembro do Comitê de Operações Emergenciais (COE) apresenta, tristemente, números parelhos aos do governo passado. Apenas em 2023, foram registrados 308 óbitos na TIY, a maior parte decorrente de doenças evitáveis, como diarreia, pneumonia e malária. Mas ainda faltam os números de dezembro de 2023, e o mais provável é que as estatísticas do último ano sob a presidência do extremista de direita Jair Bolsonaro e as do primeiro de Lula fiquem próximas.
Em 2022 foram 343 mortes até o fim de dezembro. Do total de 308 mortos entre 1º de janeiro e 30 de novembro de 2023, 52,5% eram crianças com menos de 5 anos. Houve mais de 25 mil casos de malária, uma média de 2 mil casos por mês. Claramente, as ações do governo Lula foram insuficientes para mudar essa trajetória, que vinha embalada pela gestão criminosa da saúde indígena na gestão Bolsonaro.
Os indicadores de saúde do atual governo sugerem a manutenção de um quadro de desassistência grave com características semelhantes ao padrão adotado no último quadriênio, repetindo falhas básicas no modelo de assistência, como a ausência de visitas regulares de profissionais da saúde nas aldeias (potencializadas por questões de insegurança), problemas de abastecimento e de estrutura nas Unidades Básicas de Saúde Indígena e vigilância epidemiológica falha.
Como explicar tamanho insucesso? Obviamente, o governo sabia que seria cobrado por suas promessas em relação aos Yanomami. Logo, não acredito que tenha fracassado intencionalmente. Confio que o Presidente Lula, depois do que viu em Roraima, esteja de fato sensibilizado com a penúria Yanomami. Mas, como sabemos, o inferno está cheio de boas intenções. Não basta querer mudar uma realidade, sem antes se dispor, ao menos, a conhecê-la. Especialmente, uma realidade tão complexa como a da Terra Indígena Yanomami.
O primeiro – e talvez o mais importante – erro do governo foi não ter criado uma instância de coordenação das ações emergenciais com real poder de convocação de diferentes pastas. Como se sabe, a raiz da crise Yanomami está fundada na inter-relação de dois grandes problemas: 1) o avanço do garimpo ilegal; e 2) a degradação do sistema de atendimento à saúde, através da destruição política e administrativa do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Ye’kwana (DSEIYY), dois vetores que se retroalimentam e amplificam os impactos um do outro. Assim, o fluxo ideal das ações visando a estabilização da situação sanitária e política das comunidades seria: 1) operações para a neutralização do garimpo; 2) apoio às comunidades vulnerabilizadas com cestas básicas, ferramentas agrícolas e sementes; 3) realização de missões de atendimento à saúde; 4) restabelecimento do serviço de atendimento regular de saúde.
Apesar da razoabilidade de tal sequência, em nenhuma das regiões sensíveis da Terra Indígena Yanomami uma ação coordenada dessa maneira foi registrada. O que faz com que a maior parte delas ainda apresente alto grau de vulnerabilidade socioeconômica e sanitária, sem o devido apoio emergencial ou regularização no atendimento de saúde.
A Casa Civil, que poderia ter desempenhado esse papel, tanto não articulou as ações de maneira eficiente como sequer monitorou adequadamente o avanço das ações planejadas. A A falta de cuidado desse Ministério em relação aos Yanomami pode ser verificada no plano interministerial apresentado pelo governo. Um documento sem metas, indicadores, detalhamento de cronograma, orçamento e responsáveis. Assim, mesmo com as ações naufragando, a alta cúpula do governo sequer tinha condições de avaliar o andamento das atividades e propor correções.
Outra consequência da ausência de uma coordenação eficiente, foi o desperdício de recursos humanos e tempo de trabalho para produzir diagnósticos e estudos que pouco agregaram para solucionar os desafios reais da Terra Indígena Yanomami (logística, combate à malária, estratégias de proteção, desenvolvimento de infraestrutura etc.). Um exemplo fundamental é a ausência de um estudo logístico que ajude a planejar (com eficiência) e ajustar a dinâmica de envio de insumos e profissionais de saúde aos postos de atendimento. O grau de desorganização da frota de aeronaves a serviço da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) é espantoso para quem acompanha essa questão há mais de uma década.
Lideranças denunciaram problemas ao governo durante o IV Fórum de Lideranças Yanomami e Ye´Kwana, em julho de 2023:
A logística é um tema central na Terra Yanomami e deveria ter sido a espinha dorsal de um plano de reestruturação da presença do estado nesse território. Entretanto, na direção oposta, ela foi objeto de um jogo de empurra entre a Sesai e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), sem que nenhuma das duas conseguisse apresentar uma solução coerente para a questão. Foram-se meses para conseguir um acordo para a reforma de cinco pistas de pouso, de um universo de mais de quarenta aeródromos que precisam de manutenção e ampliação urgente. Para se ter uma ideia, algumas comunidades que antes eram atendidas por pequenas aeronaves hoje dependem exclusivamente de helicópteros, equipamento quase quase quatro vezes mais caros, em termos de horas de voo.
As falhas na logística fizeram com que o governo ficasse na mão das Forças Armadas, que consumiu milhões de reais lançando cestas básicas sobre aldeias e clareiras sem critério algum. Sem contar ainda as toneladas de alimentos que foram abandonadas nos armazéns das cidades porque os militares gastaram o dinheiro disponível para o frete aéreo antes de atingir a meta do número de cestas básicas estipulada pela Funai.
Aliás, qualquer pessoa que estudasse um pouco sobre a história recente da Amazônia saberia que os militares nunca foram exatamente aliados dos Yanomami, e que depender da boa vontade deles para solucionar um problema que eles ajudaram a criar, por ação ou omissão, seria uma aposta, no mínimo, arriscada.
No primeiro semestre de 2023, um pequeno grupo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), ora com apoio de policiais federais, ora com o apoio do grupo tático da Polícia Rodoviária Federal, combateu, de forma heroica, os diferentes núcleos de exploração ilegal espalhados pela floresta Yanomami. Assim, junto de outras ações que tinham por objetivo estrangular a logística do garimpo, o Ibama conseguiu expulsar boa parte dos invasores, reduzindo expressivamente os alertas de desmatamento até junho de 2023.
A partir de agosto, porém, o Ibama teve seu contingente deslocado para outras regiões, e o Exército assumiu um maior protagonismo nas ações de repressão e controle das calhas dos rios. Paulatinamente, as ações foram ficando menos regulares e menos eficazes, o que deu aos criminosos uma espécie de mensagem de que o fôlego do governo estava acabando.
Rapidamente, uma nova onda de invasão avançou sobre a Terra Indígena Yanomami. Por rio, pela terra e pelo ar, em pelo menos quinze regiões da TI os Yanomami denunciaram a resistência ou a volta de garimpeiros ao seu território. De outubro a dezembro de 2023, os Yanomami da comunidade do Palimiu registraram o trânsito diário de garimpeiros passando pela barreira improvisada no Rio Uraricoera. Enquanto os soldados dormiam em suas barracas na beira da pista de pouso do Palimiu, distantes do rio que deveriam vigiar, os garimpeiros transitavam religiosamente entre 4:30 e 6:30 da manhã, passando por debaixo do cabo de aço que supostamente controla o fluxo de entrada na região.
Parte desses barcos subiram para abastecer os acampamentos dos garimpeiros com ligações, já registradas, com o crime organizado, que, em nenhum momento da emergência Yanomami, deixou de atuar no território, explorando ouro e cassiterita, além da logística regional e da segurança armada.
Pouco abaixo do Palimiu existe uma comunidade chamada Korekorema. As lideranças dessa comunidade denunciaram o total descontrole da malária no local e o óbito de crianças devido à ausência de visitas da equipe de saúde, que não realiza missões regulares há meses. A equipe de saúde, por sua vez, alega que não pode se locomover até a comunidade de barco, pois o rio se encontra sob o domínio das facções e eles temem pelas suas próprias vidas.
