Caatinga Climate Week coloca o bioma exclusivamente brasileiro no centro do debate climático a partir de experiências e saberes de povos e comunidades tradicionais
O chão de terra arenoso entre o amarelo e o cinza, as árvores secas enfileiradas com mandacarus imponentes, a vegetação amarelada e rasteira, que compõem parte de um cenário que no imaginário de muita gente é sinônimo de pobreza, escassez e fome, foram territórios férteis de debates intensos, vivências e trocas entre os dias 1 e 4 de outubro, na região agreste de Pernambuco. Mas não são só essas características que formam o bioma Caatinga, que recebeu nos primeiros dias de outubro a Caatinga Climate Week, iniciativa organizada pelo Centro Sabiá, em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA).
As experiências compartilhadas durante os quatro dias mostraram que o único bioma exclusivamente brasileiro é também morada de milhares de espécies nativas, de uma sociobiodiversidade diversa e rica, de frutas e flores que desabrocham quando vem a chuva e de povos e comunidades tradicionais que há séculos desenvolvem suas estratégias de adaptação a partir de seus saberes ancestrais.
A Caatinga, bioma presente nos estados da Bahia, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Ceará, Piauí, Maranhão e Minas Gerais e imortalizada na memória de cada brasileiro pelas letras de Luiz Gonzaga, ilustre pernambucano da cidade de Exu, é também a Caatinga expressada nas falas da líder índigena e coordenadora da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Elisa Pankararu, da etnia Pankararu, localizada no sertão de Pernambuco: a Caatinga é um bioma de resistência e de beleza.
Segundo ela, a imagem que foi construída no país sobre o bioma é repleta de preconceito e discriminação, mas precisa ser superada: “Está nas artes, no cinema, nas pinturas, nos quadros e nós sempre somos visto como um lugar de mulheres feias com seus maridos magros, e crianças magras e feias também. E não somos. Somos de beleza, de cultura e de conflito também, porque somos de resistência e somos de enfrentamento", completou Elisa Pankararu, uma das lideranças mais respeitadas entre os povos de sua região e no movimento indígena brasileiro.
A Caatinga Climate Week
Durante quatro dias, entre as cidades de Caruaru, Garanhuns, Pesqueira, Vertentes, Jucati, Caetés, Arcoverde e Buíque, entre o agreste e o sertão pernambucano, cerca de 500 pessoas, de vários estados do país, passaram pelo evento e debateram a urgência de colocar a Caatinga no centro do debate climático.
Organizações da sociedade civil, movimentos de base de povos e comunidades tradicionais e da agroecologia, lideranças indígenas e quilombolas, ativistas socioambientais, representantes do poder público, influenciadores digitais e jornalistas puderam ver de perto diferentes experiências ao longo dos 400 quilômetros percorridos pela Caatinga Climate Week, nome propositalmente escolhido para fazer o contraponto a semanas internacionais que debatem a pauta do clima, como a Climate Week NYC (Semana do Clima de Nova York), ocorrida exatamente na semana anterior, em Nova Iorque, Estados Unidos.
Além dos filhos do bioma Caatinga, também estiveram presentes representantes da Amazônia, do Cerrado e da Mata Atlântica.
Segundo o coordenador de Mobilização Social do Centro Sabiá, Carlos Magno, o objetivo do evento foi mostrar que o povo da Caatinga, a partir de suas experiências, tem capacidade de ser protagonista das discussões feitas nos eventos climáticos e, sobretudo, agora no contexto da COP30, que será realizada em novembro, em Belém/PA.
“Essa semana do clima tem o intuito de fazer pontes, de conectar pessoas de diversos lugares para que a gente consiga realmente levar essa mensagem para a COP, de colocar a Caatinga no centro do debate climático. Seja em português, seja em inglês, seja em espanhol”, disse Carlos Magno, durante a plenária de abertura, realizada no Centro de Formação Paulo Freire, no assentamento Normandia, em Caruaru, uma das principais experiências de reforma agrária da região Nordeste.
