Lideranças discutiram em Brasília legado negativo de corredores logísticos na Amazônia e demandaram planejamento que respeite anseios e realidades locais
Em oportunidade rara, as vozes dos territórios das bacias dos rios Xingu, Tapajós, Madeira e Tocantins, historicamente afetados pela política nacional de transportes, puderam ser ouvidas pelo governo federal em Brasília, em um evento que discutiu aspectos de sustentabilidade, transparência e participação social no planejamento setorial de infraestrutura de transportes.
O workshop “Planejamento Estratégico No Setor de Transportes: Caminhos para a Sustentabilidade com Transparência e Participação Social” foi realizado no âmbito do 6º Plano de Ação Nacional da Parceria de Governo Aberto, na Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), no dia 12 de setembro de 2024. Com vigência entre janeiro de 2024 a dezembro de 2027, o 6º Plano de Ação Nacional da Parceria de Governo Aberto estabeleceu como Compromisso nº 1 o aprimoramento da transparência e participação social nas políticas públicas de infraestrutura.
O gargalo do planejamento estratégico em considerar os aspectos territoriais e fomentar o envolvimento das comunidades foi abordado por especialistas, que trataram de intervenções polêmicas, passadas e atuais, voltadas à edificação de corredores logísticos nessas bacias hidrográficas - como as concessões dos rios Tapajós, Tocantins e Madeira, o projeto Ferrogrão, a dragagem e derrocagem pedral do Lourenço, no rio Tocantins, a construção da ponte Brasil-Bolívia e a Usina Binacional Brasil-Bolívia -, assim como das consequências negativas dessas intervenções aos territórios, como a expansão de atividades econômicas intensivas no uso de recursos naturais e terras e a inviabilização de modos de vida tradicionais e locais.
Com a participação de mais de 50 representantes de órgãos públicos, organizações da sociedade civil e movimentos sociais, o evento foi realizado pela Controladoria-Geral da União (CGU), Ministério dos Transportes, Instituto Socioambiental (ISA), Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), Instituto Brasileiro de Auditores de Obras Públicas (IBRAOP), GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental e Transparência Internacional Brasil.
A abertura do evento contou com a participação do secretário-executivo do Ministério de Transportes, George Santoro, e da secretária-executiva da CGU, Eveline Brito, além de apresentações de representantes das pastas de Transportes, Portos e Aeroportos, Planejamento e Orçamento, Gestão e Inovação, Fazenda, Meio Ambiente e Mudança do Clima, além da CGU, Ministério Público Federal e organizações da sociedade civil e movimentos sociais.
Organizada pelo GT Infraestrutura e Sustentabilidade Socioambiental e pelo ISA, a mesa 3 “Governança Territorial” reuniu especialistas das bacias dos rios Tocantins, Xingu, Tapajós e Madeira e representação do Ministério Público Federal. Apesar de esvaziada - ficaram ausentes autoridades presentes nas sessões iniciais do Workshop - a sessão foi acompanhada por representantes de todas as pastas do governo e transmitida virtualmente para convidados.
Xingu: a BR que mudou a vida dos Panará pra sempre
Em uma fala emocionante, Pasyma Panará, presidente da Associação Iakiô, relembrou e denunciou a abertura da BR-163 na década de 1970, que atravessou o território tradicional do povo Panará e causou a morte de quase 90% da população.
Ele destacou que, antes da rodovia, o povo Panará ocupava uma grande parte da região norte de Mato Grosso e uma pequena parte do sul do Pará, e que, para eles, a rodovia significou a morte do seu povo e destruição dos rios e da floresta que era fonte de alimento dos Panará. Relembrou a remoção forçada do seu povo para o Parque Indígena do Xingu, quando a população estava com apenas 70 pessoas em 1975, e a luta que empreenderam para retornar para parte do seu território na década de 1990.
