Situação crítica na saúde é causada pela falta de estrada, que deveria ter sido construída há quase uma década pelo Estado de São Paulo
**Essa notícia faz parte da série #OCaminhoProQuilombo, que traz reportagens sobre os desafios e as belezas da vida no Quilombo Bombas.
Em fevereiro de 2022, Edmilson Furquim de Andrade carregou com a esposa e outros dois moradores do Quilombo Bombas o filho adolescente, por cerca de 6 km, para chegar até o posto de saúde mais próximo, no município de Iporanga (SP). Para atravessar a trilha de acesso à comunidade, pessoas doentes e mulheres grávidas são transportadas no lombo de animais ou no banguê, espécie de maca improvisada com um lençol e pedaços de madeira.
“Fizemos um sistema que nós estamos acostumado, mas foi bem difícil. Aconteceu isso à tarde e o pessoal tava tudo deslocado. Num primeiro momento, eu achei que ele aguentava ir a cavalo, mas quando a coisa ficou feia… tem que fazer um socorro muito rápido. O mais triste é quando a pessoa não aguenta mais e cai no chão, perceber uma pessoa ali, indo embora, e a gente sem poder fazer nada…”, relembra o coordenador da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas.
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Em fevereiro deste ano, ele reviveu o ocorrido com o neto, que precisou ser carregado às pressas até o pronto-socorro do município. Após uma crise de bronquite, Bruno, de dois anos, teve uma parada cardiorrespiratória e precisou ser encaminhado para um hospital em Registro, município a 126 km de Iporanga, onde ficou internado por 13 dias.
Edmilson conta ainda que, no último ano, nada mudou e os moradores precisam conviver diariamente com o medo de não chegarem na cidade a tempo de serem socorridos. “Não foi só com meu filho, com meu neto também. Nós temos medo de não poder socorrer na parte da noite por causa que nós não temos a trilha. [...] Não quero passar por isso de novo”. “Eu liguei no posto e ninguém queria vir buscar, porque só buscava se fosse muito urgente”, desabafa Edilaine Ursulino, mãe da criança.
8 anos sem cumprir decisão judicial
Há 300 anos, essa é a realidade vivenciada no Território Quilombola de Bombas, no Vale do Ribeira. Para chegar ao centro da cidade, quilombolas precisam caminhar por quase duas horas em terreno íngreme e de mata fechada. Quando chove, o rio que corta o caminho se enche, tornando a travessia sobre as pedras praticamente impossível.
Em um trecho, a trilha estreita dá lugar a um grande atoleiro, apelidado de Barro Preto, onde as pessoas precisam ser retiradas do burro que realiza o transporte. A travessia se dá pelo esforço dos quilombolas, que carregam pessoas doentes e gestantes nos braços.
Sem a estrada, a comunidade também se vê privada do direito ao luto e à dignidade. Segundo os moradores, eles já precisaram carregar os mortos trilha abaixo no banguê para o sepultamento na cidade.
Em 2015, uma decisão judicial determinou que a Fundação para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo iniciasse a construção de uma estrada para facilitar o acesso dos moradores a postos de saúde e hospitais, mas a obra nunca saiu do papel.
Confira a série completa:
'O Caminho pro Quilombo': em SP, quilombolas lutam por estrada que garanta acesso a direitos básicos
Ausência de estrada faz quilombolas de Bombas (SP) sofrerem com perda de alimentos
Comunidade de Bombas (SP) defende direito à educação quilombola
Suzana Pedroso do Carmo: nova geração quilombola abre caminhos contra o racismo institucional
Até 2014, agentes de saúde faziam atendimentos no quilombo, mas um consenso entre o Conselho Municipal de Saúde, o Ministério da Saúde e o Departamento Regional de Saúde suspendeu a atuação dos profissionais de saúde no território por considerarem alto o risco no trajeto até a comunidade. “Eu não posso colocar a equipe em risco. A partir do momento em que um carro deixa a equipe na porta da unidade de saúde, a gente vai trabalhar”, diz Hélio Rodrigues Lopes, secretário de saúde do município de Iporanga.
Com isso, foi transferido aos quilombolas o encargo de travessia da trilha sem equipamentos de proteção adequados e, consequentemente, o alto risco à vida.
O atendimento à comunidade de Bombas passou a ocorrer mensalmente na UBS Dr Thomaz Antonio Cunha Cardoso de Almeida, em Iporanga. Em casos emergenciais, quilombolas precisam percorrer até 10km para serem atendidos na Reserva Betary, local de início da trilha.