Para a secretária executiva do ISA, Adriana Ramos, iniciativas como a Caatinga Climate Week são necessárias e urgentes para que o país possa aprender com os povos desse bioma as soluções que eles já apresentam.

“Aqui é um berço de grandes ideias. De um povo muito forte que vem construindo soluções, que é o que o mundo hoje está buscando. Soluções para o enfrentamento de situações muitas vezes adversas, sobretudo agora com as mudanças climáticas, situações criadas por outros, mas que a gente precisa ajudar a remediar. Então é uma grande honra poder estar aqui, se inspirando, bebendo nessa fonte e trazendo alguma contribuição", pontuou.
Rodrigo Junqueira, secretário-executivo do ISA, destacou que os outros biomas têm ainda muito o que aprender com a Caatinga, que já vem colocando em prática diferentes estratégias de adaptação climática.
“Vocês podem contar com a gente nessa continuidade, com tanta força, tanta resiliência, tanta resistência. Poder levar para Belém e para a COP todo esse aprendizado, toda essa luta que vocês têm. E saber que muito do que os outros biomas ainda estão aprendendo, sobre o que é adaptação, por exemplo, vocês já sabem, porque a vida de vocês passa por isso".
O evento não só cumpriu o objetivo de trazer o bioma de Luiz Gonzaga e de Patativa do Assaré para o centro da pauta mais debatida no momento, como mostrou que os povos da Caatinga têm as soluções para enfrentar a crise.
“A gente quer só que as pessoas reconheçam que a Caatinga é importante e que a gente pode construir muita coisa a partir desse lugar, da experiência dos povos, da inteligência coletiva que esse povo tem, da resistência e da resiliência que essas comunidades construíram nesse território", pontuou Carlos Magno.
Macaxeira: alimento, memória e resistência
Não eram nem 9 horas da manhã de quinta-feira (02/10) quando um grupo de cerca de 20 pessoas chegou no Sítio Serrote dos Bois, na zona rural de Caruaru, cidade pólo do agreste pernambucano e a primeira parada da Caatinga Climate Week. Aluísio Barbosa e Maria José Barbosa, agricultores familiares responsáveis pela casa, receberam os visitantes com café, chá, bolo de macaxeira e beiju. O alimento servido no intervalo da visita era fruto do principal assunto das mais de duas horas de conversa: a macaxeira.
Ali, no semiárido, a raiz, que em alguns lugares do Brasil é chamada de mandioca e em outros de aipim, é muito mais do que alimento e raiz fincada na terra. É também memória e resistência. A partir dela, agricultores familiares produzem farinha, beiju, goma, tapioca e tantos outros derivados e preservam o modo de vida tradicional de manejar a terra.
Enquanto caminhava com o grupo de visitantes pela plantação, Aluísio explicava como a macaxeira se tornou o principal alimento e fonte de recurso das famílias daquela região, tendo substituído a batatinha por ser mais adaptada aos longos períodos sem chuva do semiárido. Uma das aliadas nesse processo é a cisterna que Aluísio tem em seu quintal, parte do bem sucedido Programa de Cisternas do Governo Federal, tecnologia de acesso à água que já atendeu mais de 130 mil famílias nos últimos dois anos.
“Hoje, como eu sofri muito com a falta de água, eu tenho 208 mil litros de cisterna”, contou Aluísio.
João Barbosa da Silva, o Dão responsável pela casa de farinha da Associação do Pequeno Produtor Rural de Caruaru, também fala sobre as diversas formas de se aproveitar a macaxeira. “Agora nós vamos conhecer como é o processo com ela para transformar na farinha. Ela tá dura, mas ela vai ser triturada, depois vai ser espremida a água, e depois torrada aquela massa”, explicou, percorrendo por todo o processo de produção da farinha e outros derivados da raiz.
Ao final da visita, Aluísio e Dão se juntaram também a José João dos Santos, conhecido como Pelé, para falar sobre os atuais desafios para as famílias que vivem da agricultura familiar na região, que passam pelos impactos das mudanças climáticas no plantio da macaxeira e em seus modos de vida, até o crescimento das frentes de trabalho precário na indústria têxtil da região de Caruaru.
