Na última hora, oposição pressionou e conseguiu retirar critérios de raça, etnia, gênero e deficiência das políticas sobre o tema
Às vésperas do Dia do Meio Ambiente, comemorado nesta quarta (5/6), e mais de um mês após o início da tragédia causada pelas enchentes no Rio Grande do Sul, o Congresso deu, afinal, uma resposta específica e definitiva sobre a questão da adaptação climática ao país.
O plenário da Câmara aprovou, na noite desta terça (4), o projeto de lei (PL) que estabelece regras gerais para a elaboração e implantação dos planos nacional, estaduais e municipais sobre o tema. O PL 4.129/2021 segue agora à sanção presidencial.
O resultado é considerado uma vitória dos ambientalistas e da sociedade civil. O projeto foi indicado como prioritário pelo Observatório do Clima (OC) e a Frente Parlamentar Ambientalista no pacote de propostas que o Congresso deveria aprovar em resposta à catástrofe enfrentada pelos gaúchos. As duas entidades também encaminharam uma lista de PLs que deveriam ser rejeitados - o chamado “Pacote da Destruição”.
“O que o desastre no Rio Grande do Sul mostrou é que a crise climática infelizmente já é uma realidade. Ela vem para afetar a todos nós e nós precisamos adaptar nossas cidades, estados, o nosso país”, afirmou a deputada e autora principal do projeto, Tábata Amaral (PSB-SP). “A gente sabe que, se o poder público não se adianta, a gente está sempre remediando e o mais vulnerável, sempre, sempre vai ser o que mais sofre”, continuou.
O PL 4.129 prevê que os planos de adaptação sejam integrados aos planos de ação climática, conforme a Política Nacional sobre a Mudança do Clima (PNMC). Além disso, municípios, estados e União também devem alinhar estratégias de mitigação e adaptação aos compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris, o tratado internacional sobre a emergência climática. O PL prevê ainda que os planos de adaptação municipais e estaduais priorizem áreas, setores e populações mais vulneráveis (saiba mais no quadro ao final da notícia).
“Os planos subnacionais são importantes, porque são os instrumentos adequados para trazer soluções que considerem as especificidades dos territórios brasileiros”, comenta Ciro Brito, assessor do ISA.
“Em plena crise climática e enfrentando a situação de tragédia no Rio Grande do Sul, a aprovação de uma lei com diretrizes para a elaboração de planos de adaptação à mudança do clima é com certeza bem-vinda”, diz Suely Araújo, especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC).
“Espero que o Congresso continue nessa linha de trabalho e, por coerência, afaste da pauta os projetos que integram o Pacote da Destruição. Não adianta falar de adaptação e, ao mesmo tempo, flexibilizar as regras de controle do desmatamento ou implodir o licenciamento ambiental, potencializando a implantação de empreendimentos que desconsideram meio ambiente e clima”, continua.
Pressão da oposição e alterações no texto
O PL 4.129 foi aprovado no Senado, no dia 15/5, após sofrer resistência da oposição, interessada em desgastar o governo. Uma negociação prévia viabilizou que a votação no plenário da Câmara, nesta terça, fosse simbólica (consensual, sem registro individual de votos). Mesmo assim, o Partido Liberal (PL), a oposição e a minoria manifestaram-se contra e conseguiram que o relator de plenário, Duarte Jr. (PSB-MA), alterasse o texto na última hora.
Com a pressão, foram rejeitados os incisos VI e X do artigo 2º, que mencionavam expressamente que os planos de adaptação deveriam considerar critérios de raça, etnia, gênero e deficiência. Os termos “gênero” e “raça” teriam incomodado em particular a oposição, engajada no desmonte das políticas de proteção dos direitos de negros, mulheres, indígenas e comunidade LGBTQIA+ em agendas diversas.
Os dois dispositivos foram substituídos por outro, previsto no texto original aprovado inicialmente pela Câmara, em 2022, que prevê que as ações de adaptação deverão levar em conta “setores e regiões mais vulneráveis, a partir da identificação de vulnerabilidades, por meio da elaboração de estudos de análise de riscos e vulnerabilidades climáticas”.
