Depois de uma década, reunião da rede transfronteiriça Canoa (Cooperação e Aliança no Noroeste Amazônico) aconteceu no Alto Rio Tiquié, no Amazonas
O Rio Tiquié tem suas cabeceiras na região de chavascais chamada Ewura, já na Colômbia, onde estão algumas das nascentes de dois dos maiores rios da bacia amazônica - o Negro e o Japurá. A floresta que margeia o alto curso do rio é vigorosa, drenada por cursos de águas frescas e limpas - são paisagens manejadas há gerações por comunidades de indígenas bará e tuyuka.
Distante cerca de cinquenta quilômetros de suas nascentes, o Tiquié cruza a fronteira e segue Brasil adentro, sempre resguardado por comunidades indígenas até sua foz no Uaupés. Esse é um dos rios mais povoados da região, habitado por populações de língua tukano e naduhupy. São cerca de 5 mil indígenas vivendo na bacia desse rio de pouco mais de 450 quilômetros de extensão.
Nesse território, encontros abrangendo comunidades e associações indígenas, e parceiros não-indígenas, dos dois lados da fronteira, chamados Canoitas, aconteceram com frequência entre 2005 e 2014, tendo sido interrompidos devido a conjunturas políticas nacionais e outras prioridades dos processos locais de cada país.
Veja como foi a edição de 2014
Naquele período, a primeira fase das Canoitas, houve trocas de experiências e intercâmbios sobre projetos e iniciativas que eram desenvolvidas nos campos da educação escolar comunitária, manejo ambiental, mapeamentos dos territórios, pesquisas indígenas e interculturais, bem como temas relacionados às mulheres (agricultura e segurança alimentar, práticas de cuidado e proteção), circulando conhecimentos entre seus participantes, animando e inspirando as discussões locais, em cada associação.
No reencontro, entre 16 e 20 de maio, juntaram-se pessoas que participaram das trocas passadas, mas também jovens lideranças trazendo novas ideias, com o objetivo de construir conjuntamente estratégias transfronteiriças atuais para fortalecer o manejo sustentável na Bacia do Rio Tiquié.
Reuniram-se em Bellavista, no igarapé Abiu, afluente do Alto Tiquié, cerca 130 pessoas de mais de 25 comunidades - do Brasil, procedentes de treze, bem como equipes da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e do Instituto Socioambiental (ISA); da Colômbia, um número equivalente, bem como os parceiros da Fundación Gaia Amazonas (FGA).
Dez anos depois
Nesse período de dez anos sem encontros, muitas coisas mudaram, e todos queriam entender a situação do outro lado da fronteira. No lado brasileiro, foram desenvolvidos os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) das Terras Indígenas e das coordenadorias da FOIRN; posteriormente, os protocolos de consulta, trabalho que mobilizou grandes esforços e participação do movimento indígena organizado durante cinco anos.
Os AIMAs do Rio Tiquié, que estavam presentes em peso, trabalharam nos levantamentos de dados e discussões para elaboração dos PGTAs, mas também seguiram suas pesquisas sobre os ciclos anuais e boas práticas de manejo, em anos em que os extremos climáticos se repetiram, como previsto nos modelos de mudanças climáticas.
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A rede dos AIMAs, embora impactada pela pandemia, também atuou ao valorizar os conhecimentos indígenas em seu enfrentamento, através dos encontros de conhecedores, das proteções rituais e dos remédios feitos com plantas.
Houve grande interesse dos participantes brasileiros em saber sobre o processo de constituição do governo próprio no território do Tiquié do lado colombiano. Explicaram que, a partir da Decreto Lei 632, de abril de 2018, foi reconhecido aos territórios indígenas o direito de funcionar como entidades político-administrativas. Essas entidades territoriais indígenas (ETIs), uma vez formadas, poderão exercer o poder público com autonomia e autodeterminação, "de acordo com os princípios e fundamentos culturais, a fim de alcançar o bem-viver de seus habitantes. O objetivo principal é manter vivos os conhecimentos tradicionais, a cultura e as tradições dos grupos étnicos; e proteger e cuidar de todos os habitantes e do território".
Ao passo que, no Brasil, as associações indígenas são organizações não-governamentais, participando da sociedade civil; do lado colombiano, elas estão se constituindo como entidades governamentais, parte da estrutura político-administrativa do estado colombiano, recebendo recursos orçamentários públicos. Esse processo, porém, ainda não se completou. Atualmente estão numa fase que chamam de “diálogo intercultural”.
