Medida pode colocar fim a uma luta pelo direito à terra que já dura 44 anos. Governo decreta e titula áreas abrangendo 120 mil hectares, para 4,5 mil famílias, em 11 estados
O governo federal oficializou, nesta quinta (19/9), um acordo histórico com os quilombolas de Alcântara (MA), dando um passo importante para pôr fim a um conflito por território que dura 44 anos. O município tem cerca de 18 mil moradores e 84% deles são quilombolas ‒ a maior proporção do país.
Numa cerimônia na pequena cidade a 90 km da São Luís, com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foram assinados duas portarias e um decreto destinando às comunidades 78,1 mil hectares (um hectare corresponde mais ou menos a um campo de futebol). Com isso, será possível desapropriar áreas privadas sobrepostas e, em seguida, titular o território, última etapa do processo de regularização.
A medida foi possível graças à assinatura de um acordo com as organizações dos moradores. De acordo com o documento, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) deverá iniciar a titulação em até um ano. Além disso, os quilombolas e o Ministério da Defesa comprometem-se a aceitar os limites formalizados agora para o território tradicional e a base de lançamento de foguetes vizinha. Assim, os militares abrem mão da proposta de ampliá-la tomando 12,6 mil hectares das comunidades.
A instalação militar foi construída no início dos anos 1980. Mais de 300 famílias de 32 comunidades foram expulsas de suas casas. Ao longo de quatro décadas, o governo federal apresentou vários planos de expansão da base aeroespacial e violou sistematicamente os direitos das populações, principalmente atravancando o processo de reconhecimento oficial de suas terras. No total, são 3.350 famílias, distribuídas em 152 comunidades, vivendo sobretudo de agricultura de pequena escala e da pesca artesanal. A ocupação remonta ao século XVIII.
‘Passo importante’
As medidas anunciadas nesta quinta foram comemoradas pelos quilombolas. Apesar disso, escaldados pelo descumprimento de acordos e promessas ao longo dos anos, eles deixaram claro que sua luta só termina com a conclusão da regularização da área.
“Foi um passo importante, porém, não tem nada definido. Porque a definição vem com o título”, afirma Dorinete Serejo Morais, integrante das coordenações do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe) e da Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara (Atequila).
Ela se diz confiante com o cumprimento do acordo pelo fato da gestão Lula ser mais favorável aos direitos das minorias, mas não descarta imprevistos fruto de eventuais mudanças no contexto político. “A gente fica mais esperançoso, embora a gente saiba que governo é governo, e que alguma coisa possa mudar”, ressalva.
As tratativas formalizadas nesta quinta prosseguiram mesmo após os quilombolas retirarem-se, sob protesto, do Grupo de Trabalho instituído pelo governo para tratar do assunto. De acordo com eles, a administração federal não vinha sendo transparente em suas posições. Também reivindicavam paridade na composição do colegiado: tinham apenas quatro representantes e o governo, 13.
“Fomos procurados pela AGU [Advocacia-Geral da União] e nos disseram que havia essa possibilidade de acordo, que tinha havido conversas entre os órgãos de governo”, explica Morais. “Às vezes, a gente acreditava, às vezes a gente desconfiava, mas finalmente conseguimos chegar ao que foi assinado”, conclui.
“O acordo é um avanço histórico, uma vez que a União e a comunidade conseguiram, após mais de quarenta anos de conflito, chegar a um consenso sobre a área que deverá ser titulada. Mas ele não resolve todos os problemas. Outros passos precisam ser dados pela União”, concorda o assessor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA) Fernando Prioste.
Ele explica que o entendimento assinado nesta quinta tem efeito jurídico permanente, mas igualmente lembra que sempre há o risco de outra administração tentar desfazê-lo. Daí a necessidade das cláusulas serem cumpridas até 2026.
“Agora que nós conseguimos legalizar o quilombo de Alcântara, que nós conseguimos legalizar as centenas de comunidades, vocês passam a nos cobrar e nós temos a obrigação de dar sequência a essa titulação. Temos que cuidar da saúde, da educação, da água. Vamos ter que ter condições de fazer aquilo que é obrigação do Estado fazer”, prometeu Lula.