Enquanto isso, em Brasília, a FUNAI argumenta em juízo que não tem condições de construir a Base de Proteção no Rio Uraricoera, mesmo com uma decisão judicial que desde 2018 obriga o Estado brasileiro a fazê-lo, por que não tem segurança para isso. (Ora, não se tem segurança por que não existe uma base, e não o contrário).
À medida que o primeiro ano da emergência foi se desdobrando, uma espécie de paralisia foi tomando conta do Estado brasileiro, embora a crise continuasse como uma ferida aberta e fétida na frente de todos.
No apagar das luzes desse triste ano de 2023, Davi Kopenawa, xamã e principal líder do povo Yanomami, foi à Brasília para participar de mais uma reunião do Conselhão do Lula. Sua esperança era poder chamar a atenção do presidente para essa paralisia e garantir que as promessas de janeiro de 2023 fossem repactuadas. Infelizmente, Lula chegou tarde demais ao evento e Davi não pôde transmitir as suas preocupações olho no olho. Enquanto ia para o aeroporto, no seu retorno para Boa Vista, perguntei se ele estava cansado de tantas viagens com resultados tão frustrantes. Ele fez uma pausa antes de me responder e contestou: “Ma! Ya temi xoa. Enquanto existir Yanomami, eu vou seguir lutando.”
Veja como foi a visita de Davi Kopenawa ao Salgueiro, em outubro de 2023:
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E a injustiça climática nos atravessou. Leia artigo exclusivo de Vanda Witoto e Juliana Radler sobre os impactos da seca recorde no Norte do País
Estamos emergindo da pior estiagem da história no maior Estado do Brasil, o Amazonas, cujo território tem 1.559.255, 881 km² — o equivalente às áreas da França, Espanha, Suécia e Grécia somadas. Esse gigante que abriga a maior parte da Amazônia no Brasil sofreu intensamente em 2023 os efeitos da emergência climática.
O ano entra para a História porque os maiores rios da Bacia Amazônica atingiram marcas recordes de seca, deixando os 62 municípios do Amazonas em estado de emergência. Também foi o ano em que Manaus apresentou a terceira pior qualidade do ar no mundo devido às queimadas ilegais e à secura impulsionada pelo fenômeno climático El Niño, pelas mutações do clima e pelas armadilhas do ser humano contra si mesmo, como definiu o filósofo francês Bruno Latour.
Diante da catástrofe, nós, mulheres indígenas e socioambientalistas, levamos à frente iniciativas para prover alimentos para quem ficou isolado e sem ter como pescar. Também nos dedicamos aos animais que sofreram com as queimadas, fumaça, calor intenso e com a devastação das florestas. E, principalmente, denunciamos e levamos informações para todo o mundo, pois a invisibilidade do Norte é assustadora e mata.
Sommelier de fumaça
Na briga de empurra dos políticos locais para se isentar da responsabilidade pela insalubridade, o manauara, como é nomeado quem nasce em Manaus, se especializou em cheirar fumaça e a identificá-la pela intensidade do odor. “Essa é fresca, vem de perto, se viesse do Pará não cheirava assim”, disse o motorista de Uber abrindo a janela para testar a fumaça como um sommelier. Ninguém nunca tinha visto nada igual, Manaus escondida pela fumaça e a população sem respostas sobre os culpados.
Se esse tempo foi difícil para quem mora na cidade, foi muito mais para os povos que vivem às margens dos rios, que dependem do rio para sua subsistência. Foi um impacto generalizado: na forma de se relacionar, na espiritualidade oriunda do mergulho nas águas e no consumo do alimento, vindo do rio, da floresta e das roças comunitárias.
Em novembro, visitamos a comunidade de Inhãa-Bé, no entorno de Manaus, para levar alimentos e conversar com a professora Yrá Tikuna, de 44 anos, uma das líderes da aldeia, que reúne 25 famílias de seis etnias. Localizada as margens de um igarapé afluente do rio Tarumã Açu, a comunidade ficou isolada e só era possível chegar lá caminhando alguns quilômetros sob o sol a pino. Nunca, na memória dos moradores, eles ficaram sem acesso fluvial à comunidade em outras estiagens.
Yrá nos contou que “ninguém chegou lá para ajudá-los”, mesmo estando em uma região bem próxima à cidade e conhecida área turística e de lazer. No Inhãa-Bé, nome Sateré Mawé que se refere a um chocalho amarrado no pé no ritual da tucandeira, houve evasão escolar, mais casos de malária do que de costume e o peixe, base do alimento da aldeia, sumiu. As pessoas só não passaram fome porque quem tem uma fonte de renda divide o que tem com todo mundo, como está na base da cultura indígena.
Os apoios recebidos vieram de amigos distantes, de artistas e da sociedade civil organizada. Para Yrá, o comportamento omisso e negligente dos governantes com as comunidades indígenas e povos ribeirinhos não surpreendeu. “Já nem esperávamos receber nenhuma ajuda, nem sequer a visita da Defesa Civil”. Enquanto isso, Mutchiaücü, menino Tikuna de 4 anos, perguntava com seu papagaio na mão: “Cadê o rio? Para onde foram os peixes?”
Desigualdade climática
Quando falamos de emergência climática, nós sabemos que ela não se dará da mesma forma para todas as pessoas. A forma como se governa coloca os povos indígenas, as populações ribeirinhas, os agricultores, as mulheres e as crianças em estado de vulnerabilidade. Indígenas vivem em estado de emergência há muito tempo, em estado de vulnerabilidade histórica. Mesmo sem a crise climática, nunca tiveram direitos fundamentais garantidos ou respeitados e até os territórios já demarcados vivem em constante ameaça.
A Amazônia é uma região onde ainda perdura o olhar colonial. Um olhar que enxerga uma paisagem que precisa ser explorada. Essa exploração é muito trágica e nos coloca, como habitantes deste lugar, sujeitos a uma completa violência. À medida que se olha para a Amazônia apenas com um olhar capitalista neoliberal, cresce a destruição das vidas desse ecossistema, que por sua vez é fundamental para a manutenção das vidas dos povos. Sentimos os impactos cotidianamente por morar em uma região extremamente sacrificada por esse pensamento neocolonial.
Conceitos como racismo ambiental e justiça climática refletem sobre a violência que este território vivencia: uma região extremamente violenta que mata seu jovem, que mata suas mulheres. É a região onde em pleno século 21 avança o crime organizado, o desmatamento e as queimadas para dar lugar à economia do latifúndio, do garimpo, da retirada de madeira ilegal e da pesca predatória, que degradam esse ecossistema tão importante para nossas vidas.
Precisamos buscar formas menos devoradoras de existir. Enfrentamos, hoje, uma "policrise", uma série de crises interconectadas e que se reforçam entre si. Com a crescente perda de credibilidade das instituições e das democracias liberais, precisamos nos reinventar. Já percebemos que aumento do PIB sozinho não traz felicidade coletiva. Ao mesmo tempo, a ideia de decrescimento, para florescer aqui, precisa estar associada ao pensamento da decolonialidade.
Manaus acaba de atingir a quinta posição no ranking de municípios mais ricos do País, com um PIB municipal de R$ 103,3 bilhões, ficando atrás apenas de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte. A economia manauara expandiu 86% nos últimos 10 anos (de 2012 a 2021). Os dados são do estudo do IBGE sobre o PIB municipal de 5.570 cidades brasileiras. Mas, como isso tem se refletido na qualidade de vida da população? Qual é a nossa perspectiva amazônica de crescimento?
