Encontro na aldeia Khikatxi, Terra Indígena Wawi, no leste do Mato Grosso, fortaleceu a luta na defesa da biodiversidade e dos direitos territoriais
Os comunicadores da Rede Xingu+ se reuniram em um grande encontro para reforçar a união entre seus povos e fortalecer a defesa do Corredor de Sociobiodiversidade do Xingu. Este vasto território se estende por 26,7 milhões de hectares entre os biomas Amazônia e Cerrado e abrange Áreas Protegidas nos estados do Pará e Mato Grosso.
Fundada em 2019, a Rede Xingu+ surgiu em resposta ao avanço das ameaças e pressões sobre o Corredor, demonstrando ao longo dos anos que sua atuação é crucial para a proteção do território e para o enfrentamento à crise climática.
A rede congrega 53 organizações e movimentos indígenas, ribeirinhos e da sociedade civil, que operam nas nove Unidades de Conservação e 22 Terras Indígenas da Bacia do Xingu, articulados em torno da proteção das vidas do Xingu.
Essa união ganhou ainda mais força com os 32 comunicadores da Rede Xingu+, que, nos últimos seis anos, têm documentado as ameaças que pesam sobre os modos de vida que há milênios sustentam a floresta, cujo alcance atravessa os limites entre Mato Grosso e Pará.
Para reafirmar e atualizar seus acordos, os comunicadores da Rede Xingu+ se reuniram no território do povo Khisêtjê, de 16 a 22 de agosto, na aldeia Khikatxi, Terra Indígena Wawi, no leste do Mato Grosso.
Sonhar a comunicação xinguana
A aldeia Khikatxi desenvolveu um sistema de comunicação próprio, contou Winti Suya durante o encontro: “os comunicadores são muito importantes no sistema de comunicação criado pelos Khisêtjê para compartilhar com o mundo as nossas lutas.”
Mais de 100 Khisêtjê se reuniram na ngo, a casa dos homens no centro da aldeia Khikatxi, para receber os comunicadores. Durante a mesa da abertura, organizada pela diretoria da Associação Indígena Khisêtjê (AIK), Kamani Trumai, pai do comunicador Kamikia Kisedje falou sobre o orgulho que sente do filho e contou que, quando criança, Kamikia gostava de brincar de fazer enquadramento com os talos de macaxeira como se fosse sua câmera.
Hoje, a brincadeira se tornou realidade e o comunicador Khisêtjê tem inspirado novas gerações a seguir o caminho da comunicação engajada, que é produzida coletivamente nos territórios e não se separa da vida dos comunicadores. A cobertura do encontro dos comunicadores foi realizada por ele.
Kamikia Kisedje, do povo Khisêtjê, é um comunicador indígena da Terra Indígena Wawi, no Mato Grosso. Desde 2000, documenta encontros e mobilizações dos povos indígenas do Território Indígena do Xingu (TIX), capturando eventos como reuniões, celebrações e diversas manifestações culturais e políticas.
Reconhecido por sua ampla atuação no movimento indígena e por seu trabalho sobre mudanças climáticas, Kamikia tornou-se uma importante referência para povos indígenas e cineastas em formação, atuando como agente multiplicador ao ministrar oficinas de formação audiovisual por todo o país.
Todas as nove aldeias da Terra Indígena Wawi contam com comunicadores, que segundo Kamani Trumai, têm feito um trabalho fundamental para visibilizar o pensamento xinguano. “Comunicadores, eu parabenizo o trabalho de vocês. É um trabalho muito importante que vocês estão fazendo. Vocês que vão registrar as coisas que estão acontecendo nos nossos territórios para mostrar para o mundo”.
Os comunicadores Khisêtjê e da Rede Xingu+ mergulharam juntos em seis dias de trocas intensas sobre os modos de pensar e fazer comunicação nos territórios.
O encontro reuniu o diretor Alberto Alvares Guarani, o editor de redes sociais do ISA, Ariel Gajardo, a editora assistente de redes sociais do ISA, Tauani Lima, o repórter da Rede Globo Caco Barcellos, o jornalista Erisvan Guajajara e a diretora Renne Nader.
Todos ficaram impactados pela devastação do fogo no entorno da aldeia Khikatxi, que durante o encontro estava totalmente tomada pela fumaça dos incêndios nas fazendas próximas ao limite da Terra Indígena Wawi. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cerca de 25.670 focos de calor foram detectados esse ano na bacia do Xingu.
