Elas Que Lutam! No Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela, liderança da Conaq conta como militância e escrita orientam sua ação política
Capricorniana, ativista, candomblecista, torcedora do Vasco da Gama e da escola de samba Beija-Flor. Mas como ela mesma diz, “a minha maior identidade é quilombola”. Essa é Selma dos Santos Dealdina Mbaye. Uma mulher preta-quilombola, de 42 anos, que adora fazer citações e, apesar de ser muito impaciente — característica que ela mesma não se furta em destacar —, espera pelo dia em que irá se apresentar e se definir para além de seu currículo, que é bem recheado.
Nascida e criada no território Sapê do Norte, no quilombo Angelim 3, localizado no município de São Mateus, em Conceição da Barra (ES), Dealdina atualmente é articuladora política da Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), vice presidente do Conselho do Fundo Casa, conselheira da Anistia Internacional, compõe a Via Campesina, a Coalizão Negra por Direitos e também o coletivo que organiza a Marcha das Mulheres Negras para 2025.
Selma Dealdina tem em sua essência o zelo pelo bem-viver da coletividade. Nascida em uma família de cinco irmãos, sempre esteve envolvida em iniciativas que a conduziram para o caminho da liderança. A luta esteve cotidianamente presente em sua rotina, não apenas porque se envolveu com a defesa dos direitos de seu povo, das mulheres e da população negra, mas pelo simples fato de ser quem é.
“Eu sempre soube que era uma menina negra, não porque sou retinta, mas porque a sociedade, a escola, que é um ambiente extremamente racista, sempre diz qual é teu lugar. E, de uma certa forma, as pessoas sempre deliberaram um lugar para os nossos corpos enquanto mulheres negras”.
Apesar da rotulação social, a identidade negra de Selma contou com uma contribuição fundamental em seu processo. “A minha mãe sempre nos disse qual era o nosso lugar enquanto pessoas negras. Ela tentou colocar a gente o mais próximo possível da nossa cultura e sempre nos disse que nós éramos negros, ela nunca disse o contrário. Então ser forjada num lar assim me deu forças para enfrentar os desafios”.
Escrevivências
Organizadora de algumas publicações, como o livro Mulheres Quilombolas - Territórios de Existências Negras Femininas e o livreto Mulheres Quilombolas - Escrevivências entre a Memória e o Coração, Selma sabe qual o poder da escrita na vida de mulheres negras.
“A Conceição Evaristo nos diz que as nossas escrevivências são um momento de crescimento, e é muito difícil para nós, mulheres negras, sentarmos e escrevermos sobre nós mesmas.”
“Mas eu acredito que a escrita é um espaço libertador também. Acho que não só para as narrativas verídicas, mas também do que a gente gostaria que fosse. Que a gente possa ter esse momento de loucura, de utopia, de ilusão por um segundo, para a gente poder desarmar esse corpo de militante, esse ‘descansa militante’, para poder fazer uma coisa diferente que não seja só guerrear, guerrear e guerrear”.
O livro Mulheres Quilombolas - Territórios de Existências Negras Femininas, foi organizado por Selma, a convite da filósofa e escritora Djamila Ribeiro, com os selos Feminismos Plurais e Sueli Carneiro. A publicação é uma obra coletiva, feita com 18 mulheres, de 12 estados e reúne depoimentos de mulheres quilombolas em vários temas, como defesa do território, violência doméstica, pluralismo jurídico, saberes tradicionais e trajetória acadêmica.
“O livro vem nessa pegada de contar a nossa história, que é invisível, que às vezes não interessa, que não tem likes, não dá curtida. Mas é o modo de viver daquelas mulheres que estão na academia, na escola, na roça, nos seus lugares de afazeres”.
Autocuidado
O livreto Mulheres Quilombolas - Escrevivências entre a Memória e o Coração é uma publicação organizada após uma dinâmica feita com mulheres quilombolas, onde elas tinham que falar bem de si mesmas. Dealdina conta que uma folha de papel foi entregue para cada uma e até o fim do dia elas precisavam concluir a atividade. “Acabou o dia e todo mundo entregou a folha em branco. Porque a gente sabe das nossas qualidades, mas quando a gente coloca no papel, a gente é arrogante, a gente tá se achando. Então a gente tem medo de falar de nós mesmas”.
Então, ela e Maryellen Crisóstomo – jornalista e integrante da Conaq –, com quem realizou a atividade, resolveram mudar o direcionamento e pediram para que as mulheres escrevessem uma carta de amor endereçada a elas mesmas, “para ver se era mais fácil, mas também era difícil”.
“A gente cuida de tudo e de todos o tempo todo, e aí a gente pergunta quem é que cuida da gente? Quem cuida também precisa ser cuidada. Quem ama também precisa ser amada. Quem deseja também precisa ser desejada. O amor, propriamente dito, também nos é negado, é como se nossos corpos não merecessem ter direito a esse amor. Nós somos muito violentas com nós mesmas, nós somos muito desrespeitosas com nós mesmas, a gente pratica muita violência contra nós. E em um processo da gente ter que se desarmar, tentar não se violentar, também é complicado pra gente”.
Direito à vulnerabilidade
Os passos de Selma Dealdina foram, e são, forjados com muitas referências de mulheres negras [confira alguns nomes ao final do perfil], que ela poderia passar horas e horas citando. Mas, para quem já viajou pelo mundo, seu lar continua sendo o principal ponto de partida.
“A maior referência pra mim é a minha mãe”, diz a liderança.
Dona Rosa dos Santos Dealdina foi ministra de eucaristia, rezadeira de ladainha e benzedeira. Faleceu em 2020, pouco antes do lançamento do livro “Mulheres Quilombolas - territórios de existências negras femininas”.
