Saberes e práticas ancestrais sustentam a biodiversidade, garantem soberania alimentar e conectam territórios e povos além dos limites dos países amazônicos
*artigo originalmente publicado em
((o))eco
Os Sistemas Agrícolas Tradicionais (SATs) são conjuntos organizados de saberes e práticas ancestrais que orientam o manejo das paisagens e o uso dos recursos naturais por diferentes povos em seus territórios. Baseados em profundos conhecimentos ecológicos e botânicos, esses sistemas garantem a reprodução social e cultural dos grupos e sustentam as paisagens de diversidade que caracterizam a Amazônia.
Os SATs constituem verdadeiras estratégias de gestão territorial, sustentadas por amplas redes de trocas e interdependências entre humanos e não humanos. Neles, as cosmologias indígenas são centrais: moldam as relações com os territórios e orientam o uso e a domesticação dos recursos. Mandioca, cacau, pupunha, amendoim e inúmeras variedades de pimentas são frutos desses sistemas, que asseguram soberania e segurança alimentar, além de reforçar a reprodução da biodiversidade.
Para a preservação e manutenção dos SATs, é preciso garantir o direito ao território e o reconhecimento das formas de vida dos povos tradicionais. A vitalidade dos SAT é central para a conectividade sociocultural e ecossistêmica do bioma amazônico. Os SAT são uma das peças que articula essa conectividade, a partir de uma ampla rede de interconexões e relações de interdependência entre humanos, não humanos, plantas, animais e recursos naturais.
Dessa forma, a continuidade das contribuições prestadas pela Amazônia às condições de possibilidade da vida na Terra depende da conectividade sociocultural e ecossistêmica que está pautada pela vitalidade dos SAT nos diferentes territórios e contextos.
Entretanto, o avanço de atividades predatórias tem comprometido essa integridade. Pesquisas indicam que a Amazônia se aproxima de um ponto de não retorno, com fragmentação crescente e a formação de “ilhas” de ecossistemas, o que gera perda de conectividade ecológica e social.
Os desafios contemporâneos vêm mostrando a necessidade de uma articulação transfronteiriça que dê conta de ações de proteção ambiental e de modos de vida que garantam o equilíbrio e a preservação da conectividade sociocultural e ecossistêmica. Muitos dos povos que habitam a Amazônia precedem à formação dos estados-nacionais latino-americanos, sendo que as fronteiras entre países não levam em consideração os modos de habitar e usar o território desses povos. Sem uma perspectiva regional que permita observar essas situações que vão além dos limites geográficos entre países, não há possibilidade de garantir a conectividade da Amazônia.
É nesse contexto que a COP30, realizada em Belém, ganha força como um espaço estratégico para evidenciar que a proteção dos SATs – e, com eles, da conectividade amazônica – exige pactos transnacionais e compromissos políticos alinhados à realidade dos povos que constroem e mantêm esses sistemas há milênios.
A Aliança Norte Amazônica (ANA), iniciativa sul-americana de organizações socioambientais da qual o Instituto Socioambiental (ISA) faz parte, surge como uma estratégia fundamental para produzir evidências e promover ações com visão regional e transnacional. A partir da experiência local e territorial junto dos povos indígenas e tradicionais com os quais cada organização trabalha, o esforço é criar entendimentos conjuntos e estruturar ações com uma visão regional e transnacional, atuando num contexto que é regional e transnacional, nas suas relações e interconexões.
Desde o início do ano, ANA vem desenvolvendo uma perspectiva regional sobre os Sistemas Alimentares Indígenas Amazônicos (SAIA), buscando diagnosticar e qualificar sua situação em relação aos direitos territoriais, instrumentos de autodeterminação, políticas de fomento e transformações recentes. O objetivo é reconhecer as contribuições desses sistemas para a resiliência e adaptação às mudanças climáticas, além de reforçar os direitos originários dos povos que os mantêm.
Num cenário global marcado pelo negacionismo climático e por soluções centradas em interesses econômicos, instituições como a FAO desempenham papel crucial ao promover acordos e estratégias baseadas em conhecimento e justiça socioambiental. A participação da ANA na terceira edição do Centro Global sobre Sistemas Alimentares dos Povos Indígenas da FAO, em outubro, levou uma visão amazônica construída a partir de experiências locais e nacionais, reforçando a importância dos SATs para a proteção da floresta e dos povos que a habitam.
A hora demanda acordos e estratégias transnacionais que reconheçam as contribuições e os direitos dos povos indígenas e tradicionais diante do avanço da crise ambiental e climática. Proteger e valorizar seus sistemas alimentares é afirmar a importância dos múltiplos repertórios e modos de vida que sustentam a própria humanidade. A conectividade amazônica é o alicerce dessa visão e os Sistemas Agrícolas Tradicionais, um de seus elos vitais, guardados e praticados há milênios pelos povos que mantêm a floresta de pé.
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