Propostas preveem anistias a ocupações ilegais, colocam em risco fontes de água e ecossistemas da Mata Atlântica, já muito ameaçada. Matérias seguem para Comissão de Constituição e Justiça
Ruralistas e bolsonaristas aprovaram, ontem (23), numa mesma sessão da Comissão de Meio Ambiente (CMADS) da Câmara, três projetos que, se convertidos em lei, vão ampliar o desmatamento e colocar em risco nascentes e mananciais de água, segundo especialistas e ambientalistas.
Em minoria, a oposição não conseguiu reduzir os danos incluídos nas propostas. Nas últimas semanas, já vinha tentando obstruir as votações e ganhar tempo, mas os instrumentos regimentais para isso foram gradualmente se esgotando.
“Todo dia estão colocando na pauta um ‘saldão de final de ano’ com matérias ruins. Trabalhamos na perspectiva de fazer acordos, para diminuir o tamanho do dano. Não é fácil”, lamentou o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), ao final da sessão. Ele alerta que a pressão para a aprovação dos projetos em outras comissões e plenários, da Câmara e do Senado, continuará até o fim das atividades legislativas, em meados de dezembro.
A votação na CMADS ocorreu na iminência da divulgação, nos próximos dias, de um novo recorde na taxa oficial de desmatamento na Amazônia.
Projetos que fazem parte do que foi apelidado de “pacote da destruição" também entraram nas negociações entre ruralistas e petistas pela aprovação da “PEC da Transição”, que pretende garantir espaço orçamentário para benefícios sociais e investimentos no ano que vem.
Mais desmatamento
Uma das propostas aprovadas ontem na CMADS, o Projeto de Lei (PL) 364/2019, legaliza desmatamentos antigos e permite novas derrubadas em vegetações campestres de todo país.
Esses ecossistemas são fundamentais para a manutenção de nascentes e aquíferos, e sua destruição pode colocar em risco o abastecimento de água de milhões de pessoas. Além disso, o projeto permitirá desmatar áreas da Mata Atlântica, o bioma mais devastado do país, com cerca de 12% de cobertura vegetal original preservada.
A proposta segue agora para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e tem regime conclusivo, ou seja, se não for aprovado um requerimento para que passe ao plenário da Câmara, vai direto ao Senado.
“A Mata Atlântica sofreu um enorme revés no dia de hoje. Nós perdemos [a proteção de] uma das fisionomias mais sensíveis, mais frágeis: os ‘campos de altitude’, que estão protegidos hoje pela Lei da Mata Atlântica, justamente pelos serviços ecossistêmicos que prestam, na segurança hídrica, no microclima e na manutenção da biodiversidade”, comentou Malu Ribeiro, diretora de Políticas Públicas do SOS Mata Atlântica. “Nós temos que sair daqui, reverter essa votação no plenário da Câmara e, depois, no Senado e, se for o caso, até no Supremo Tribunal Federal”, afirmou (veja vídeo abaixo).
⚠️ A diretora de Políticas Públicas do @sosma, Malu Ribeiro (@Gotinhas), explica o que pode acontecer se o PL 364/2019 for convertido em lei.
— socioambiental (@socioambiental) November 23, 2022
A proposta faz parte do PACOTE DA DESTRUIÇÃO e foi aprovada na Comissão de Meio Ambiente da @camaradeputados hoje.#SaldãoDoDesgoverno pic.twitter.com/LaxwR75amw
Negociações
As negociações sobre o projeto arrastaram-se por semanas. O relatório inicial do deputado Nilto Tatto (PT-SP) rejeitava o projeto original, de Alceu Moreira (MDB-RS), que retirava dos “campos de altitude” a proteção conferida pela Lei da Mata Atlântica, aplicando a eles as normas menos restritivas do Código Florestal. O objetivo de Moreira era “consolidar”, ou seja, anistiar e legalizar desmatamentos irregulares desse tipo de vegetação realizados até 2008, e só na Mata Atlântica.
Com a pressão da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), propostas mais radicais e abrangentes contra a conservação foram incluídas nas conversas ou apensadas ao projeto original.
Na sessão de ontem, a maioria ruralista derrubou o parecer de Tatto e, na última hora, aprovou um substitutivo de José Mário Schreiner (MDB-GO) com uma redação capciosa. O texto fixa uma data para anistiar antigos desmatamentos, mas, em seguida, torna sua aplicação inócua, e ainda abre brechas para mais destruição de ecossistemas “não florestais" em todos os biomas.