Sentimento de abandono
Ao caminhar pelo território, é comum ouvir relatos de pessoas que sobreviveram, por pouco, à trilha que dá acesso à cidade. “A minha mãe perdeu a criança faltando 15 dias pra completar oito meses. Deu hemorragia e até ir de casa em casa chamar o povo... quase que ela morreu também. Não dá tempo de chegar”, relembra Suzana Pedroso do Carmo, moradora do Quilombo Bombas, em entrevista para a série Elas Que Lutam. “Quando a cobra mordeu meu filho, liguei pra ambulância e nada. Sorte que minha irmã ficou sabendo e veio buscar”, completa.
Laíde Ursulino, outra moradora da comunidade, conta que, apesar de estar no oitavo mês de gestação, precisou retornar ao Quilombo Bombas após alguns dias na casa de parentes porque não conseguiu se manter em Iporanga. Para ela, a sensação que fica é de abandono por parte do governo paulista. “É difícil largar tudo, as minhas crianças que tão estudando aqui. A gente se sente abandonado. Ninguém vê o que nós estamos passando nesse lugar, sem estrada, sem muitas coisas”.
Aos 69 anos, João Fortes divide sua rotina entre a cidade de Iporanga e a comunidade de Bombas. Ele conta que, por questões de saúde, também precisa ficar por longos períodos na casa de familiares. “Na verdade eu tô mais pra lá do que pra cá. Quando eu chego daqui pra lá, nem te conto. Ontem mesmo, achei que nem ia dormir de noite. Problemas de câimbra pelo corpo todo”, lamenta.
Em audiência pública, realizada em fevereiro deste ano, a Fundação Florestal se comprometeu a apresentar um cronograma de melhorias da trilha existente. “Em relação à saúde humana, é impossível retirar um doente. É preciso quatro pessoas para retirar um morador enfermo do local, com risco de vida”, registra o documento da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Em abril, a Fundação Florestal construiu uma nova trilha de acesso à comunidade. Contudo, a nova trilha não chega à comunidade de Bombas de Baixo, pois ela atende apenas a cerca de um terço do caminho. A Fundação Florestal se comprometeu a fazer adequações no restante da trilha, mas os serviços ainda não foram iniciados. Essas adequações seriam medidas emergenciais para atender a comunidade enquanto a estrada de acesso não é construída.
A maior parte dos quilombolas, porém, segue utilizando a trilha original porque o novo caminho é liso e íngreme, e o risco de escorregar, mesmo com o chão seco, é grande. Além disso, a pouca cobertura vegetal torna o trajeto sob sol forte ainda mais árduo.
Nova estrada feita pela Fundação Florestal não soluciona a dificuldade de acesso dos moradores do Quilombo Bombas|Júlio César Almeida/ISA
Alguns tipos de veículos, os chamados 4X4 ou off-road, conseguem utilizar o acesso, mas a comunidade diz que, mesmo assim, é incomum receber atendimento emergencial na trilha.
Em registro de audiência pública, realizada em fevereiro deste ano, o Estado de São Paulo reconhece o risco de vida associado à travessia da trilha com pessoas doentes.
“A própria Fundação, que é órgão do Governo, fala para nós ‘se vocês precisarem de um helicóptero, nós manda’, mas daí eles colocam um monte de regra ‘de noite não funciona, com garoa também não, com o tempo nublado também não,...’. [...] Eles não fizeram nem um palmo do que falaram dentro da comunidade. Não é uma ordem do juiz? Como que eles não cumpre?”, questiona o coordenador da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas.
“O pior de tudo é a distância que se criou entre o Estado [na figura da Fundação Florestal] e o município [representado pela prefeitura], pois quando se tem a oportunidade de atuar em conjunto, não é o que acontece. E isso é nítido quando vemos o que aconteceu recentemente na abertura [da nova trilha]. Até o trecho que estava estruturado e em boas condições agora está intransitável”, afirma Isaías Santos, monitor ambiental da Reserva Betary.
Rodrigo Marinho, liderança do Quilombo Ivaporunduva e representante da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (EAACONE), lembra que os longos períodos de luta das comunidades quilombolas para assegurar direitos fundamentais não são exclusividade do território de Bombas.
“Não é normal. No Brasil, a gente tem essa coisa de que existe uma legislação, mas se a gente não brigar pelo direito, ele acaba ficando inválido. O poder público tem essa morosidade em todos os aspectos quando diz respeito às comunidades tradicionais quilombolas”, lamenta.
Quando teve oportunidade, Laíde não se isentou e fez um questionamento crucial sobre a falta da estrada e a situação da comunidade: porque o Estado têm se omitido da responsabilidade de retirar o Quilombo Bombas do isolamento? Até quando?
“Eu queria pedir para as pessoas verem o que está acontecendo com nós. Por que tá desse jeito? Muitos lugares mais difícil que o nosso tem estrada e aqui não tem. É desumano isso que tá acontecendo”
**Essa notícia faz parte da série #OCaminhoProQuilombo, que traz reportagens sobre os desafios e as belezas da vida no Quilombo Bombas. Acompanhe no site do ISA.