No caso do Tiquié, o governo indígena contempla três instâncias: o tradicional, formado por conhecedores; o comunitário, composto pelos dos capitães das comunidades; e o territorial. Nesse último a instância principal é o Consejo Indígena, constituído por autoridades e sabedores tradicionais e lideranças mulheres.
Operacionalmente, há o representante legal do Consejo Indígena. Ele coordena o Comité executivo (formado por uma secretaria, um setor fiscal e uma tesouraria) e um conjunto de secretarias (das mulheres, de saúde, de educação, de território e ambiente, de soberania alimentar e da juventude). Esse organograma geral foi apresentado e os responsáveis por cada setor fez sua apresentação.
Jorge Gonzales (assessor da FGA para o Território Tiquié) explicou que o processo de reconhecimento do governo do território indígena começou mesmo com a lei de 2018, mas muito se passou antes – começando pela Constituição de 1991, em 1993 o decreto que formalizou as AATIs (Associações de Autoridades Tradicionais Indígenas), mas continuou havendo uma lacuna.
A luta dos povos indígenas, não só amazônicos, mas todo o movimento indígena na Colômbia, persistiu. Quando aparece esse decreto de 2018, o território do Tiquié decide implementá-lo, já que a adesão é voluntária. O decreto está voltado para três departamentos (do país) onde há áreas não municipalizadas; antes do decreto, essas áreas tinham opção de entrar num município ou tornar-se município, mas com o decreto surgiu essa outra opção, mais integral e autônoma – a Entidade Territorial Indígena.
O plan de vida, o Consejo Indígena como a máxima autoridade do governo, com seu representante legal, assim como o Comité de seguimento, as secretarias, foram requisitos para conformar uma entidade territorial. Atualmente, já se formalizou a demanda junto ao Ministério do Interior, foram entregues todos os documentos sobre a jurisdição onde o governo vai exercer suas funções.
Segundo Jorge, “estamos agora nesse processo de diálogo, não tem sido fácil, o governo colombiano não tem a iniciativa, só se move a partir de medidas jurídicas. Agora em junho virá uma delegação do governo colombiano, do Ministério, da Agência Nacional de Tierras, Departamento Administrativo Nacional de Estatística (DANE).”
José Maria Sanchez, da COITERT, esclarece que o diálogo intercultural com o governo é feito coordenadamente, no âmbito macro-territorial, onde nós como governos indígenas do Apapóris, Mitiri, Pira-Paraná e Tiquié atuamos em conjunto em qualquer dificuldade no plano nacional que não nos favoreça. Vamos passar a funcionar como governo territorial quando assinarem o acordo intercultural com o Estado nacional, quando forem validados os documentos, verificando os dados que enviamos – como população, jurisdição etc.”
Plano de Manejo Integrado
A última parte da Canoita foi dedicada ao planejamento das atividades conjuntas, mais que isso, houve um entendimento sobre a necessidade de se pensar um plano de manejo integrado da Bacia do rio Tiquié, considerando sua abrangência transfronteiriça. Esse é um passo à frente em relação às Canoitas anteriores, que foram sobretudo espaços de troca de experiências e conhecimentos.
Na perspectiva de Domingos Barreto, assessor da FOIRN e da ATRIART, existe uma preocupação com esse plano, que abrange muitos temas, resultados que já foram alcançados, mas que precisam ser aprofundados.
“Acredito que os encontros da Canoita sejam o ambiente adequado para fazermos isso, respeitando as realidades das diferentes comunidades e sub-regiões e os conhecimentos que existem aí para o manejo do mundo.” Para ele, “foi bem visível, a cada dia, cada povo falando de seu jeito, de sua forma, da maneira como estão vivendo em suas comunidades. Esse tipo de encontro soma conhecimentos de cada povo e também dos parceiros (ISA e FGA), no sentido de fazer juntos, combinar juntos.”
Os encontros da Canoita acontecerão anualmente. Até o próximo encontro, foram planejados dois encontros menores, sub-regionais, para tratar, principalmente, dos acordos de manejo dos peixes – recurso vital para a segurança alimentar de todas as comunidades e que sofre pressão crescente com o uso de práticas predatórias, como o mergulho com máscara e arpão. Será um encontro no médio rio, e outro no alto Tiquié – esse incluindo o trecho acima de Pari-Cachoeira.
As mulheres tiveram momentos separados de conversa, gerando muitas ideias, mas também evidenciando diferenças nos temas aos quais se dedicam.