Equipe do ISA planta mais de 350 hectares de florestas no Mato Grosso em 2022 e cria ilhas de verde em território desmatado pelo agronegócio
“Desmatar é fácil, o difícil é fazer a floresta crescer de novo”, diz Artemizia Moita. A bióloga se define como predestinada - devido ao nome vegetal, por assim dizer. No fim de novembro, ela conduziu a equipe do Instituto Socioambiental (ISA) e parceiros pelo mundo da restauração florestal na Fazenda Santa Cândida, da Agropecuária Fazenda Brasil, em Barra do Garças (MT). Moita já restaurou centenas de hectares de florestas em fazendas por todo o Mato Grosso dominadas pela soja e outras monoculturas, além da agropecuária.

Plantar florestas vai ser uma das tarefas essenciais para o Brasil cumprir suas metas de reduzir 50% das emissões até 2030 e zerá-las até 2050, segundo compromisso estabelecido na Conferência do Clima da ONU em 2021 (COP-26). Em seu discurso de posse, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, destacou a restauração florestal como uma alternativa econômica sustentável e potente. “O Brasil tem a meta de recuperar 12 milhões de hectares de áreas degradadas, com potencial de gerar 260 mil empregos”, disse ela.
Fazer uma floresta crescer onde antes havia pasto ou monocultura, porém, não é uma tarefa simples, ao contrário do que possa sugerir o senso comum. São várias técnicas possíveis e cada uma delas exige um aprimoramento minucioso. Moita trabalha com isso há 23 anos e, depois de testar muitas delas, se decidiu pela semeadura direta, ou a muvuca de sementes, técnica que o ISA ajudou a aprimorar, executar e para a qual fornece assistência técnica para plantios da região do Xingu e Araguaia, no Mato Grosso.

Estamos em um dos celeiros da Fazenda Santa Cândida e Moita sobe numa boleia presa na traseira de um trator. A carga: mais de dois mil quilos de sementes florestais e adubação verde de 87 espécies diferentes. Estão com ela três trabalhadores da fazenda designados para a missão. Orientados por ela, todos começam a abrir os sacos e despejar o conteúdo sobre o chão da carroceria. “Eu recomendo que todos tirem as botas e fiquem de meia, senão entra semente por todo o lado”, ela lembra.
As sementes aladas, como os ipês e carobas, só devem ser despejadas pouco antes do plantio para que não saiam voando pelo caminho. Depois de jogar todo o conteúdo dos sacos, Moita pega uma pá e começa a misturar as sementes, seguida por seus assistentes, que usam as mãos.
As várias espécies tem que estar todas bem misturadas. Cada uma delas tem uma função diferente, e um momento certo para despontar. Primeiro, são as sementes da adubação verde: o feijão de porco, a crotalaria, o feijão-guandu. Dessas sementes, vão crescer arbustos baixos, que fazem sombra na área. É a melhor maneira de matar a braquiária, uma espécie de capim, e outras gramíneas, bem como de nitrogenar o solo naturalmente, abrindo espaço para as espécies pioneiras - como mamoninha, carvoreiro e lobeira.
Depois de seis anos, as pioneiras vão dar lugar para as primeiras espécies nativas, ou espécies-clímax, como o jatobá, os ipês ou a copaíba, que formam a floresta consolidada.
Por isso, a quantidade de sementes de cada espécie envolve um cálculo apurado, que foi sendo aprimorado nos últimos anos. A quantidade de sementes totais, adubação verde e nativas, por exemplo, foi diminuindo ao longo dos anos, de 150 kg para 70 kg de sementes por hectare.
“O misturado tá bom quando aparece o feijão, o branquinho”, Moita orienta. Quando a mistura fica boa, todos se sentam sobre a grossa camada de sementes. O trator onde está presa a boleia começa a andar em direção à área do plantio.
Moita trabalha no setor de sustentabilidade do grupo Agropecuária Fazenda Brasil (AFB). Quando uma nova fazenda é comprada, ela e sua equipe identificam áreas que, por causa da legislação ou porque não são produtivas, podem ser restauradas e tornar-se floresta outra vez. “Comprou, resolve o problema ambiental que tem nela”, afirma. Um dos casos mais comuns é a recuperação de nascentes. Um solo degradado, sem floresta, pode acabar com uma nascente. Quando você planta uma floresta, aos poucos, essa nascente vai voltando a minar água e cumprir sua função ecológica.
O Instituto Socioambiental (ISA) fornece assessoria para mais 30 plantios no Mato Grosso, Pará e São Paulo, entre fazendas, assentamentos, terras indígenas e unidades de conservação. Ao todo, já foram 4 mil hectares convertidos em floresta. Desde 2006, quando esse trabalho começou, foram muitos aprendizados. Cada proprietário rural tem o seu tempo para compreender a restauração ecológica e seus benefícios, que vão além do cumprimento da legislação ambiental. Quanto mais engajados os atores da restauração, melhores são os resultados alcançados.
“O que é uma floresta madura? Difícil falarmos o tempo exato que podemos considerá-la madura, se é com com 10 anos, 100 anos, 1000 anos. É importante que ela se estabeleça e comece a cumprir a parte ecológica dela”, explica Guilherme Pompiano, da equipe de restauração florestal do ISA. Na própria Fazenda Santa Cândida, depois de um ano, já começou a aparecer onça, capivara, jacaré e tamanduá. É a floresta começar a voltar que os animais voltam junto.