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Panará, a volta por cima dos índios gigantes
Na atualidade, Pasyma apontou que o território têm sofrido com o avanço das invasões de madeireiros e da agropecuária em seu território, destacando o avanço do desmatamento para criação de gado e plantio de grãos na cabeceira do seu rio principal na atualidade, onde estão as sete aldeias da Terra Indígena Panará, o rio Iriri. Os próprios Panará têm realizado de forma independente o monitoramento da qualidade da água do rio Iriri - depois de dois eventos de mortandade de peixes em 2003 e em 2017 - e a vigilância do território, dado que esses impactos não são reconhecidos como uma consequência da ocupação provocada pela rodovia BR-163.
Pasyma afirmou que o momento atual é de construção de políticas públicas de forma conjunta, entre povos indígenas e Poder Público, não sendo mais aceitável políticas que, por um lado são “boas” para a sociedade brasileira, mas que, por outro lado, geram danos aos territórios indígenas. Amparados pelo eixo de não-repetição da justiça de transição, os Panará lutam pela não-repetição da tragédia que foi a construção da BR-163, exigindo participação na concepção do projeto Ferrogrão por meio de seu protocolo autônomo de consulta.
Concessões de hidrovias e a exceção do Xingu
Das quatro bacias amazônicas presentes, apenas o rio Xingu não apresenta, atualmente, projetos voltados à viabilização de hidrovias para navegação de commodities agrícolas.
Isso se deve ao fato de o rio Xingu ser, em sua grande parte, envolvido por um Corredor de Áreas Protegidas, composto por 22 Terras Indígenas e nove Unidades de Conservação, perfazendo cerca de 26,7 milhões de hectares protegidos. A defesa da integridade do Corredor Xingu é a motivação da Rede Xingu+, aliança entre mais de 50 organizações de povos indígenas, comunidades tradicionais e sociedade civil atuantes na bacia do rio Xingu.
Os estudos para concessão das hidrovias do Tapajós e Tocantins estão sendo realizados pela ANTAQ em recente acordo de cooperação técnica com o BNDES. Os estudos para concessão da hidrovia do Madeira foram entregues pela ANTAQ ao Ministério de Portos e Aeroportos. A concessão prevê a cobrança de tarifa pela movimentação de cargas no rio, sendo previstos serviços de dragagem, derrocagem, balizamento e sinalização, bem como manutenção e operação de seis pequenos portos públicos, como contraprestação.
Não existem comitês de bacias hidrográficas - entes responsáveis pela gestão do uso múltiplo das águas, que engloba o transporte - nas bacias mencionadas e não existe, atualmente, procedimento de licenciamento ambiental para a operação da navegação de commodities em hidrovias.
Tapajós: a conversão do rio em rota de commodities agrícolas
A conversão paulatina do rio Tapajós em uma rota para escoamento de commodities agrícolas e o incentivo à expansão da produção de monocultivos na região foi duramente criticada em carta do Movimento Tapajós Vivo apresentada por Carlos Alves, integrante do movimento.
Sem o envolvimento dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares do Tapajós, há uma década a região vem recepcionado investimentos em infraestrutura voltados à transformação do rio Tapajós em uma hidrovia para navegação de comboios de grãos, a maioria trazidos do estado de Mato Grosso.
Os impactos das intervenções do corredor logístico no Tapajós têm incentivado a expansão da produção de monocultivos na região e a lógica comercial especulativa, impulsionando a degradação socioambiental e conflitos territoriais, além de a maioria contar com processos de licenciamento ambiental irregulares e com lacunas, conforme apontado pela organização Terra de Direitos.
“Peço cautela às autoridades aqui presentes, pois é fundamental que analisemos esses processos de forma holística quando se trata da degradação socioambiental na Amazônia, especialmente na região do Tapajós. As obras de transporte e logística trazem consigo uma lógica comercial e especulativa [como os fogos criminosos que estão ocorrendo], funcionando como um organismo vivo em que nenhum impacto está isolado, uma obra puxa outra obra. Cada intervenção se conecta a outros processos de destruição ambiental. Por isso, devemos traçar caminhos coerentes com a realidade local”.