“Passou esse tempo bom e agora a gente tá no tempo ruim. Mas mesmo no tempo ruim eu dou conselhos a muitos pais de família aqui para segurar os filhos na agricultura, incentivar, porque eu sou um exemplo disso”, disse Aluísio, cuja filha é responsável pela venda dos produtos na feira da agricultura familiar.
Nesse mesmo dia, além da visita ao Sítio Serrote dos Bois, os participantes da Caatinga Climate Week, divididos em grupos, visitaram as mulheres agricultoras do Sítio de Carneirinho, que se uniram em associação para acessar políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE); e uma família na zona rural do município de Vertentes, que transformou a escassez de água em oportunidade de produção agroecológica diversificada, por meio das tecnologias sociais de adaptação climática.
Fé no sagrado guia mulheres negras quilombolas
A chegada nas comunidades quilombolas de Castainho e Estivas, na zona rural de Garanhuns, só foi permitida depois de pedir licença aos ancestrais que protegem o território. A recepção do grupo composto por 18 participantes da Caatinga Climate Week ficou por conta de Maria José Isídio, conhecida como Mestra Zeza do Côco, e sua filha Edvani Lopes Isídio, ambas lideranças do Quilombo Castainho; e Aparecida Nascimento e Marinho dos Santos, lideranças do Quilombo Estivas.
De frente a uma capela com uma porta no meio e duas cruzes laterais e diferentes imagens de santos em seu interior, as lideranças entoaram cânticos que fazem referência à travessia pelo Oceano Atlântico de escravizados retirados do continente africano e sua chegada até os territórios quilombolas que seguem resistindo para manter sua tradição, sua cultura e, principalmente, seu direito ao território.
“Pedir licença a essas pessoas que passaram por aqui, que chegaram primeiro antes de nós. Então a gente pede essas bênçãos para todos vocês que estão visitando esse território, que é um território sagrado. Se a gente compreende que essa terra que nós estamos pisando é nosso corpo, que a água que a gente bebe para sobreviver é o nosso sangue, a gente entendeu isso”, explicou Aparecida Nascimento, conhecida como Cida.
Principal liderança do Quilombo Castainho, Mestra Zeza do Côco abriu a porta de sua casa embolando um côco que fala da luta de sua família em preservar as tradições daquele território. Ela e sua filha Edvani apresentaram as estruturas da casa de farinha, de onde tiram os sustento da família.
“Não se perde nada da mandioca, tudo é utilizado. Tudo”, sentenciou Edvani, que junto com a mãe mostrou todas as etapas do processo de aproveitamento da raiz, a mesma que os agricultores do Sítio Serrote dos Bois, em Caruaru, chamam de macaxeira.
Mestra Zeza, emocionada, emendou contando o que a mandioca representa para a família: “Eu sinto um orgulho muito grande de falar, sempre eu falo isso. Porque eu vendi na feira por 34 anos. E foi daqui da casa de farinha que eu eduquei meus filhos. Eu tenho quatro filhos que saíram de mim e tenho três do coração. Eu sempre me emociono, porque foi daqui, dessa casa de farinha, que a gente educou nossa família. Tenho três filhos que conseguiram se formar, e foi da casa de farinha e vendendo na feira”, disse, entre choro e aplausos.
Castainho, com cerca de 350 famílias, foi o primeiro quilombo de Pernambuco a receber a titulação parcial da terra, isso porque parte dos 193 hectares que formam o território está judicializado.
“Isso veio depois de muitas lutas, muitas ameaças, pela defesa dos nossos territórios, que é algo essencial para a gente. Não existe justiça climática, se não existir demarcação e titulação dos territórios quilombolas. Nós acreditamos nisso, porque sem nosso território, nós não somos nada, e a partir dos territórios é que nós vamos manter a preservação, a conservação dos nossos biomas, da nossa fauna, da nossa Caatinga, que é algo essencial para a gente. Território é vida, é ancestralidade”, defendeu Edvani.