Reconhecimento
O mundo precisa reconhecer, o Estado brasileiro precisa reconhecer, os poderes políticos precisam reconhecer e a sociedade precisa reconhecer a importância dos conhecimentos ancestrais dos povos indígenas. É necessário o reconhecimento do modo de vida destes povos para a sustentabilidade do ecossistema. O reconhecimento dos territórios indígenas como o princípio essencial para o enfrentamento das mudanças climáticas. A ciência em diálogo com os saberes dos povos indígenas do mundo são centrais para a resolução dos problemas globais que vivenciamos.
Acreditamos também no poder político para este enfrentamento. Uma das estratégias é colocar mulheres indígenas, quilombolas e ligadas à preservação ambiental em espaços de poder político. Precisamos eleger mais mulheres líderes climáticas para serem senadoras, governadoras, deputadas federais etc. Para conseguirmos criar mecanismos estruturantes na política do nosso país para esse enfrentamento das mudanças climáticas, é fundamental termos a força do feminino na política. Nossas vozes historicamente silenciadas e marginalizadas dos processos de decisão precisam ocupar estes espaços, só assim teremos um novo caminho sustentável.
Não é a Amazônia que precisa ser salva, somos nós.
Da conversa entre nós duas quando pensávamos a distribuição de alimentos para as comunidades na severa estiagem no Amazonas surgiu a ideia deste escrito de fim de ano. Nas vésperas do seu embarque para a Conferência do Clima de Dubai, Juliana perguntou a Vanda se ainda dá tempo de salvar a Amazônia. Essa reflexão fica na íntegra:
“Não é Amazônia que precisa ser salva. A natureza tem a capacidade de se regenerar. Nós seres humanos estamos à beira da extinção. Nós que estamos nos extinguindo. Portanto, nós precisamos nos salvar e para isso somos nós que temos que tomar medidas de proteção da natureza porque a nossa vida depende deste ecossistema. Se não tiver terra, nós não temos alimentos, se não temos rio vivo, também não temos como tomar água. Nós nos afastamos da nossa natureza. Nós não nos reconhecemos mais na natureza. Nós nos sentimos superiores à natureza. Esta humanidade se sente superior à natureza e se acha no direito de violentá-la, de destruí-la, de contaminá-la, de explorá-la. E não sou tão otimista quanto ao nosso fim. Mas sigo contando histórias e recontando nossas histórias ancestrais. Porque para nós, Witoto, ao morrer nós nos tornamos formigas, sementes de tabaco, sementes de coca. Somos macaxeira doce ou nos tornamos uma árvore. Portanto para nós indígenas morrer não é o fim. Mas sim o recomeço da vida. Agora não sei vocês, para onde vocês irão.”
A mensagem para o fim deste ano de 2023 vem do povo Witoto: “Que os maracás indígenas, os cantos sagrados, as danças, as raízes, as sementes, a fumaça do breu e o alimento sagrado sigam em movimento nos territórios, nas florestas, que seguem vivos sustentando esse planeta”. Cabe a nós todos cuidarmos da nossa casa comum.
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Agradecemos a Thaís Kokama, Flávia Abtipol e Paulo Desana pelo apoio na produção da visita à comunidade do Inhãa-Bé. Também agradecemos a Yrá Tikuna, Gleicieli Ferreira Marques, do povo Mura, e a Pure Munã, do povo Tikuna e Sateré Mawé, por nos guiar até a comunidade durante a seca.
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Na cultura de povos indígenas da região, fenômeno causa o 'repiquete', quando o rio sobe para depois secar novamente; Defesa Civil prevê seca severa no início de 2024
O município de São Gabriel da Cachoeira (AM), no Alto Rio Negro, vive um período de apreensão com o cenário da estiagem que atinge a todo o estado. A população, que já enfrentou racionamento, tem dificuldade de acesso à água e desabastecimento de itens de alimentação. Em alguns sítios na área urbana, os igarapés secaram, dificultando o cuidado das roças.
Do território indígena chega a notícia de que a constelação Boiuaçu – ou Jararaca - ‘caiu’, levando o nível do rio subir. É o chamado repiquete: o rio enche, mas logo em seguida volta a esvaziar. Os conhecedores indicam que as constelações estão associadas a narrativas míticas, assim como a fenômenos e ciclos ambientais.
Mesmo com o repiquete, a Defesa Civil do Estado do Amazonas informou que o rio está com nível abaixo da média para essa época em São Gabriel da Cachoeira. Segundo o órgão, a média para o mês de novembro (período de 1982 a 2023) é entre 700 cm e 900 cm.
As medições do Serviço Geológico do Brasil (SGB – CPRM) indicam que, em 22 de novembro, o Rio Negro no município estava com 610 cm; em 13 de novembro, a cota era de 569 cm. Em 10/11, esse índice estava ainda mais baixo, chegando a 499 cm. Em 6/11, o índice era de 520 cm.
O cenário preocupa a Defesa Civil do Amazonas, pois no alto Rio Negro, historicamente, o período de pico de vazante se concentra nos meses de janeiro e fevereiro.
“Isso leva ao prognóstico de vazante severa no início de 2024 no Alto Rio Negro. Os órgãos públicos estão informados sobre essa situação. O nosso desejo é que o índice de chuva melhore, evitando essa situação. Mas não é esse o prognóstico”, explica o geólogo Igor Jacaúna, do Centro de Monitoramento e Alerta da Defesa Civil do Amazonas.
Segundo o geólogo, há outro agravante. A seca recorde do Rio Negro em São Gabriel da Cachoeira aconteceu em fevereiro de 1992 (o nível chegou a 330 cm) e, no início de novembro de 1991, o nível do rio estava em 706 cm. Ou seja, no começo da estação seca que terminou em 1992 (recorde de mínima), o nível do rio estava em situação melhor que a atual.
Em Manaus, o Rio Negro atingiu a marca de 135,9 cm – a menor desde 1902, quando começou a medição no porto da capital – em 16 de outubro. Na capital, o chamado verão amazônico (período quando chove menos) vai de junho a outubro.
Constelação Boiuaçu
Para alguns povos do Alto Rio Negro, essa é a época da constelação Boiuaçu ou Jararaca cair. O Agente Indígena de Manejo Ambiental (AIMA) Mauro Pedrosa, do povo Tukano, explica que em determinado dia há um forte trovão, ao entardecer. A partir daí, a constelação Boiuaçu cai, ou seja, não fica mais visível no céu.
Com esse movimento, acontece o chamado repiquete, quando o rio enche – levando ao sumiço de peixes e, ao mesmo tempo, acontece a piracema – para depois esvaziar novamente.
E é o que está acontecendo na região. Em 14 de novembro, o comunicador da Rede Wayuri, Rosivaldo Miranda, povo Piratapuya, informou que o nível do Rio Uaupés subiu.
Na semana anterior, ele estava preocupado com a demora da Boiuaçu e com a falta de chuva. Ele mora na comunidade de Açaí-Paraná, no Baixo Uaupés, onde os moradores precisaram furar novos poços para garantir o acesso à água.
Nas redes sociais, a liderança indígena Juvêncio Cardoso, o Dzoodzo Baniwa, também trouxe notícias da cheia do rio. Ele informou que o Rio Ayari começa a ganhar volume. É a enchente chamada de repiquete, que em Baniwa é Khewidapania.
“Esse repiquete deve durar em torno de duas semanas e começará a secar novamente, que será verão de Maalinai (Khewidapani Idzalemi), estiagem prolongado. Este período de Maalinai se estende até meados de janeiro, quando começa outra constelação”, explica.
Em 28 de novembro, o AIMA Roberval Sambrano Pedrosa, do povo Tukano, morador da comunidade de Serra de Mucura (Rio Tiquié), chegou a São Gabriel da Cachoeira. Ele relata que o rio está enchendo, mas explica que a partir de agora começa o chamado Verão de Ingá, com o nível da água voltando a cair. “Esse ano teve a queda da constelação Boiuaçu, mas foi diferente. O rio não encheu muito. Encheu um pouco e voltou a esvaziar”, relata.