- Carlos Alves
Bruna Balbi, coordenadora do Programa Amazônia da Terra de Direitos, criticou o planejamento estratégico de transportes direcionado ao atendimento exclusivo das necessidades logísticas de grandes setores produtivos, desconsiderando as necessidades dos povos e comunidades amazônidas:
“Quais as justificativas para as hidrovias do Rio Madeira, do Rio Tapajós, do Rio Tocantins? (...) O que nós queremos aqui é que essas comunidades saiam do lugar de vítimas das obras planejadas pelo governo. Os povos e comunidades da Amazônia, e também a população urbana dos municípios, devem ser os destinatários deste planejamento, destes projetos. É uma virada paradigmática”.
Para Carlos Alves, é necessária uma mudança na forma de elaboração e tomada de decisão das políticas de infraestrutura, com a participação e consulta às comunidades locais, sobretudo na Amazônia.
“O lado positivo desse encontro em Brasília foi a junção de forças, onde os movimentos sociais das quatros bacias que são Madeira, Tapajós, Xingu e Tocantins trouxeram a mensagem ao governo brasileiro, de que é preciso mudar sua política de grandes projetos pensados para a Amazônia. Queremos ser ouvidos, queremos ser consultados e queremos ter maior participação nas decisões de planejamento e execução de grandes obras em nosso território"
Ferrogrão: a tentativa de driblar o STF
Dentre as intervenções voltadas à estruturação de corredores logísticos, a Ferrogrão foi novamente criticada pelos palestrantes das bacias do Xingu e do Tapajós. O projeto, que visa atender ao escoamento de commodities pela rota da BR-163, portos em Itaituba (PA) e rio Tapajós, teve seus estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental (EVTEA) atualizados pelo governo e apresentados ao Supremo Tribunal Federal em 02 de setembro de 2024, no âmbito da ADI 6553.
Uma das novidades dos estudos, segundo o Ministério de Transportes e a Advocacia Geral da União, é que o novo traçado da ferrovia não interfere no Parque Nacional do Jamanxim e, portanto, pode seguir para licitação e licenciamento ambiental, com a autorização do Supremo Tribunal Federal (STF). Em 20 de setembro de 2024, a Rede Xingu+ elaborou uma nota técnica contestando a tese do governo, que permite “driblar” o STF: acesse aqui
Madeira: impactos transcendendo fronteiras nacionais
Em meio à seca do rio Madeira, Iremar Ferreira, do Instituto Madeira Vivo, expôs o histórico de transformações profundas na cobertura da bacia com a expansão das atividades de monocultivo agrícola, pecuária, crimes ambientais na chamada “AMACRO”, região de fronteira agrícola e desmatamento da Amazônia, e as preocupações com as intervenções de infraestrutura planejadas e em implantação na região, como a pavimentação da BR-319, a ponte binacional Brasil-Bolívia e a hidrelétrica binacional do Madeira.
Iremar e David Borda, representante boliviano do Comitê Binacional de Defesa da Vida Amazônica na Bacia do Rio Madeira (COMVIDA), destacaram as preocupações das comunidades locais com o projeto de construção da barragem em Guajará-Mirim (RO) e Guayaramerín (Bolívia), que além de atender à futura Usina Hidrelétrica Binacional Brasil-Bolívia, viabiliza a navegação de grandes embarcações da região do Alto Madeira até Porto Velho, estendendo a hidrovia do rio Madeira.
Também foi criticada a iniciativa de concessão do rio Madeira aprovada pela ANTAQ em junho de 2024 e justificada pela necessidade de potencializar o uso do rio como rota de escoamento de grãos. “O que é estratégico como corredor logístico pro governo será que é para os territórios de destino?”, questionou o representante do Instituto Madeira Vivo em sua apresentação.
