Impactos da hidrelétrica de Belo Monte, como o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, prejudicaram hábitos alimentares nas aldeias
Wàt tynondem (Peixe assado enrolado na folha da bananeira), Karak’kuréum (taioba), e Onatji Magarapa (Bolo assado de milho) —) esses são os nomes de três pratos tradicionais do povo indígena Arara que agora fazem parte do cardápio da merenda escolar em quatro escolas situadas nas margens do Rio Iriri, em Altamira, Pará.
A inclusão desses alimentos na merenda é resultado de um trabalho de pesquisa-ação realizado no Programa de Pós graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural da Universidade de Brasília (UnB) que contou com apoio do Instituto Socioambiental (ISA).
A pesquisa conectou os saberes dos mais velhos com a sistematização das informações pelos mais jovens junto às escolas da Terra Indígena Arara. O resultado foi a disponibilização de uma alta diversidade de alimentos tradicionais para essas instituições de ensino, a inserção desses alimentos nos programas alimentares e o fortalecimento da cultura Arara. Confira no vídeo:
Durante o último ano, os indígenas entregaram um total de 56 variedades de alimentos tradicionais dentro do território, beneficiando 211 estudantes Arara.
Os anciãos desempenharam um papel fundamental, compartilhando seus vastos conhecimentos sobre coleta, pesca e preparação desses alimentos com as gerações mais jovens, e promoveram a valorização das tradições ancestrais.
A conexão da pesquisa com as políticas públicas alimentares estava prevista desde o início do trabalho. Em 2023, a alimentação tradicional passará a ser integrada à alimentação escolar da TI Arara por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), com expectativa de implementação pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) — ambos do governo federal em parceria com a Prefeitura de Altamira.
A inserção dos alimentos tradicionais e locais nos processos de compras públicas, especialmente na alimentação escolar, é resultado do diálogo interinstitucional promovido pela Comissões de Alimentos Tradicionais dos Povos (Catrapovos), tanto nos estados quanto nacionalmente. As comissões vêm emitindo pareceres e notas técnicas com a finalidade de adequar as políticas e programas para viabilizar seu acesso pelos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais de acordo com seus modos de vida.
A Nota técnica nº 01/2017 do Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas desempenhou papel fundamental para que as escolas passassem a adquirir produtos diretamente das comunidades, e vêm conectando os processos governamentais às realidades locais. No entanto, foi somente em 2020 que o MPF, por meio de outra nota, adequou a realidade do Amazonas para todos os povos e comunidades tradicionais do Brasil. Essa ação democratiza o acesso a políticas públicas, dando oportunidade de geração de renda nas comunidades rurais e favorecendo para que a alimentação escolar fornecida respeite a ancestralidade e a cultura de povos indígenas e comunidades tradicionais.
O movimento marca um notável avanço em relação ao cenário anterior, que limitava a alimentação tradicional a chegar no prato azul, utensílio característico das cozinhas e refeitórios escolares no Brasil onde é servida a alimentação escolar.
A retomada da alimentação saudável dos Arara é urgente, uma vez que há aumento progressivo de doenças crônicas derivadas da má alimentação. As escolas têm sido um dos principais vetores da introdução de alimentos industrializados nas comunidades.
Com a construção da hidrelétrica de Belo Monte, os Arara vivenciaram aumento no consumo de alimentos industrializados em decorrência da execução de ações do plano emergencial e do plano básico ambiental da hidrelétrica, o que fez com que a população desenvolvesse doenças devido à má alimentação. Segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) pela reportagem do InfoAmazonia, de janeiro 2014 até junho de 2023 foram registrados 45 casos de hipertensão e de diabetes entre os Arara.
Política para alimentação de verdade
O PAA é uma iniciativa do governo federal que compra alimentos diretamente de agricultores familiares e de comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas. Esses alimentos adquiridos são então destinados a programas sociais, como merendas escolares, hospitais, creches e instituições de assistência social.
Este ano, a Rede Terra do Meio, organização que reúne sete povos indígenas, moradores de três Reservas Extrativistas e agricultores familiares da região do Médio Xingu, da qual os Arara da TI Arara fazem parte, submeteram ao edital do PAA um projeto de R$1,5 milhões de reais para destinar alimentos produzidos localmente para as 90 escolas municipais que atendem os mais de 2.500 estudantes desse território. Dessa maneira, os Arara vão fornecer seus alimentos tradicionais em suas escolas durante o ano de 2024. A expectativa é de que os outros povos que fazem parte da Rede Terra do Meio também incorporem sua diversidade na alimentação escolar.
Leonardo de Moura, assessor técnico do ISA, e pesquisador que desenvolveu a pesquisa mencionada, explica que essa permissão também é uma medida de fortalecimento cultural, uma vez que os jovens passaram a resgatar o sabor da própria cultura, adormecida com os mais velhos.
“Num momento de mudança climática e de erosão da diversidade, esse conhecimento é muito valioso. O que se come na floresta tem história, tem tradição e modos de fazer que podem resolver problemas do futuro. A escola pode ensinar as crianças que o alimento tradicional é bom e passar a ser um espaço em que se fomenta e fortalece a transmissão do conhecimento alimentar entre as gerações.”, disse Moura.
Além de promover a alimentação saudável, o projeto envolveu os jovens no registro das práticas de coleta de alimentos e pesca tradicionais do povo Arara. O material audiovisual revela a variedade de alimentos, preparos e conhecimentos tradicionais que podem ser incorporados à alimentação escolar da Terra Indígena Arara.
A retomada da pesca tradicional
A alimentação escolar tradicional pode ser integrada a outras atividades educacionais da escola, como foi o caso da entrega dos peixes Tybom (Jiju) e Ótpa (Tamoatá). Seis jovens da aldeia Iory, que nunca antes haviam participado da captura de peixes na floresta ou conhecido as técnicas de captura empregadas pelos conhecedores mais velhos, tiveram a oportunidade de acompanhar essa atividade e aprender com ela.
Toitji Arara, o ancião mais velho da Aldeia Laranjal, na TI Arara, participou da atividade ensinando os mais jovens o murot - nome da armadilha para pegar o peixe - e ficou emocionado com a possibilidade de passar esse conhecimento.
“Eu fui criado fazendo tudo isso, mas muitas crianças não sabem ainda e é por isso que estamos ensinando. Não vamos perder isso, não vamos perder a nossa pesca”, disse o ancião Toitji.
Poucos dias após a experiência, a comunidade Arara organizou a festa Tybombé, coincidentemente durante a temporada do Tybom (Jiju), algo que não acontecia há décadas. É inegável que o resgate da prática tradicional de captura do Tybom, esquecida há anos, desempenhou um papel fundamental no fortalecimento da cultura do povo Arara.
As crianças aprendem o murot com os mais velhos da sua Aldeia|Priscila Tapajowara/ISA
“Essa ação foi tão significativa que a captura do Tybom para a alimentação escolar gerou um diálogo na escola e queremos repetir a atividade na próxima estação seca, desta vez com a participação mais ativa da escola, entrando na agenda escolar de ensino”, disse o diretor responsável pelas escolas do Polo Arara, Renisson Batista de Freitas.