Os dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) indicam que, de julho a outubro de 2023, choveu 16% abaixo da média no município de São Gabriel da Cachoeira. A meteorologista Deyse Moraes, do Inmet em Brasília, disse que para novembro a previsão é de chuva abaixo da média, com algumas regiões com chuvas dentro da normalidade.
Pesquisadora em geociência do SGB-CPRM, Jussara Cury Maciel informa que o período de estiagem em São Gabriel da Cachoeira tem início em agosto, sendo que o pico da vazante ocorre, na maioria dos casos, em fevereiro.
Durante esse intervalo há subidas relacionadas a precipitações isoladas na região. Os períodos de cheia e vazante na região também estão associados às precipitações da parte norte da bacia, com contribuições das nascentes da Venezuela, e da parte oeste, vindo da Colômbia.
A pesquisadora informa que, em 2023, desde setembro, São Gabriel e Santa Isabel do Rio Negro têm apresentado níveis muito baixos de chuva para o período e, desde outubro, abaixo dos níveis mínimos já registrados, que indicam que a estiagem tem sido severa em toda a Bacia do Amazonas.
Impactos
Os efeitos da estiagem estão sendo sentidos de diversas formas em São Gabriel da Cachoeira. Na área urbana do município – o terceiro com maior concentração da população indígena do país –, os moradores enfrentaram cerca de 20 dias de racionamento, com prejuízos inclusive nos serviços essenciais, como fornecimento de água e funcionamento de escolas.
Entre os dias 19 e 23 de outubro, o racionamento chegou a durar 18 horas ao dia, com pessoas relatando diversos problemas, como dificuldade para dormir devido às altas temperaturas e aos insetos. Sem ar-condicionado ou ventilador, alguns moradores passaram a ficar até mais tarde do lado de fora de suas casas.
Em seguida, entre os dias 24/10 e 3/11, o racionamento passou para 6 horas: três horas em cada parte da cidade, alternadamente. O abastecimento foi garantido para alguns serviços essenciais, como o hospital; a unidade de saúde onde as vacinas são armazenadas; a Caixa Econômica Federal, onde os indígenas acessam os benefícios; e a bomba d 'água que abastece a cidade.
O comitê gestor de crise criado pela prefeitura suspendeu o racionamento em 4/11, mas informou em nota que “o Rio Negro continua em nível crítico para a navegação e, com isso, é muito importante que todos mantenham uma conduta voltada para a economia de energia e água”. Foi informado que o regime de racionamento pode ser acionado novamente dependendo do transporte do combustível.
No dia 13 de novembro, duas balsas com combustível estavam no porto de Camanaus, o principal de São Gabriel da Cachoeira. Uma delas transportava 700 mil litros de gasolina, álcool e diesel para abastecer postos de combustível da cidade. O prático Manoel Ferreira Filho contou que levou 12 dias entre Manaus e São Gabriel da Cachoeira, sendo que normalmente essa viagem dura uma semana.
“Está muito difícil subir o rio. Usamos uma voadeira (pequena embarcação) para ir à frente, verificando em quais locais podemos passar. E não conseguimos navegar à noite”, relata.
A outra embarcação é a balsa Galo da Serra, que transportou 450 mil litros de combustível para abastecer a termelétrica que gera energia para a cidade. Em novembro devem chegar ainda 1,3 milhão de litros de combustível para manter o fornecimento de energia. O diesel está sendo transportado em várias viagens, em embarcações menores que têm condições de navegabilidade no período seco.
Na cidade, o abastecimento de energia é feito por uma termelétrica, que precisa de aproximadamente 44 mil litros de diesel por dia. Como a cidade depende das balsas para o seu abastecimento – inclusive de combustível e alimentos – os serviços ficam prejudicados na época da seca.
Outro impacto é no abastecimento de água. A cena de pessoas buscando água em bicas na cidade de São Gabriel da Cachoeira é comum, já que em algumas regiões não há abastecimento regular de água branca – ou seja, água potável. Chega às casas normalmente a água preta, que vem do rio.
Com a falta de energia, esse movimento se intensificou. Além disso, algumas famílias precisaram andar até o rio para tomar banho.
“Deixamos a pouca água de casa para lavar as vasilhas. Tomamos banho no rio e buscamos água na bica para beber e cozinhar”, conta Marines Narciso, povo Baré, que na noite de 2 de novembro caminhou cerca de 20 minutos da sua casa até a beira do Rio Negro para tomar banho.
Alguns poços estão secando ou ficando com pouca água, gerando filas em alguns pontos.
O Ministério Público do Amazonas (MPAM) informou em seu site, em 6/11, que, por meio da Promotoria de Justiça de São Gabriel da Cachoeira, obteve decisão favorável na Justiça para garantir o fornecimento contínuo de água potável à população local, dando o prazo de um ano para as obras necessárias. Com a ausência da estrutura de saneamento básico, o abastecimento da região é feito por bicas e poços.
Nos mercados, é possível ver muitas prateleiras vazias. O comerciante Manoel Maurício tem um comércio no Centro da cidade, onde vende principalmente verduras, frutas e peixes. Ele precisou desligar as geladeiras e freezers por falta de mercadoria.
“Eu compro entre 200 e 300 volumes por semana, que chegam por balsa. Mas as balsas estão demorando muito e não dá para trazer legumes e frutas, que perdem rapidamente. Estou pegando cerca de 30 volumes por semana, que vem na lancha rápida. Chega uma pouco de tomate, que acaba em poucas horas”, relata.
A comerciante Lenira Reis, que tem um restaurante na cidade, diz que a questão do desabastecimento acontece todos os anos na época da seca. Ela se prepara, fazendo estoque de alguns alimentos.
Mas, em 2023, a estiagem se antecipou, o que a surpreendeu e impediu que ela reforçasse as compras. Agora, ela precisa se esforçar para encontrar ingredientes para fazer as refeições e manter os clientes. “Eu fico indo a vários lugares até comprar todos os ingredientes. Também modifico o cardápio. Já teve vez que eu saí para passear, encontrei algumas verduras, interrompi o passeio para fazer compras e voltar para casa”, relata.
Outros moradores da cidade apontam que esse é um problema crônico, ou seja, o desabastecimento se repete a cada ano, na estação seca. A situação pode se agravar dependendo da intensidade do período da estiagem. Dessa forma, a administração pública poderia se planejar para evitar o racionamento de energia e o desabastecimento de itens.
Em 19 de outubro, moradores chegaram a fazer um protesto em frente ao Fórum do município, onde estavam acontecendo reuniões do grupo de crise, exigindo transparência sobre as ações que estão sendo tomadas. Desde então, o grupo divulga boletins com a situação do abastecimento de energia.
El Niño
Conforme o Serviço Geológico do Brasil (SGB-CPRM) os fenômenos El Niño (aquecimento das águas superficiais do Oceano Pacífico) e aquecimento anômalo das águas superficiais do Atlântico Tropical Norte estão causando a redução das chuvas. O fenômeno vem sendo agravado pela emergência climática.
De acordo com o Boletim do Comitê de Intersetorial de Enfrentamento à Situação de Emergência Ambiental, de 15 de novembro, todos os 62 municípios do Estado estão em situação de emergência, com 598 mil pessoas sendo afetadas.
A Organização Meteorológica Mundial (OMM), ligada à Organização das Nações Unidas, informou em 8 de novembro que o fenômeno El Niño continuará até abril de 2024, antecipando que o próximo ano deve ser ainda mais quente.
Wayuri na cobertura da estiagem
Os comunicadores da Rede Wayuri, que atuam em áreas urbanas e comunidades no Médio e Alto Rio Negro, estão observando os impactos da estiagem e divulgando informações. No Alto Rio Negro, a estação seca se estende até o início de 2024, o que gera preocupação frente ao cenário que se vê em outras regiões do estado.
As informações que vêm de dentro do território indígena podem ser acompanhadas no podcast Wayuri e no Instagram.