Iremar destacou a importância da oportunidade de dialogar com os representantes governamentais responsáveis pela elaboração e pelo controle das políticas públicas, ressaltando a invisibilidade dos territórios no planejamento estratégico da infraestrutura de transportes:
“Queremos sim infraestrutura de transporte… para nossas comunidades e povos das águas e das florestas”
- Iremar Ferreira
Tocantins: o pedral no caminho da hidrovia
Alvo de recente ação na Justiça Federal para anulação da licença prévia, as obras de derrocamento e dragagem no Rio Tocantins foram duramente criticadas por Claudelice Santos, coordenadora do Instituto Zé Cláudio e Maria e herdeira da luta de seu irmão e cunhada, lideranças extrativistas e defensores da floresta assassinados em 2011. Claudelice relembrou o legado de impactos sociais e ambientais gerados pela UHE Tucuruí sobre as comunidades locais do rio Tocantins e denunciou como os projetos de infraestrutura não são planejados para atender os territórios, exemplificando como, até hoje, comunidades próximas à UHE não tem acesso à energia.
Claudelice Santos foi enfática em denunciar os impactos que a obra de dragagem e derrocagem do Pedral do Lourenço no rio Tocantins vai gerar para as comunidades de pescadores, para quem “o Pedral do Lourenção é uma entidade”, segundo ela.
Sobre a violação ao direito de consulta prévia das comunidades ribeirinhas, Ronaldo Macena, da Associação da Comunidade Ribeirinha Extrativista da Vila Tauiry (ACREVITA), exigiu aos representantes governamentais presentes a realização da escuta às comunidades, que sobrevivem da pesca comercial e de subsistência nos pedrais que devem ser removidos para viabilizar a passagem de embarcações graneleiras desde Marabá (PA).
Com os estudos para concessão do rio Tocantins sendo realizado pela ANTAQ, Claudelice Santos criticou a continuidade da proposição de projetos de infraestrutura justificados pelo crescimento econômico, cujos custos são arcados pelas comunidades locais e convocou uma mudança urgente na estratégia da formulação da política de transportes:
"O Estado não pode continuar fazendo obras de infraestrutura baseado em commodities, com narrativas desenvolvimentistas. Já passamos dessa fase e os resultados, catastróficos já temos. Precisamos de um Estado onde o povo seja a prioridade e não as commodities. Os direitos dos povos e comunidades tradicionais não são negociáveis e estamos dispostos a contribuir para uma estratégia onde a transparência de fato seja prioridade, a participação seja ampla e a informação seja acessível a todos de fato."
Perspectivas de mudanças?
Para Felício de Araújo Pontes, procurador do Ministério Pública Federal, o direito à consulta livre, prévia e informada deve ser garantido no planejamento dos projetos impactantes a povos e comunidades tradicionais.
Em sua exposição, ele destacou os avanços no reconhecimento do direito à Consulta Livre, Prévia e Informada nos tribunais brasileiros e criticou o uso do mecanismo da suspensão de segurança como forma de driblar a realização das consultas aos povos e comunidades tradicionais impactados por empreendimentos considerados “estratégicos” pelo governo.
O procurador apontou para a necessidade de se “virar a página” da judicialização dos megaprojetos a partir do cumprimento do direito à consulta e demais salvaguardas socioambientais desde a etapa de formulação de propostas de infraestrutura impactantes a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
Em suas apresentações, representantes das subsecretarias de planejamento e sustentabilidade do Ministério de Transportes afirmaram que o novo ciclo do Planejamento Integrado de Transportes (PIT), instituído pelo Decreto nº 12.022, de 16 de maio de 2024, prevê mudanças importantes e que vão na direção de assegurar maior participação e sustentabilidade no planejamento setorial.
Foram apontadas alterações metodológicas na elaboração do Plano Nacional de Logística, com a inclusão de critérios para sustentabilidade para além da métrica de emissões de gases de efeito estufa, bem como a previsão de mecanismos de participação regionais, como audiências públicas, que permitirão o maior envolvimento dos territórios na concepção da política de transportes nacional.
Para Sérgio Guimarães, secretário executivo do GT Infraestrutura e Sustentabilidade Socioambiental, a participação ativa de representantes de comunidades impactadas e de órgãos do governo foi inovadora, mas advertiu: “O desafio agora é ir além das boas palavras dos órgãos de governo e colocar em prática um planejamento transparente e inclusivo para que os projetos representem os verdadeiros interesses da sociedade e não somente de setores específicos, como acontece ainda hoje. Mecanismos para isso, existem”.