Mais decretos e titulações
Na mesma cerimônia em Alcântara, foram assinados os decretos de desapropriação de mais dez territórios e entregues 21 títulos envolvendo outros oito. No total, junto com Alcântara, os atos englobam 120 mil hectares e beneficiam 4,5 mil famílias em 11 estados (veja tabelas abaixo).
Com isso, o terceiro governo Lula soma 12 decretos assinados e 32 títulos entregues. No mandato notoriamente contrário aos interesses de populações tradicionais de Jair Bolsonaro, foram expedidos apenas 1 decreto e 23 títulos ‒ todos por determinação judicial.
Prioste lembra que, desde 2003, quando o Incra passou a ser responsável pela regularização dos territórios quilombolas na esfera federal, apenas 66 foram titulados integral ou parcialmente, o que significa, mais ou menos, 3% do total de 1.881 processos abertos no órgão.
“As entregas feitas agora são fruto do que ficou paralisado nos anos dos mandatos de Temer e Bolsonaro. O governo já tinha tudo pronto ao menos desde o início do ano, mas esperou um momento político como esse para fazer os anúncios”, diz Prioste. “Há outros processos que estão praticamente prontos, mas não andam por dificuldades políticas e orçamentárias. Não haverá avanços significativos sem que o Incra conte com mais estrutura, mais equipe, orçamento adequado e efetiva vontade política de enfrentar os desafios”, avalia.
Quantos quilombolas existem no Brasil?
De acordo com o Censo do IBGE de 2022, há no Brasil hoje 1,3 milhão de pessoas que se declaram quilombolas. O Censo apontou que os territórios oficialmente delimitados abrigam 167 mil pessoas assim autodeclaradas, o que representa 12% do total de quilombolas do país. Apenas 4,3% deles residem em territórios já titulados (considerando áreas regularizadas pelos governos federal e estaduais).
Comemoração em Cangume (SP)
Um dos quilombos agraciados com decreto de desapropriação é o de Cangume, em Itaóca, no Vale do Ribeira, sul de São Paulo. O território tem pouco mais de 854 hectares e abriga 47 famílias, que vivem da agricultura de pequena escala. O primeiro habitante, José Cangume, teria chegado à região há cerca de 200 anos.
Parte da comunidade assistiu à assinatura do decreto pelo presidente Lula via transmissão ao vivo e comemorou a conquista, aguardada há mais de 20 anos. “Para nós, é muito importante. Recebemos essa notícia, ontem à tarde, de que o presidente Lula estava assinando nosso decreto. Foi muito emocionante”, celebra o presidente da Associação do Quilombo Cangume, Odair Dias dos Santos.
Foi um alívio e um momento de alegria, relata Santos, diante da perda vivida há pouco mais de uma semana: o primeiro presidente da associação, Jaime Maciel de Pontes, 59 anos, morreu de infarto, no dia 13/9. Por alguns poucos dias, não conseguiu ver seu sonho realizado. Santos havia ido à Brasília, em maio, para participar do evento da assinatura do decreto, mas o governo resolveu não oficializar o ato na última hora.
Santos explica que a comunidade sofre por não conseguir ocupar todo o território e ter terras suficientes para seu sustento por causa de fazendeiros invasores. Alguns restringem o acesso da comunidade às suas áreas de cultivo. Agora, a expectativa é que o problema possa ser resolvido. “Foi muito sofrimento. Antes, os nossos agricultores [quilombolas] trabalhavam para os terceiros, chegavam tarde, não tinham pagamento, traziam alguns quilos de mandioca para se alimentar, trazer para a família”, relata.
Ele espera que a titulação saia o quanto antes, mas informa que o governo não deu nenhum prazo para viabilizá-la. O quilombola receia que alguns fazendeiros entrem com ações na justiça para impedir a conclusão da regularização fundiária. “Eu acredito que ainda vai ter um pouco de problema. Nem todos os terceiros, mas alguns ainda vão querer resistir para desocupar a área”, adverte.