“A exclusão desses dois incisos enfraquece as chances de implementação de planos de adaptação às mudanças climáticas que deem prioridade às comunidades mais vulneráveis diante do aumento dos eventos climáticos extremos”, lamenta Thaynah Gutierrez, da Rede por Adaptação Antirracista.
“Esta modificação sublinha a urgência de uma manifestação mais incisiva do governo federal no plano clima adaptação, com uma abordagem interseccional e transversal, que priorize as populações negras, indígenas, mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência”, defende.
"As desigualdades de raça e gênero estão intrinsecamente ligadas, e devem ser tratadas de maneira integrada. Elas revelam o racismo ambiental. No apagar das luzes, a extrema direita derrubou os termos ‘gênero’ e ‘raça’, pontos fundamentais do projeto. A articulação de movimentos negros, ambientalistas e de direitos humanos para que o PL 4129 melhorasse foi enorme. Retirar pontos fundamentais para a sociedade é um prejuízo a lei", criticou Mariana Belmont, assessora de clima e racismo ambiental do Geledés - Instituto da Mulher Negra.
"O Congresso Nacional precisa sentir a urgência da realidade e da emergência climática no país. Agora cabe ao Ministério do Meio Ambiente reforçar e se responsabilizar em garantir raça e gênero, não só transversal, não só como tema, mas como garantia de direitos", afirma.
Tema deve ser retomado por planos setoriais
A secretária do Clima do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ana Toni, reforça que a proposta aprovada pela Câmara é boa, mas também lamentou a alteração feita de última hora. Ela informou que o tema será retomado pelo governo na elaboração dos planos setoriais de adaptação climática que estão sendo discutidos com ministérios e setores da sociedade nos últimos meses.
"Estamos fazendo um plano para a população indígena, outro plano para o combate ao racismo, outro para pessoas vulneráveis, mulheres. Esses planos estão sendo feitos, mas seria complementar ter nisso na lei, obviamente”, comentou. De acordo com Toni, os planos setoriais devem ser formalizados até o fim do ano, por meio de uma resolução do Comitê Interministerial de Mudança Climática.
Toni falou com a reportagem do ISA após uma cerimônia no Palácio do Planalto em que foram anunciadas uma série de medidas em comemoração ao Dia do Meio Ambiente. Entre elas, foi assinado um protocolo entre o MMA e o Ministério das Mulheres para implementar ações de participação das mulheres nas políticas ambientais e climáticas.
Quais os principais pontos do PL 4.129?
Articulação federativa. Articulação entre União, estados e municípios na elaboração, implantação e monitoramento dos planos de adaptação.
Indicadores. Estabelecimento de indicadores para monitoramento e avaliação dos planos, que deverão ser revistos a cada quatro anos.
Integração entre adaptação e outros planos. Estabelecer a integração entre planos de adaptação e mitigação da mudança do clima, estimulando que todos os setores de políticas governamentais considerados vulneráveis aos impactos do Clima (agricultura, indústria, infraestrutura, populações vulneráveis etc) possuam estratégias para a gestão do risco climático
Áreas e populações prioritárias. Os planos de adaptação nacional, municipais e estaduais deverão priorizar áreas e populações mais vulneráveis. Esses critérios deverão levar em conta a “identificação, quantificação e reporte contínuo das vulnerabilidades e ameaças climáticas”.
Apoio aos municípios. Priorização dos municípios mais vulneráveis e a possibilidade de criação de “consórcios intermunicipais”.
Participação social. Garantia de participação social na coordenação, gestão e revisão dos planos nas várias esferas de governo.
Financiamento. Possibilidade de acesso ao Fundo Nacional de Mudança Climática (FNMC) e à cooperação internacional para o financiamento da elaboração e das ações dos planos.
“Soluções baseadas na natureza”. Adoção de medidas como a restauração florestal e a criação de áreas protegidas urbanas, como parte das estratégias de adaptação, considerando os benefícios adicionais e sinergias com as ações de mitigação.