O trator arrastando a carreta de sementes chega à área do plantio. São 32 hectares que antes serviam como área de pastagem. O solo foi preparado com várias gradagens, para inibir o crescimento do pasto por um mês. É o tempo da adubação verde despontar e impedir que as gramíneas voltem a invadir. O grupo se dividiu em dois: uma parte da expedição vai fazer o plantio a pé, a outra no trator.
Os que vão trabalhar a pé se posicionam em uma linha, com sacolinhas cheias de sementes. A cada passo, distribuem um punhado de sementes variadas, simulando uma plantadeira. O grupo de Moita segue para o outro lado na boleia. Dois de cada lado e um nos fundos, saem jogando punhados de sementes no solo enquanto o trator vai andando de um lado para o outro. A ideia é distribuir toda essa carga de sementes ao longo de 32 hectares, cuidando para nenhuma área ter muito mais sementes que a outra.
Ao fim do dia de trabalho, as sementes foram espalhadas. Agora, é deixar a natureza agir: o plantio é sempre feito em época de chuvas (outubro-dezembro), para garantir o estabelecimento da futura floresta. Moita acompanhará o crescimento e o desenvolvimento daquela área mas, na maior parte das vezes, a natureza faz seu trabalho sozinha. “Na minha carreira, eu já fiz muito plantio com muda. Mas hoje abandonei completamente a muda e só trabalho com a semeadura direta, com a muvuca. Para plantio em escala, é o melhor custo-benefício”, diz.


Florestas de quatro (esq.) e doze (dir.) anos na Fazenda Santa Cândida, em Barra das Garças (MT) 📷Manoela Meyer/ISA
Depois do plantio, Moita nos mostra áreas em diferentes estágios de desenvolvimento. A partir de um ano, a adubação verde já está bem consolidada. Entre os arbustos, já é possível ver espécies pioneiras e até pequenas mudas de nativas que ficaram centenas de anos no local. Na área que tem cerca de quatro anos, as pioneiras já estão crescendo. Ainda tem capim, mas o crescimento das pioneiras logo fará sombra o suficiente para acabar com ele. Em casos mais graves, que o capim é muito resistente, Moita solta alguns bois na área - nessa fase, pode ser uma técnica para acabar com o capim.
A partir dos 6 anos, o solo já se consolida como o de uma floresta: sem capim, coberto de folhas e material orgânico. Entre as pioneiras, as nativas secundárias e clímax já estão crescendo, como o pé de buriti da foto abaixo. Moita nos conduz então para uma floresta consolidada: as pioneiras estão morrendo com o crescimento das nativas, e as espécies-clímax já estão em equilíbrio, resgatando paisagens naturais dessa região de transição entre o Cerrado e a Amazônia. O fluxo natural de dispersão de sementes e enriquecimento florestal já acontece, assim como serviços ambientais ligados à floresta, como evaporação/transpiração, enriquecimento do solo e habitat para espécies nativas.

De onde vem tanta semente?
Plantios como o de Moita e tantos outros que acontecem no Mato Grosso só são possíveis graças à Associação Rede de Sementes do Xingu. A Rede forneceu as mais de 2 toneladas de sementes utilizadas no plantio da Fazenda Santa Cândida e faz o mesmo para todos os outros plantios apoiados pelo ISA. Uma coisa não funciona sem a outra. Para ter floresta, é indispensável o trabalho dos mais de 600 coletores de sementes em todo o Mato Grosso que, ao longo dos 16 anos da rede, já coletaram 325 toneladas de sementes.
A coleta de sementes, além de ser a base para milhares de hectares de florestas, é uma alternativa de renda para dezenas de famílias urbanas e rurais. É o caso de Vera Alves da Silva Oliveira, 52 anos. Depois de muitos anos trabalhando como empregada doméstica, Vera mudou de profissão e, com os ganhos obtidos no trabalho com a coleta e venda das sementes, conseguiu ter uma casa própria, um carro e uma moto.
Sua filha, Milene Alves, 24, seguiu seus passos como coletora. E, com o interesse despertado pela Rede, decidiu estudar biologia na graduação e no mestrado. Assista aqui ao vídeo sobre a comemoração dos 15 anos da Rede de Sementes do Xingu:
“Cada um tem seu ritmo, seu jeito de colher semente”, afirma Bruna Dayanna, diretora da Rede. O coletor Vanderlei Augusto, por exemplo, sobe na árvore, coloca uma lona no chão e balança os galhos. Assim, dezenas de sementes de carvoeiro caem ali, proporcionando grandes quantidades dessa espécie. E enquanto alguns, como a Vera Oliveira, preferem beneficiar a semente retirando-as do envoltório com uma roçadeira manual, as Yarang, grupo de coletoras indígenas do povo Ikpeng, preferem beneficiar uma a uma com uma tesoura.
Outro ponto interessante é o sentido que cada um dá para a Rede. As Yarang, por exemplo, entendem que o trabalho de coleta de sementes é uma ponte para restaurar as florestas do entorno e, por isso, exigem que suas sementes sejam utilizadas apenas para restauração florestal, e não em outros fins, como artesanato ou pesquisa. As sementes coletadas pela ARSX já recuperaram 8 mil hectares em plantios com parceiros - 27 milhões de árvores.

A sede da ARSX fica no centro de Nova Xavantina. Ali, além da parte administrativa e das salas onde trabalha a equipe fixa, tem também a Casa de Semente. Como essa, existem outras 10 Casas de Sementes espalhadas pelo Estado. Nelas, passam cerca de 30 toneladas de sementes por ano.
Hoje, a demanda de semente é previamente contratada, ou seja: os coletores só coletam espécies e quantidade de sementes que tem fim certo. Isso permite uma maior sustentabilidade da Rede.