Durante o encontro, os comunicadores da Rede Xingu+ produziram um vídeo manifesto contra a destruição dos seus territórios, alertando o mundo para os riscos dos incêndios ilegais, que estão sufocando as vidas de importantes espécies que regulam os ciclos vitais para a manutenção do clima do planeta.
Assista ao vídeo:
“Antigamente, tinham poucos comunicadores indígenas, agora têm muitos e é muito importante vocês contarem suas próprias histórias. Muitas vezes usamos telefones para filmar, isso também é jornalismo, como vocês fizeram na aldeia Khikatxi ao registrar o incêndio na fazenda que está próxima no limite da aldeia”, afirmou Caco Barcellos.
“O que é mais importante para a manutenção de um coletivo de comunicação indígena?”. Foi com essa pergunta que o comunicador da AIK Produções, Khumtá Suya, iniciou o segundo dia do encontro. A pergunta foi direcionada para o jornalista e um dos fundadores do coletivo de comunicação Mídia Indígena.
“União e confiança, são sentimentos fundamentais para conectar um coletivo de diversos povos, de culturas e histórias. Para a gente apresentar ao mundo o que acontece nas Terras Indígenas, é necessário ter várias opiniões e muito diálogo, porque estamos compartilhando a realidade de muitos povos diferentes. Sempre escutamos todos, com muito respeito", afirmou.
Para inspirar os comunicadores da Rede Xingu+ sobre as histórias que podem compartilhar nas redes sociais, Ariel Gajardo, do ISA, relembrou uma fala marcante de Kamani Trumai, pai de Kamikia, durante a mesa de abertura: “Ele olhou para vocês e disse: 'Nós confiamos em vocês.'” Gajardo destacou a profundidade desse gesto, pessoalmente e nas falas de Caco Barcellos, que discutiu o conceito de jornalismo e o papel da reportagem.
“Vocês estão no território. Ninguém está mais em campo do que vocês, que veem a fumaça chegar, presenciam a morte dos peixes na piracema, testemunham os Kwarup e também as coisas boas, a cultura viva, a língua sendo falada, os ensinamentos das lideranças e dos anciãos. Vocês são os verdadeiros repórteres. É por isso que a comunidade confia no trabalho que fazem — os beiradeiros e indígenas da Rede de Comunicadores do Xingu+.”
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Para incentivar os comunicadores a compartilharem suas reflexões, Gajardo usou a metodologia da foto-voz, na qual cada comunicador escolheu e apresentou uma fotografia que representa algo significativo para ele.
Tairu Kayabi Juruna mostrou um registro feito na aldeia Piaraçu, em 2020, durante o grande encontro convocado pelo cacique Raoni. “Esse foi um momento marcante na minha vida, quando pude mostrar a todos a força do meu olhar”, relatou o comunicador ao apresentar a imagem.
“Precisamos trazer nosso próprio olhar”
Para aperfeiçoar os conhecimentos dos comunicadores da Rede Xingu+ sobre ferramentas que podem ser utilizadas para contar suas histórias, o diretor e cineasta Alberto Alvares Guarani exibiu a sua produção mais recente, Yvy Pyte – Coração da Terra, que segundo o diretor, nasceu do seu desejo de registrar o seu retorno à sua aldeia.
Entre deslocamentos e fronteiras, o cineasta levou os comunicadores da Rede Xingu+ para o território sagrado dos Guarani, que enxergam suas casas como uma morada livre, que “dança” entre as fronteiras impostas pelos processos de territorialização vividos pelos povos indígenas na América do Sul.
Para Alberto Alvares Guarani, a noção de casa pode ser comparada ao sentimento dos Guarani sobre ser “um pássaro no coração da Terra”. O cineasta compartilhou em detalhes como foi o processo de roteirização, filmagem e finalização do filme, que recentemente foi exibido no 21.º Festival Internacional de Cinema Doclisboa.
“Esse filme foi criado coletivamente, através da câmera contamos nossa histórias, vocês veem que cada povo tem sua realidade e pensamento?”, perguntou o cineasta aos comunicadores da Rede Xingu+.