Também em uma ação de mobilização e conscientização, a Rede Wayuri está promovendo o Dia D – Rio Negro não é lugar de lixo!
Com a estiagem, uma grande quantidade de lixo apareceu no Porto da Queiroz Galvão, um dos principais da cidade. A comunicadora Juliana Albuquerque, povo Baré, e o comunicador Adelson Ribeiro, povo Tukano, fizeram a foto dos resíduos, que viralizou na cidade e gerou a mobilização.
Houve coleta de lixo e campanha de conscientização nos dias 4 e 11 de novembro, com o recolhimento de 10 toneladas de lixo.
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Dossiê detalha avanço da atividade ilegal na gestão Bolsonaro; 82% da destruição ocorreu em áreas protegidas, sendo 72% somente na Terra Indígena Kayapó
Sob Bolsonaro, foram quatro anos de descontrole da fiscalização ambiental. Taxas recordes de desmatamento e a expansão, por toda a Amazônia, de atividades ilegais como o roubo de madeira e o garimpo.
Na Bacia do Xingu, que atravessa os estados do Pará e Mato Grosso, a destruição causada pelo garimpo ilegal foi avassaladora entre 2019 e 2022. Desmontar a estrutura de destruição instalada nestes territórios demanda fortes investimentos, continuidade e consistência na atuação de segurança pública na região.
Novo dossiê da Rede Xingu+ mostra o avanço e reincidência do garimpo nos últimos anos nas Terras Indígenas e Unidades de Conservação da região. Os dados produzidos pelo Observatório De Olho no Xingu indicam que, desde 2018, foram mais de 12,7 mil hectares de áreas de garimpo abertas – 82% dentro de áreas protegidas.
Entre 2018 e 2019, período de mudança de gestão presidencial, o desmatamento gerado pela atividade aumentou 15% nas áreas protegidas.
Em 2023, a atividade teve uma redução expressiva, devido ao aumento da fiscalização, mas não parou.
No primeiro semestre do ano, já foram desmatados cerca de 475 ha em TIs, segundo os boletins divulgados pelo Sistema de Indicação por Radar de Desmatamento da Bacia do Xingu (Sirad X). Ao menos 17 frentes de exploração garimpeira em funcionamento ou com indício de atividades foram identificadas este ano.
Durante o governo Bolsonaro, a reativação de garimpos antigos foi uma ação recorrente na Bacia do Xingu, como os garimpos Coringa, Madalena e Manelão nas TIs Baú, Kuruaya e Trincheira Bacajá.
Além da desarticulação da fiscalização, a melhora da cotação do preço do ouro no mercado internacional estimulou o avanço da megaestrutura bilionária que controla a atividade criminosa.
O dossiê detalhou a extensão do garimpo em seis Terras Indígenas e cinco Unidades de Conservação no Xingu.
O caso mais drástico foi a Terra Indígena Kayapó, que concentrou 72% de todo o garimpo na bacia entre 2018 e 2022 e é a TI com a maior área de desmatamento gerado pelo garimpo ilegal de todo o país.
Nesse território, o garimpo destruiu mais em cinco anos do que nas três décadas anteriores.
Existem três frentes principais de exploração no território do povo Mebengokré: nos rios Arraias, Fresco e Branco, e uma quarta um pouco mais discreta, no Riozinho.
No primeiro semestre de 2023, mais de 450 ha de floresta foram derrubados pelo garimpo na TI Kayapó em suas diversas frentes.
O território já havia sido assolado pela atividade nas décadas de 1970 e 1980, impulsionado pela abertura de estradas e pelo aumento da cotação do preço do ouro. Nos anos seguintes, arrefeceu, até voltar com tudo no fim da década de 2010.
Thaise Rodrigues, analista do Instituto Socioambiental (ISA) e autora do dossiê, diz que a realidade encontrada hoje na TI Kayapó é resultado de muitos fatores.
A exploração garimpeira nesse território remonta à década de 1960, anterior à homologação da TI, que ocorreu em 1991.
A retirada mal sucedida dos garimpeiros na TI após a sua homologação, o fácil acesso terrestre às frentes de exploração garimpeira e a proximidade de cidades e municípios com um longo histórico de pilhagem ambiental, criaram condições para a consolidação e avanço da atividade ilegal na Kayapó.
Em 2019, os incentivos diretos do governo à exploração garimpeira somado ao desmonte da fiscalização ambiental, foram determinantes para o crescimento descontrolado do garimpo no local.
Garimpo em UCs
Outra triste novidade dos anos Bolsonaro foi o aumento do garimpo nas Unidades de Conservação.
Em cinco anos, mais de mil hectares de vegetação primária foram derrubados para ocupação de garimpos ilegais nas UCs. Rios tiveram seus leitos destruídos e suas águas assoreadas e contaminadas.
Os impactos não ficaram só na paisagem: peixes, tracajás e outros animais foram contaminados, afetando a sobrevivência de diversas comunidades ribeirinhas que, ao longo desses anos, também sofreram com aliciamento e ameaças.
Em 2023, novos focos de exploração foram identificados na Reserva Biológica (REBIO) Nascentes da Serra do Cachimbo e o funcionamento dos garimpos na Flona de Altamira e Reserva Extrativista (RESEX) Rio Iriri também continuou.
Na RESEX Riozinho do Anfrísio, no Pará, ao menos cinco novos focos de garimpo foram abertos durante a gestão de Bolsonaro, permanecendo ainda uma frente ativa em agosto de 2023 – apesar dos esforços de fiscalização do novo governo. Ao todo, na RESEX do Riozinho do Anfrísio foram derrubadas 42 hectares de floresta e 19 comunidades beiradeiras afetadas pela contaminação do mercúrio.
Outro caso que chama atenção é o da Floresta Nacional (Flona) de Altamira. A UC tem a maior área de desmatamento por conta do garimpo ilegal na Bacia do Xingu. São duas frentes principais: na região noroeste, onde foram 309 hectares derrubados entre 2018 e 2022, e na zona oeste do território, onde foram desmatados 428 hectares no período.
A situação é extremamente preocupante sobretudo porque as áreas de garimpo estão localizadas nas chamadas "Zonas Primitivas" das UCs, isto é, áreas especialmente importantes para preservação e recuperação, do ponto de vista da biodiversidade. Essas zonas são delimitadas para, teoricamente, estabelecer regiões com a mínima intervenção humana para proteção de cabeceiras de rios (áreas de nascente), e recuperação de áreas já degradadas no passado. Mas elas não estão sendo respeitadas, e a degradação só tem aumentado.
Rodrigues aponta que a persistência do garimpo exige uma ação articulada e contínua nesses territórios. “Estamos falando de várias áreas destruídas com o uso de grande maquinário, e capitalizadas por uma rede criminosa. Isso exige um plano de proteção territorial consistente, com manutenção de bases de proteção em locais estratégicos e operações regulares para desativar os focos de garimpo”, aponta.
Segundo ela, essas ações devem incluir a inutilização de toda a infra-estrutura associada, como pistas clandestinas, estradas e a destruição completa do maquinário utilizado na extração de ouro.
Fiscalização e persistência
O garimpo tem se mostrado persistente mesmo após sucessivas operações feitas pelo Ibama, que tem intensificado as ações desde a mudança do governo. No garimpo do "Manelão", por exemplo, uma operação feita em abril destruiu equipamentos avaliados em R$ 304.500, segundo informações do próprio Ibama. Mesmo assim, novas cavas de exploração foram detectadas no primeiro semestre de 2023.
O Manelão, situado na Terra Indígena Trincheira Bacajá, foi aberto pela primeira vez ainda na década de 1970, e reativado em meados da década passada. Entre 2018 e 2022, foram detectados mais de 85 hectares de floresta derrubadas.