“Nas formas de vegetação nativa predominantemente não florestais, tais como os campos gerais, os campos de altitude e os campos nativos, consolida-se a área utilizada anteriormente a 22 de julho de 2008 ainda que não tenha ocorrido a conversão da vegetação nativa, independente do Bioma em que esteja localizado”, diz um dos dispositivos aprovados.
“Se a vegetação nativa já era utilizada como pastagem, seria um enorme contrassenso obrigar o produtor a substitui-la”, argumentou Schreiner. “As medidas que propomos irão uniformizar os entendimentos e evitar interpretações equivocadas, ocasionando segurança jurídica e tranquilidade para o produtor”, concluiu, em seu relatório.
Ameaça a abastecimento
Na sessão de ontem, também foi aprovado o relatório do PL 2.168/2021, igualmente de autoria de Schreiner. O projeto dá caráter de “utilidade pública e interesse social” a obras e desmatamentos destinados à construção de reservatórios para irrigação e abastecimento do gado em Áreas de Preservação Permanente (APPs) de cursos de água. A medida dispensa a licença ambiental para essas intervenções, abrindo caminho ao barramento indiscriminado de córregos e rios.
“Um projeto como esse, se virar lei, pode gerar instabilidade em todas as bacias hidrográficas do país e alterar o fluxo e a vazão dos rios brasileiros que sofrerem barramento desordenado”, critica Kenzo Jucá Ferreira, assessor do ISA.
“Os produtores rurais já perceberam que as mudanças climáticas são uma ameaça ao fornecimento de água e querem sair na frente na disputa por esse recurso. O problema é que isso vai afetar todos os outros tipos de uso da água, como abastecimento humano, a indústria e a geração de energia, por exemplo”, ressalta (veja vídeo abaixo).
Outra BOIADA do PACOTE DA DESTRUIÇÃO aprovada na Comissão de Meio Ambiente da @camaradeputados foi o PL 2.168/2021, que permite barrar indiscriminadamente cursos de água e ameaça até o abastecimento humano.@KenzoJuca, assessor do ISA, fala sobre a proposta.#SaldãoDoDesgoverno pic.twitter.com/YygyNqoe4X
— socioambiental (@socioambiental) 23 de novembro de 2022
Sem trazer dados e evidências científicos, Schreiner e outros ruralistas dizem que o fim das restrições à construção dos reservatórios não trará impactos relevantes. Eles reconhecem que o objetivo do projeto é garantir água para a agropecuária diante de secas cada vez mais frequentes.
Um acordo realizado na terça (15) da semana passada, depois de uma batalha de horas entre ruralistas e oposição, permitiu que o texto de Schreiner fosse lido no mesmo dia e votado sem discussão ontem. Igualmente, em minoria, os oposicionistas não conseguiram melhorar a redação, mesmo depois de muita pressão. O PL 2.168 segue para a CCJ em caráter conclusivo e, se for aprovado, vai ao Senado.
Fraude no transporte de madeira
Por último, foi aprovado na CMADS o PL 195/2021, que altera o Código Florestal e é de autoria de Lúcio Mosquini (MDB-RO). O projeto amplia a quantidade de madeira que pode ser extraída da Reserva Legal (RL) de pequenas propriedades rurais, de 15 m3 para 40m3 ao ano. Também dispensa a fiscalização do transporte dessa quantidade máxima de matéria-prima entre as propriedades de “parentes de primeiro grau”. Nesse caso, não seria exigido o Documento de Origem Florestal (DOF) e nem haveria qualquer registro do destino da madeira.
Para ambientalistas e oposição, a proposta abre brecha para a fraude, permitindo “esquentar” matéria-prima extraída e transportada ilegalmente. Eles queriam que o relator, Evair de Melo (PP-ES), incluísse no texto a obrigatoriedade do envio de uma declaração aos órgãos ambientais com os dados sobre a extração e transporte da madeira.
Os ruralistas contra-argumentaram que vários produtores rurais não têm acesso à internet. Afinal, Melo previu apenas que o transportador da madeira tenha consigo uma declaração de papel, com informações básicas, como nome, endereço e CPF do responsável.
“Ao permitir o transporte [de madeira] para outra propriedade, com esse acréscimo de volume, há uma preocupação que isso seja utilizado para o comércio ilegal de madeira”, reforçou o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ). Ele explicou que um documento de papel, escrito e assinado por qualquer pessoa, pode ser facilmente fraudado. “Uma pessoa de boa-fé vai fazer a declaração e irá respeitar os 40m3 anuais. Quem quiser se utilizar disso [irregularmente] pode sair todo dia com os 40m3 e só trocar a data da declaração”, salientou.