“Para mim, pessoalmente, foi um momento muito difícil para terminar o livro, porque a gente descobriu que minha mãe estava com câncer em estado terminal. Eu tinha que fazer a apresentação e eu não consegui escrever. Parei exatamente na frente do nome da minha mãe, porque eu falava com ela do livro, mas não sabia se quando a gente lançasse ela estaria viva ou não. E aí eu não sabia se em frente ao nome dela eu colocava ‘em memória’”.
Esse foi um momento muito duro para Selma. Além do falecimento de sua mãe, ela precisou lidar com os estereótipos impostos às vidas de mulheres negras. A emoção expressada durante a entrevista demonstrou como ainda é difícil pensar no momento em que teve que lidar com a perda da maior referência de sua vida.
“Porque cobram da gente o tempo todo que a gente seja forte, que a gente seja guerreira, que a gente esteja o tempo todo pronta para a luta. A gente não foi ensinada a demonstrar fraqueza. Demonstrar fraqueza, fragilidade, chorar é sinal de que a gente tá se diminuindo e nesse compasso a gente vai pulando várias etapas importantes da nossa vida”.
Militância
Articuladora política e membro do coletivo de mulheres da Conaq, Selma conheceu o movimento por influência da irmã, Domingas Dealdina, que foi a primeira coordenadora da Conaq no estado do Espírito Santo.
“A Conaq para mim é a segunda pele. Ela é mais do que uma organização política. Ela é a bandeira que nos guia, porque todas as políticas públicas que a gente tem são graças a esse movimento, desde a vacina que eu tomei em 2021, à certificação do meu território em 2006, a diretriz curricular das escolas, tudo eu devo a esse movimento”.
“Eu tenho muito orgulho de fazer parte desse movimento [...] uma dinâmica bem importante para cuidar e para ajudar não só a valorização da identidade quilombola, mas também dos territórios, porque a nossa maior luta é pelo resgate dos territórios quilombolas”
A Conaq é um movimento que tem 28 anos, atua em 24 estados, em todos os biomas do Brasil. Além disso, está se expandindo internacionalmente para fortalecimento das comunidades afro rurais e da identidade pela terra, com países como Honduras, Colômbia, Equador, México, Argentina, Chile e Bolívia.
“Eu tenho muito orgulho de fazer parte desse movimento. De estar na articulação política, de contribuir para o seu crescimento. Eu sempre digo que a Conaq é igual a um pão, vai crescendo gradativamente. Por isso que eu acho que a gente tem a nossa pauta bem coesa, uma dinâmica bem importante para cuidar e para ajudar não só a valorização da identidade quilombola, mas também dos territórios, porque a nossa maior luta é pelo resgate dos territórios quilombolas”.
Além do currículo
No decorrer de sua trajetória, Selma Dealdina conquistou diversos títulos e ocupou vários espaços. Hoje, quando se apresenta, ela faz um relato extenso de seu currículo, projetos e atividades em que está envolvida, e em quatro ou cinco palavras alguma característica além desse universo.
Mas a filha de Dona Rosa e do Senhor Manoel carrega beleza, humor, sensibilidade e acolhimento. A irmã de Domingas, Matilde, Célia, Rogério e José Fernando nunca pega a frase de alguém sem dar os devidos créditos. A neta do Senhor Feliciano é uma grande apreciadora de séries policiais. A tia da Isabella, da Kayla, do Luiz Henrique e do Akeen sempre faz referência a outras mulheres negras que vieram antes dela e que também são suas contemporâneas. A esposa do Osmani é transparente com seus sentimentos e é possível saber quase que exatamente o que ela está pensando. A Selma Dealdina já não se contenta mais com pouco.
“A gente nunca atravessa a porta e volta da mesma forma, a gente volta diferente, mais empoderada, cobrando mais. Aí a gente entra no time das chatas, né? Que tá sabendo demais, que é demais. Porque a gente se contentou com um pedaço e descobriu que pode ter mais. E a gente vai atrás desse pedaço maior e começa a incomodar. Se a gente tá incomodando então a gente tá fazendo certo”.
“E eu vou me descobrindo. Algumas coisas eu continuo a mesma, não tenho paciência, sou inteiramente sem paciência, paciência zero. A gente vai aprendendo também a lidar com muitas coisas e eu quero ter o direito de não querer lidar, de não querer fazer, de dizer ‘não’. Mas eu tô gostando muito dessa fase que eu tô vivendo agora. Vou me descobrindo para saber quem eu sou. Vou me construindo aos poucos, cada dia um tijolinho”.
Saudações a todas as mulheres negras citadas por Selma Dealdina:
Rosa dos Santos Dealdina, Célia Dealdina, Domingas Dealdina, Matilde Dealdina, Dona Nilma Bentes, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro, Givânia Maria da Silva, Vercilene Dias, Mãe Sebastiana, Misselen, Marielle Franco, Mãe Bernadete, Ágatha Vitória, Dona Procópia, Rosinha, Dona Teodora, Esther, Carolina Maria de Jesus, Mãe Tiana, Núbia, Jane, Ivone, Adda Caetano, Bárbara Bombom, Sandra Pereira Braga, Isabel Cristina, Jurema Werneck, Lúcia Xavier, Bianca Santana, Regina Adami, Wânia Santanna, Vanda Menezes, Suelane Carneiro, Carla Akotirene, Joice Berth, Ângela Davis, bell hooks, Chimamanda Ngozi, Vilma Reis, Valdecir Nascimento, Dona Zélia Amador, Darlah Farias, Flávia Oliveira, Lucely de Cedro, Conceição Evaristo, Maryellen Crisóstomo.