Situação similar ocorre na Terra Indígena Apyterewa, do povo Parakanã. O Ibama realizou a operação em 2023, mas o problema persiste. “Ainda existe garimpeiro. A aldeia Kaete fica muito próxima dos pontos de garimpo e os indígenas que moram nessa aldeia escutam até a zoada do motor”, afirma Wenathoa Parakanã, liderança e presidenta da associação Tatooa.
O garimpo já havia sido um problema no passado, foi combatido e voltou a assolar o território dos Parakanã em 2017. Durante os anos do governo Bolsonaro, o garimpo se expandiu, financiado por pessoas ligadas à grilagem de terras, um problema estrutural no território.
Em 2018, um novo garimpo conhecido como Pista Dois foi aberto ao norte da TI no afluente do igarapé Bom Jardim. Em 2019 e 2020, novos focos também surgiram. A região já atingiu a marca de mais de 208 hectares derrubados pela exploração garimpeira entre 2018 e 2022. Em 2023, dados de satélite confirmam a situação relatada por Wenathoa: a atividade segue em garimpos que haviam sido abertos em anos anteriores.
“O risco para nós, Parakanã, é sobretudo a poluição da água, que tá ficando suja, que é o garimpo que fica lá para cima, e tem várias aldeias no Rio Bom Jardim, a Kaeté, a Kanaã, Tivé, Itaeté, Catu, Paranapiana. O peixe pode estar contaminado e a gente não sabe”, diz ela. Além disso, os Parakanã são constantemente ameaçados pelos garimpeiros.
Wenathoa se refere à contaminação por mercúrio. O metal pesado é utilizado no processo de garimpagem, para amalgamar o ouro. Depois, ele é queimado, restando apenas o metal nobre. Sua queima gera emissões tóxicas na atmosfera, que contaminam o solo e a água. Quando despejado em rios e lagos, o mercúrio se converte em sua forma mais tóxica, o metilmercúrio, que é consumido pelos peixes e por outros animais aquáticos.
Estudo de contaminação do mercúrio em peixes lançado em 2023 pelo ISA, em parceria com o Iepé e Greenpeace, mostrou índices de consumo de mercúrio acima dos níveis considerados seguro para a saúde nos centros urbanos de São Félix do Xingu e Altamira, cidades no entorno dos territórios ameaçados do Xingu.
Dados alarmantes também foram encontrados em outro estudo, feito em 2018, com base nos peixes dos rios Curuá e Baú, que abastecem a Terra Indígena Baú. “Uma criança que foi gestada e se desenvolveu tendo acesso a altos índices de mercúrio pode ter problemas de desenvolvimento, motores, neurológicos e isso é pro resto da vida. Muito mais que longo prazo”, afirma Estevão Senra, pesquisador do ISA.
A degradação e fragilidade da Apyterewa exigem esforços permanentes, articulados entre vários órgãos, além da completa desintrusão dos ocupantes não-indígenas na área “A solução é que tire todas as pessoas que tão lá dentro da nossa TI Apyterewa, antes que fazendeiros tirem todas as árvores e poluam toda água. É da floresta que a gente tira o nosso alimento, a água. Se não tiver água limpa, não conseguimos sobreviver, como os animais. Queremos água pura e a floresta em pé para podermos respirar o oxigênio puro”, exige Wenathoa.
Outro caso de constante preocupação é o da Terra Indígena Baú, que sofreu com a intensificação do garimpo ilegal nos últimos anos e com sucessivas ameaças contra lideranças e comunidades. Operações da Polícia Federal e do Ibama em 2022 conseguiram desativar grande parte dos garimpos e de suas estruturas no território. Mesmo assim, a partir de imagens de satélite foi possível identificar a retomada de atividade em dois garimpos: o Pista Velha e o Jurandi. Trata-se de um exemplo na prática de que esse tipo de crime exige constante atenção das autoridades.
No dossiê, Rodrigues também detalha como o combate deve contar com o apoio de agências reguladoras para garantir a desarticulação da logística, com a fiscalização das redes de comunicação (Anatel), da operação irregular de aeronaves (Anac) e do controle da venda de combustível (ANP).
“É importante pensar na conscientização e no estímulo a uma cadeia econômica sustentável nessas regiões. A economia da região amazônica precisa se apoiar na sociobiodiversidade, de forma que as comunidades locais tenham uma renda obtida de forma sustentável, não ilícita e não predatória, que garanta os recursos naturais para as próximas gerações”, conclui.
Estrago deixado pelo garimpo ilegal
Entender a dimensão da destruição provocada pelo garimpo ilegal na Bacia do Xingu é importante porque, mesmo com a recuperação da fiscalização ambiental em 2023, as consequências da falta de controle dos anos passados devem perdurar por décadas.
Hoje, a garimpagem na Amazônia é feita de forma mecanizada e com alto investimento. Nesse tipo de exploração, o meio ambiente é destruído, e o dano pode permanecer por muitos anos.
“O garimpo, como é feito hoje, remove a cobertura do solo todo. Você praticamente não tem mais estrutura de solo para que uma vegetação mais diversa possa colonizar essa área. Depois de 30 anos, uma área destruída pelo garimpo ainda não tem a floresta recuperada, apenas uma vegetação muito pobre e escassa em recursos”, explica Senra.
Com grandes mangueiras, às margens do rio são convertidas em lama, que passam por outras máquinas para a extração de ouro. Nesse processo, cursos d’água menores, como igarapés são destruídos e tornam-se lagos estéreis. Em consequência, os rios maiores são assoreados por essa lama. Esse é outro tipo de impacto que ficará marcado no ambiente por décadas.
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Lideranças e pesquisadores indígenas mostram preocupação que se repita o desastre dos incêndios entre 2015 e 2016
No período de verão entre 2015 e 2016 na região de Barcelos, no Amazonas, a seca prolongada propiciou muitos incêndios florestais, que se estenderam por roças no entorno da cidade e de várias comunidades, chegando a queimar casas.
Nesse período, foram registrados mais de 14 mil focos de incêndio no município, enquanto em anos anteriores esse número não chegava a 200. Segundo análises do Instituto Socioambiental (ISA) – com base em dados de sensoriamento remoto –,os incêndios devastaram uma área de 52.000 hectares de igapós, 389.000 de campinaranas e 138.000 de florestas de terra firme apenas nesse município.
Neste ano, as condições climáticas parecem estar se repetindo: a falta de chuva começou mais cedo, já desde agosto, altas temperaturas atmosféricas e da água dos rios, vazante do rio acentuada.
Os Agentes Indígena de Manejo Ambiental (AIMAs) estão presentes em cinco comunidades e na sede do município de Barcelos, e acompanham diariamente as atividades de manejo e indicadores ambientais e climáticos. Assim podemos observar como foi o começo desse verão. Na comunidade de São Roque, rio Caurés, por exemplo, o sr. Pedro Raimundo Fernandes (morador de 63 anos, também AIMA voluntário), faz anotações atentas.
Hoje (27/07) amanheceu nublado, deu uns trovões à tarde, mas não choveu. Os comunitários estão felizes, na esperança de fazer verão para queimarem seus roçados. Estão intencionados a colocarem bastante roça, para o próximo ano terem uma boa venda de farinha e outros produtos, como banana, abacaxi e macaxeira. São Roque foi a comunidade mais produtora de farinha dessa região, mas por falta de bom verão, fracassou um pouco. Agora está voltando tudo de novo.
08/08, São Roque. As águas estão descendo, e os dias muito ensolarados. Hoje já teve uma diferença: o dia foi quente, mas o vento também movimentou o dia inteiro. Quando isso acontece, é sinal de um bom verão.
09/08 São Roque. O rio desceu meio palmo. Uma quarta-feira ensolarada, que coloca esperança aos comunitários de um bom verão, para todos queimarem seus roçados, depositando confiança de que no próximo ano, façam uma boa comercialização de muita farinha.