“Vocês já sabem fazer documentários; nosso olhar tem poder. Muitas vezes, os não indígenas chegam prontos para filmar em nossos territórios, impondo a visão deles sobre nossas histórias. Para evitar isso, precisamos trazer nosso próprio olhar. Se não fosse por esse filme, eu não estaria aqui com vocês agora. Ele nasceu em 2017, ao redor de uma fogueira, e trouxe algo muito maior com ele. Esse filme é importante porque leva nossas lutas para outros espaços, amplificando nossa voz e nossas causas.”
Renée Nader, diretora dos filmes Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos e Flor de Buriti, elaborado coletivamente com o povo Krahô da aldeia Pedra Branca, da Terra Indígena Krahô, Tocantins, também participou do encontro dos comunicadores da Rede Xingu+.
“O cinema é uma linguagem, mas também é uma forma de se comunicar e de criar aliados de lutas”, disse.
Segundo ela, na comunidade Pedra Branca há um grupo de jovens que registra tudo o que acontece na comunidade e que os mais velhos os escolheram com a missão de documentar sua cultura e história.
Renée Nader apresentou um filme de ficção produzido pelo coletivo de cinema Krahô Metwaje, que trata sobre os impactos do consumo de álcool na aldeia. “Eu achei muito bom o filme, isso é muito bom para nós comunicadores, porque muitas vezes, alguns jovens querem falar o que está errado, o que está acontecendo na comunidade e produzindo filmes a gente pode falar mais alto”, refletiu o comunicador Arewana Juruna.
Os comunicadores foram divididos em quatro grupos para investigar o tema mais relevante para os Khisêtjê na produção de uma peça audiovisual. Durante as entrevistas, os mais velhos do povo Khisêtjê relataram que viveram por décadas afastados do TIX, longe de seu território. Em 2025, eles celebram 25 anos da demarcação da Terra Indígena TI Wawi. Durante esse período de distanciamento, os Khisêtjê estavam preocupados com as fazendas de gado e pescadores que provocavam o desmatamento na região.
Agora, 24 anos após seu retorno ao território tradicional, as pressões permanecem: as ameaças aumentaram com o avanço do desmatamento, o uso de agrotóxicos nas proximidades e os incêndios nas bordas da TI Wawi.
Para mitigar os impactos do desmatamento, os Khisêtjê têm plantado pequi e recuperado áreas degradadas. Essa ação não apenas aumenta a produção de alimentos para a comunidade, mas também gera uma renda sustentável com a comercialização do óleo de pequi, resultando na restauração de 63 hectares.
Os comunicadores da Rede Xingu+ concordaram que sua próxima produção abordará a história de resistência do povo Khisêtjê. Ame Suyá, liderança Khisêtjê, destacou que a produção audiovisual será uma estratégia importante de enfrentamento ao risco imposto pela Lei do Marco Temporal ao território Khisêtjê.
Acordos e protocolos
Ao longo do encontro, os comunicadores da Rede Xingu+ revisaram e atualizaram seu regimento interno, que foi elaborado em 2023. Com apoio do presidente da Associação Terra Indígena Xingu (Atix), os comunicadores revisitaram os acordos mútuos estabelecidos entre indígenas e beiradeiros, suas associações e a Rede Xingu+, para orientar as atividades e governança – e participar de encontros com parceiros para expandir o potencial de comunicação do grupo.
Ao longo da produção do documento, os comunicadores puderam refletir com o presidente da Atix sobre as melhores maneiras de registrar e divulgar assembleias importantes para as lideranças do Xingu em parceria com os presidentes das associações indígenas e beiradeiras.
O regimento dos Comunicadores do Xingu+ prevê a estruturação de parcerias entre comunicadores, associações xinguanas, conselheiros do Xingu+ e assessoria técnica da Rede Xingu+ para o alinhamento das coberturas de assembleias e reuniões nas aldeias e localidades do Xingu.
Nos esforços dos comunicadores indígenas e ribeirinhos do Xingu pela defesa dos direitos territoriais na Bacia do Xingu, a comunicação se estabelece como uma ferramenta política indispensável. A reunião ressaltou que, com a flecha da comunicação em mãos, os comunicadores continuarão sua luta, defendendo não apenas seus próprios mundos, mas também o futuro de todos nós.
O encontro dos Comunicadores da Rede Xingu+ e esta reportagem foram produzidos com apoio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), da Fundação Rainforest da Noruega, da União Europeia e do Fundo de Defesa Ambiental (EDF).