No Quilombo Estivas, comunidade vizinha de Mestra Zeza do Côco e Edvani, se destacam as hortas orgânicas e os quintais produtivos com as técnicas e saberes da agroecologia. Cida, a mesma que recebeu a equipe da Caatinga Climate Week na entrada do território, explicou que as mulheres do quilombo estão na linha de frente dos trabalhos em comunidade, a partir do Coletivo de Mulheres Negras Quilombolas Flor de Dandara. Elas também são a maioria nos cargos de liderança da associação do Quilombo Estivas.
Nesta comunidade, a cisterna também garante a oferta de água para uso doméstico e no trabalho na roça. Mas, segundo os relatos de Cida e de outras mulheres da comunidade, os impactos das mudanças climáticas já podem ser sentidos. Neste ano, o alface não cresceu como de costume, por falta de sol, e a plantação de coentro não vingou, por conta da grande incidência de geadas.
Diferentemente de Castainho, Estivas, com pouco mais de 200 famílias, ainda não conquistou a titulação da terra e a comunidade enfrenta uma série de ameaças nesse processo. “Nossa luta não será em vão. Temos muita fé que o mundo vai olhar para nós, e que conquistaremos a titulação e a preservação do nosso território quilombola”, destacou Marinho dos Santos.
Nesse dia, além das visitas aos quilombos de Garanhuns, a Caatinga Climate Week também esteve com famílias agricultoras que enfrentam os efeitos da instalação de parques eólicos em sua comunidade, no município de Caetés; com agricultores que trabalham com rede de sementes crioulas e na preservação da biodiversidade e da paisagem agrícola, no município de Jucati; e com indígenas do território Xukuru, que desenvolvem estratégias de adaptação e mitigação a partir dos saberes ancestrais da agricultura indígena, no município de Pesqueira.
Vale do Catimbau: espaço sagrado afroindígena
O último dia da Caatinga Climate Week foi com uma plenária final no Parque Nacional do Catimbau, localizado entre o agreste e o sertão pernambucano, nos municípios de Buíque, Tupanatinga e Ibimirim.
O encontro reuniu lideranças indígenas das etnias Xukuru, Pankararu, Pankará, Fulni-ô, Kapinawá e Kambiwá, que saudaram os participantes com seus cantos e rezas.
Liderança do povo Kapinawá, território indígena onde fica parte do Parque Nacional do Catimbau, Cacique Robério Kapinawá falou sobre a necessidade de os espaços de discussão sobre clima ouvirem os povos da Caatinga.
“É importante que de fato a gente diga ao mundo, diga ao Brasil, que nós existimos. Se batem numa tecla de dizer que a Amazônia é o pulmão do mundo, também é importante ter o reconhecimento que a Caatinga é o bioma natural do Brasil e precisa ser valorizado. Isso precisa ser discutido nas mesas de debate sobre clima e de qualquer tipo de discussão”, enfatizou Cacique Robério.
“A gente fala de Caatinga, que às vezes é muito desvalorizada por quem não tem o conhecimento e não tem a vivência. E a gente veio aqui justamente pautar esse assunto, dentro desse contexto de emergência climática, que a gente também vai dialogar”, completou Hugo Fulni-ô, indígena do povo Fulni-ô.
Liderança do Quilombo Mundo Novo, em Buíque, Irailda Leandro deu o recado para que o país passe a enxergar a Caatinga como um celeiro de cultura e biodiversidade.
“A gente não quer que as pessoas cheguem com peninha da gente. A gente quer que vocês possam chegar a acessar o meu território, com ideia para que as minhas e os meus parentes possam adquirir conhecimento para sobreviver com dignidade. Então esse momento aqui é riquíssimo. A gente tem condições de sobreviver do território, de tirar da terra, da mãe terra a nossa sobrevivência, mas as pessoas insistem para que a gente seja ignorante, que a gente não tenha acesso aos conhecimentos e nem acesso a essas políticas públicas que possam nos libertar”.
Saiba mais como a Caatinga Climate Week.