14/08 São Roque. Está se aproximando a desova dos quelônios, as irapucas já estão amadurecendo os ovos. Entre elas, algumas já estão começando a desovar. Os cabeçudos estão com os ovos maduros, pois desovam primeiro. Os tabuleiros, que nós chamamos de damiça, aqui na região da comunidade, estão saindo fora d´água. As irapucas já começaram a comemorar a sua reprodução. Os praiados da margem do rio ainda estão com vários metros de profundidade. Os tucunarés também se alojam nos baixos dos damiças para fazerem suas desovas.
23/08 Sítio São Luiz, São Roque. Como os dias de sol são intensos, as águas estão descendo rápido. Esta noite desceu mais de meio palmo. Aqui no sítio do seu Neco, os açaizeiros estão todos com cacho novo, prometendo uma boa safra de açaí para o próximo ano.
Um bom verão é importante para o manejo agrícola nas comunidades e para os ciclos de vida, permitindo a queima de áreas de floresta ou capoeira abertas para novos cultivares e a desova de bichos-de-casco nas praias formadas na vazante, por exemplo. Verões extremos, no entanto, trazem mais riscos do que benefícios para a vida na região, tornando o trabalho mais árduo e difícil, estressando também os processos ambientais, como lemos na continuação do diário do sr. Pedro.
25/08 Sítio São Luiz, São Roque. As águas continuam descendo. Hoje às 3h da manhã caiu uma chuvinha por dez minutos. Quando amanheceu, já foi brilhando. Muito vento e sol quente. A gente não aguenta na roça - só até as 10h, arrebentando. Eu terminei de derrubar o roçado de seu Neco às 9:30h, o sol estava muito quente. A partir desse horário, as folhas das plantas começam a murchar, só voltam ao normal quando anoitece.
26/08 São Roque. O rio está secando muito. Como os dias são muito quentes, e a terra do sítio muito ressecada, alguns açaizeiros estão jogando seus cachos antes das vingas surgirem. A quentura é intensa durante o dia. As caças, como veado, onça, porco e outras estão se aproximando das margens para beberem água, pois no interior da floresta só existe água nos igarapés grandes que não secam. Não está havendo mais frutas para os animais comerem. Nos igarapés, também são pouquíssimas as frutas para os peixes.
31/08 São Roque. As águas estão descendo muito rápido. As pessoas estão dizendo que brevemente vai haver um repiquete. As irapucas não estão desovando normalmente. Muitas campinas estão no nível de seca natural para reprodução das irapucas, mas está devagar, pois estão adivinhando o repiquete. Os animais por serem da natureza, sabem muito mais que nós. Esse fenômeno, só eles são capazes de nos transmitir através do que vemos, prestando atenção.
Os moradores das comunidades, que observam e manejam cotidiana e continuamente seus ambientes e paisagens, buscam identificar indicadores que possam revelar as condições climáticas e o fluxo dos ciclos de vida, orientando assim suas atividades na agricultura e na procura de outros alimentos (pesca, caça, coleta de frutos e insetos etc.). Muitos são esses indicadores, e complexas suas inter-relações, como mostram os diários dos AIMAs.
04/09 São Roque. O rio está secando muito. Estão se multiplicando os dias de aquecimento global. Está com muitos dias que não chove.
05/09 São Roque. As águas estão descendo mais de meio palmo. Hoje foram queimados dois roçados.
08/09 São Roque. O rio disparou. Está secando muito rápido. Estamos com muitos dias de verão, de sol quente. A terra está ressecada. Muita quentura. Há lugares em que o açaí verde está caindo do cacho devido a quentura, a falta de umidade da terra. Dá trovoadas, mas não chove. As noites, bastante estreladas. Quando amanhece, o sol já aparece brilhando. A água do rio não é mais fria para tomar banho. À noite, só esfria depois das 10h.
10/09 São Roque. Noite estrelada, e a lua minguante. Amanheceu brilhando. As águas descendo mais de um palmo por noite. As irapucas continuam desovando.
11/09 São Roque. As águas desceram quase um palmo. Hoje, às 3h da manhã começou a trovejar para o nascente. Às 5h começou vendaval acompanhado de chuva, até as 7h. A chuva passou, mas o dia ficou nublado. Às 16:30h caiu outra chuva grossa, mas passou logo. As plantas sentiram um alívio, se recuperando. Uns comunitários arrancaram mandioca para fazerem farinha. Nós fomos assoalhar a casa de apoio da comunidade.
14/09 São Roque - Além da enchente (desse ano) ter sido pequena, a seca está preocupando-nos, moradores. O nível da água, na data que estamos, está muito baixo. Nos anos de descida d´água normal, esse nível só ocorre em novembro. Os empresários de pesca esportiva estão achando dificuldade de acesso. Esse rio, a calha é rasa, e quando seca mais do que esse nível, já dificulta transporte até mesmo para pequenos barcos.
Em Bacabal, comunidade do baixo rio Aracá, o AIMA Francisco Saldanha, registra no dia 27/09. “Nesse ano percebi que o sol está muito quente, demais; também percebi que o rio está secando muito, e sua água está muito quente.”
Observações e previsões
Na primeira semana de outubro foi realizada uma oficina entre Agentes Indígena de Manejo Ambiental (AIMAs), equipe do Instituto Socioambiental (ISA) e lideranças da Associação Indígena de Barcelos (ASIBA) e da Coordenadoria da Associações Indígenas do Médio e Baixo Rio Negro (CAIMBRN/FOIRN) para discutir justamente os resultados de pesquisas sobre os impactos dos incêndios de 2015 e 2016 na economia das comunidades indígenas e nas paisagens que passaram pelos incêndios.
Depois do ocorrido, esse grupo se debruçou para entender melhor aquele fenômeno intenso e suas consequências - conversando e entrevistando os moradores e observando o ambiente em suas atividades cotidianas de manejo - agricultura, pesca, coleta de frutos, caça, também nas viagens.
Como vimos nas citações dos diários, aquela primeira semana de outubro sucedia mais de um mês de verão intenso, com altas temperaturas e pouquíssima chuva, o que inspirou comparações entre o atual verão e aquele de anos atrás. Também corriam notícias dos primeiros incêndios florestais na região, aumentando a ansiedade.
A estiagem na Amazônia está intensa em 2023, levando a uma acentuada vazante dos rios da porção ocidental dessa bacia hidrográfica, com registros de seus mais baixos níveis já registrados no Amazonas e em vários de seus principais afluentes. No porto de Manaus, o nível do Rio Negro atingiu um metro abaixo do recorde de 2010, até então o mais baixo na série iniciada em 1904. Puxada inicialmente pelo rio Solimões, a vazantes já se mostra significativa no Rio Negro.
No começo de outubro, os barcos de passageiros (recreios) pararam de fazer viagens rio acima, partindo de Manaus para as cidades do Rio Negro; os barcos e balsas de transporte de carga subiam lentamente, com notícias frequentes de barcos encalhados. Esse fato dificultou a navegação de maior calado, responsável pelo abastecimento das cidades ribeirinhas a partir de Manaus.
Um problema já sentido é o desabastecimento de combustível e os apagões em São Gabriel da Cachoeira, já que o diesel é usado para geração de energia pelas termelétricas locais.
Leia também: Rio Negro vive seca histórica, e São Gabriel da Cachoeira corre risco de apagão
Em Barcelos, a temporada de pesca esportiva teve início em setembro. Rios mais secos são propícios à captura, já que os peixes se concentram onde há água, mas barcos de turismo, que também servem como hospedagem dos pescadores, também começaram a encalhar.
A forte seca no Rio Negro em 2023 já estava prevista em razão do El Niño, fenômeno que leva ao aquecimento das águas do oceano Pacífico próximo à costa equatorial da América do Sul, afetando as correntes marítimas e atmosféricas, alterando o regime de chuvas em várias partes do planeta. O aquecimento global potencializa seus efeitos, acarretando maiores riscos para a vida.
A segunda semana de outubro trouxe alívio em Barcelos e região por chuvas intensas, que amenizaram as altas temperaturas e tornaram o ambiente menos inflamável, contendo os incêndios. Mas o rio ainda seguiu secando. Rio acima, em São Gabriel da Cachoeira, o Rio Negro só voltou a subir no dia 17 e, em Barcelos, no dia 23.
A seca, no entanto, ainda não parece ter cedido bem, formadores do Alto Rio Negro, como o Tiquié, voltaram a vazar na última semana de outubro. A estação seca nessa região geralmente é mais intensa nos primeiros meses do ano, quando os rios alcançam suas cotas mínimas. Neste ano, já aconteceram muitos dias sem chover em setembro e outubro, trazendo dúvidas de como serão os próximos meses.
Ficha Técnica:
AIMAs de Barcelos:
Clarindo Campos
Ezequias da Costa Pereira
Maria Yrineia Brasão
Adelane Brandão Marat
Francisco Saldanha da Silva
Rodrigo da Silva Gomes
Equipe ISA:
Aloisio Cabalzar
Danilo Parra
Renata Alves
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Seca extrema atinge uma das regiões mais preservadas da Amazônia e já ameaça o abastecimento. Prefeito de São Gabriel da Cachoeira declarou situação de emergência
Os impactos da seca no Amazonas são sentidos em São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste do Estado, em uma das áreas mais protegidas da Amazônia. Os moradores convivem com a falta de alguns itens básicos em áreas urbanas. No território indígena, os igarapés estão baixando, dificultando o acesso às roças.
“A sensação é que a água está fervendo”, relata Rosivaldo Miranda, do povo Piratapuya, comunicador da Rede Wayuri e morador de Açaí-Paraná, no Baixo Rio Uaupés.
Na terça-feira (03/10), a Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira declarou situação de emergência pelo período de 90 dias nas áreas afetadas por estiagem. As praias de areia branca avançam cada vez mais, levando incerteza e temor para quem está nas áreas urbanas e para quem vive nas comunidades no território indígena, já que o período de estiagem está apenas começando.
O decreto de número 21, assinado pelo prefeito Clóvis Moreira Saldanha, está baseado no Boletim de Monitoramento Hidrometeorológico da Amazônia Ocidental, do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), que informa que “os níveis registrados nestas estações estão com cotas abaixo do intervalo das mínimas já registradas para o período”.
Conforme os dados do CPRM (ver tabela abaixo), em São Gabriel da Cachoeira, o nível mais baixo do rio foi registrado em fevereiro de 1992, quando chegou a 330 cm. Na sexta-feira, 6 de outubro, o Rio Negro atingiu o nível de 602 cm. Em 2022, também em outubro, o nível do rio era de 727 cm.
Com o decreto municipal, a prefeitura declara que precisa de apoio complementar do Estado e da União, com recursos técnicos, humanos, materiais e financeiros para enfrentar a seca. Informa ainda que a situação causa adversidades de ordem social e econômica que superam a capacidade orçamentária do município de realizar as ações necessárias para o restabelecimento da normalidade. A Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil fará a mobilização dos órgãos para a resposta ao problema.
Na última semana, moradores de São Gabriel da Cachoeira que procuraram água mineral para comprar já não encontraram. As pessoas estão estocando mantimentos, como arroz, macarrão e sal. Na orla, um dos restaurantes mais tradicionais da cidade não abriu no domingo devido à falta de ingredientes para preparo dos pratos.
Essa situação acontece porque o abastecimento da cidade é feito principalmente por meio de balsas e, com o rio seco, a navegação fica reduzida ou é interrompida. As embarcações conhecidas como recreio – que são os barcos de rede que fazem transporte de passageiros – já não estão subindo o rio. As balsas com mercadorias ainda estão realizando viagens, mas com dificuldades.
Num dos principais portos de São Gabriel da Cachoeira, a vazante expôs uma longa faixa de lixo, como denunciaram os comunicadores da Rede Wayuri, Juliana Albuquerque, povo Baré, e Adelson Ribeiro, povo Tukano. Eles publicaram as fotos no WhatsApp e, com a circulação das imagens, está sendo mobilizada uma ação para limpeza do trecho.
Situação semelhante pode ser vista em Barcelos, no Médio Rio Negro, com sujeira e esgoto ficando expostos
Território indígena
Liderança indígena e educador, Juvêncio Cardoso, o Dzoodzo Baniwa, acompanha o trabalho dos Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (AIMAs), que monitoram a questão climática. Em 2022, ele denunciou a cheia extrema na região do Rio Ayari, na comunidade Canadá, onde vive. Agora, a região se prepara para a seca extrema.
“Com relação à questão da seca, temos encontrado dificuldade de navegação. Há moradores que utilizam alguns igarapés para ter acesso às suas roças. E nesse período está difícil a navegação pelo igarapé, fazendo as pessoas caminharem mais longe para acessar suas roças. Os igarapés estão inavegáveis e exigem mais tempo e esforço para chegar às roças”, diz.
Essa situação está acontecendo no Rio Ayari, na região do Rio Içana (Bacia do Negro). Segundo Dzoodzo, o nível do rio está baixo, mas ainda dentro da normalidade. Ele também se preocupa com o impacto das altas temperaturas na saúde dos indígenas, especialmente das mulheres, que ficam mais tempo nas roças.
A outra questão é em relação ao solo seco. “Como tem muitos dias que não chove, o solo está ficando mais seco. E se continuar por mais tempo, vai impactar na vida das plantações. Principalmente na pimenteira, no cubiu. Se demorar muito tempo (a seca), vai complicar. Aqui o solo é arenoso, temos a floresta de capinarana, fica mais vulnerável”, afirma.
Dzoodzo conta que os mais antigos relatam que houve uma seca extrema no Ayari, que dificultou a navegação até em pequenas canoas. “Ainda não chegamos a vivenciar esses momentos do passado, mas a gente não duvida que pode acontecer. É bom que a gente fique em alerta para as situações extremas”, ressalta.
Morador da comunidade de Açaí-Paraná, no Baixo Uaupés, Rosivaldo Lima Miranda, povo Piratapuya, relata temperaturas muito altas e uma situação insalubre. “Devido à seca, a água está fervendo, está bastante quente para beber. Estamos com diarreia e dor de cabeça. E está descendo mais sujeira dos igarapés. Fomos tentar cavar poço na beira do rio para achar água branca para tomarmos e ter saúde para nossos filhos e para os idosos”.
Alguns itens básicos já começam a faltar. “Com a estiagem, os barcos começam a parar a navegação. E é por meio dos barcos que a gente faz as nossas trocas de alimentação para ter o básico, como açúcar, sabão e combustível. E a condição vai ficando mais precária”, afirma. “O Uaupés é imenso, mas quando acontece essa seca, de um dia para o outro desce bastante rápido. Tivemos a grande seca em 2017 e está faltando um pouco só para atingir essa marca. É uma situação precária, com sol quente, temperatura da água quente e o rio descendo (secando) a cada dia que passa”, resume.
Conforme o Serviço Geológico do Brasil (CPRM), a região amazônica está passando por um processo de seca severa, com chances de seus efeitos e impactos serem repercutidos em 2024, em razão do processo de El Niño, que provavelmente atingirá seu ápice ao final de 2023, impactando o período chuvoso na região e possivelmente resultando em anomalias negativas de precipitação.
As cenas de peixes mortos e rios totalmente secos em outras regiões do Amazonas têm chamado atenção do mundo todo pelo drama social e pelos impactos causados pela emergência climática.
“Aqui, no Alto Rio Negro, os bancos de areia estão de fora e temos impacto ambiental com alteração climática. Isso já está acontecendo, é nosso presente. Já não é mais do futuro”, completa Rosivaldo Miranda.
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